Tendo por base uma análise aos dados disponibilizados pela Direção Geral da Agricultura e do Desenvolvimento Rural (DGADR), a ZERO (Associação Sistema Terrestre Sustentável) constatou, em comunicado, que os “regadios públicos estão a promover uma autêntica reforma agrária” com o objetivo de “industrializar o espaço rural”, permitindo que os “utilizadores precários – usufrutuários da água proveniente dos aproveitamentos hidroagrícolas (AH) que se situam fora da área beneficiada – possam fugir à avaliação de impacte ambiental”.
A associação receia ainda que um “novo empreendimento hidroagrícola no Crato, um inaceitável investimento público de 170 milhões de euros, previsto no Plano de Recuperação e Resiliência, siga o mau exemplo dos restantes regadios públicos”.
Segundo a ZERO, a leitura dos dados disponíveis mostra que a “implementação da estratégia nacional para o regadio público 2014-2020 apenas promoveu uma crescente especialização da agricultura, homogeneizando o espaço agrícola beneficiado para irrigação, onde o grande protagonista parece ser o olival, ocupando 42% da área regada em 2019 face aos 27% que ocupava em 2014”.
Também em sentido crescente, “pomares mistos e outros pomares”, categoria que contém os “frutos de casca rija”, praticamente duplicaram a sua área, representando agora “mais de 10% da superfície regada pelos grandes regadios públicos”, precisa o comunicado.
Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE – Recenseamento Agrícola de 2019), ao quais a ZERO deu especial atenção, “os regadios públicos e privados já ocupam uma área de 626 mil hectares (há), ou seja, 16% da Superfície Agrícola Utilizada em Portugal (SAU), um aumento de 80 mil ha, mais 14,5% face à área irrigável em 2016”. Dentro da área beneficiada pelos grandes regadios de iniciativa estatal “estavam ainda disponíveis para rega mais de 57 mil hectares (DGADR 2020)”, acrescenta.
Extensas áreas de precários dos Aproveitamentos Hidroagrícolas não foram sujeitas a avaliação de impacte ambiental
O regime jurídico das obras dos aproveitamentos hidroagrícolas estabelece a figura do “precário”. E a realidade mostra, segundo a ZERO, que este regime está a ser usado de “forma abusiva”, uma vez que em 2019, apesar do aumento da área beneficiada estar já a incorporar antigos precários, perto de um terço de toda a área regada pelos grandes AH estava sob este regime.
Para a ZERO, “o fornecimento de água em regime precário para culturas que são permanentes é uma prática questionável, já que o compromisso excede o que o regime permite, estando subjacente uma garantia de disponibilidade de água plurianual para períodos que poderão exceder os 10 ou 15 anos”. Para além disso, “muitas das áreas em regime precário não têm sido sujeitas a qualquer avaliação de impacte ambiental (AIA), contrariando a legislação em vigor que obriga a que os projetos de emparcelamento rural e a reconversão de terras não cultivadas há́ mais de cinco anos para agricultura intensiva sejam alvo de avaliação”, atenta a associação. A expansão significativa da área regada a partir dos AH deve-se considerar uma “ampliação de projetos existentes”, uma vez que “excede os impactes inicialmente previstos, estando portanto sujeita a AIA nos termos de Regime Jurídico aplicável”, lê-se no comunicado.
Nova Barragem do Pisão no Crato vai seguir o “mau exemplo” do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva (EFMA)
Para a ZERO, o EFMA é o projeto que “ilustra melhor a visão estratégica nacional para a agricultura”, um empreendimento que resulta na “completa conversão cultural para regadio numa área definida, favorecendo a agricultura industrial e a financeirização do setor”, orientando-o para a “exportação”. As consequências desta ideia de desenvolvimento eram previsíveis: “a simplificação extrema dos sistemas agrícolas em poucas monoculturas com grande expressividade – mais de 80% da área regada serve apenas duas culturas, o olival e o amendoal –, a artificialização da rede hidrográfica, o desaparecimento dos corredores, faixas e bolsas ecológicas e o favorecimento de poucos atores que controlam as cadeias produtivas”, diz a ZERO.
A proposta de construção da Barragem do Pisão e a infraestruturação do perímetro de rega nos concelhos do Crato, Alter do Chão, Portalegre, Avis e Fronteira, segue a mesma ideia de desenvolvimento que deu origem aos “desastrosos resultados ambientais e sociais” do EFMA. Em causa está, de acordo com a associação ambiental, a “inundação de 7 km² de zonas naturais – o que obrigará inclusivamente à relocalização da aldeia do Pisão – e a criação de um perímetro de rega de conduzirá à conversão total do uso e ocupação do solo numa área superior a 9.000 ha”.
Á semelhança da promessa de Alqueva, também a Barragem do Pisão tem vindo a ser promovida como a “grande solução” para combater o despovoamento e revitalizar as economias rurais, sem que haja qualquer evidência que aponte para esses efeitos. Pelo contrário, a “financeirização, concentração da terra beneficiada e a proliferação de novas formas de exploração e precariedade laborais, a par da degradação ambiental das áreas intensificadas, são consequências diretas e dificilmente questionáveis da realidade dos grandes regadios de iniciativa estatal, sobretudo a sul do Tejo”, defende a ZERO.
Mais regadio necessita de avaliação ambiental estratégica
De fora tem ficado a “discussão de alternativas a novas grandes obras hidroagrícolas”, atenta a ZERO, destacando que “a estratégia nacional para o regadio não foi alvo de uma avaliação ambiental estratégica e continua a não contemplar o apoio à sustentabilidade da generalidade dos sistemas agrícolas portugueses, tipicamente em regime de sequeiro (84% da SAU, INE), nomeadamente através de pequenos regadios privados e de formas de agricultura de sequeiro apoiado por rega”. Esta solução está mais vocacionada para “aumentar a produtividade da água sem implicar investimentos avultados e grandes transformações das práticas culturais por parte dos agricultores”, refere o mesmo comunicado.
Necessária é também, de acordo com a ZERO, a sua articulação com “soluções agroecológicas” como as “paisagens de retenção de água, a agricultura regenerativa e de conservação, e outras Nature-Based Solutions”, sendo que estas abordagens poderão “contribuir positivamente para resiliência hídrica dos territórios”. Os sistemas de sequeiro apoiados por pequenos regadios privados poderão “melhorar de forma significativa a produtividade de sistemas de alto valor natural e paisagístico”, como os “sistemas agro-silvo-pastoris em zonas semiáridas, perante um quadro de abandono e de alterações climáticas que os ameaçam”, afirma.