“Vivemos num mundo que apresenta potenciais riscos, quer para o desenvolvimento económico, quer para o desenvolvimento social (…), e muitos destes riscos advêm de questões ambientais e sociais”. Este foi o ponto de partida para Inês Costa, especialista em ESG na Deloitte Portugal, abordar as cidades e regiões num contexto de economia circular. A responsável foi Keynote Speaker na “Conferência Economia Circular e Ambiente”, promovida recentemente pelo Município de Guimarães no Laboratório da Paisagem.
O momento é de “grande incerteza” quanto ao futuro, até porque “aquilo que foram as tendências do passado não podem servir de base para planearmos o futuro: é um nível de incerteza elevado”, disse a responsável, lembrando que, dos “nove limites biofísicos do planeta, cinco já estão comprometidos. Continuamos a ir contra a parede”, afirma.
O facto de, durante muitos anos, se acreditar que as questões relacionadas com “inovação e tecnologia” iriam ser suficientes para “mitigar” muitos dos riscos levou a que tivesse ficado esquecido o princípio básico do que são os sistemas de produção e consumo e se atuasse apenas “no fim de linha”: “Vivemos num mundo em que mil milhões de pessoas consomem 72% dos recursos a nível mundial, enquanto temos mil milhões que consomem 1% dos recursos”. E com todas as contradições que daí emergem em termos de “desigualdades económicas” e de “condições ambientais”, a verdade é que “o ritmo de consumo de extrações materiais continua a aumentar” e, em alguns momentos, “até acima da taxa de crescimento do PIB”, correspondendo a uma “ligação clara entre aquilo que produzimos e consumimos e aquilo que emitimos e prejudicamos a biodiversidade”, sustenta.
Neste “paradoxo” de crescimento, a especialista em ESG na Deloitte fala ainda de um “gap” entre objetivos e ação: “As desigualdades são muitas vezes chamadas como justificação para continuar no modelo linear – extrair, produzir, consumir e deitar fora – mas, depois, não existe um retorno social e ambiental que recupera as bases de bem-estar social ou as bases naturais que permitam ao sistema autossustentar-se”.
“Extraímos e acumulamos muito e deixamos aquele stock de materiais (…) e depois temos o descarte”
Citando os dados de 2023 do “Circularity Gap”, que faz uma análise anual de qual o nível de circularidade a nível global, Inês Costa dá nota que “os recursos de materiais extraídos já vão em cerca de 100 gigatoneladas”, quando a base mais sustentável seria 50: “Em 2050, as previsões, se continuar tudo como está, vamos bater os 170 a 180 gigatoneladas por ano. Não é sustentável”, frisa. A taxa de circularidade global decresceu porque o aumento do consumo e extração é tão rápido e intenso que “abafa qualquer tentativa a de se dar impulso à economia circular”, apesar desta ser continuamente impulsionada: “Extraímos e acumulamos muito e deixamos aquele stock de materiais (…) e depois, temos o descarte”. A “construção”, os “sistemas alimentares”, a “mobilidade e transporte” e o “vestuário” são, de acordo com Inês Costa, os quatro setores onde “se concentra a maior quantidade de fluxos materiais que são extraídos e alimentados e onde existe alguma perda estrutural. Se conseguíssemos duplicar a materialidade tal como existe hoje para 17% a nível global, significaria menos 28% da necessidade de extração de novos materiais e menos 39% de redução de CO2”. Por isso, “(no momento de) se pensar nos Planos de Ação Climática ao nível municipal, devemos pensar na economia circular e como pode ser adotada no município, sendo também uma forma de contribuir” para a redução da extração de materiais, precisa.
A extração de valor foi outro tópico que Inês Costa quis trazer para sua intervenção, destacando os dados da revisão do sistema de monitorização de economia circular a nível europeu, lançado pela Comissão Europeia: “Portugal é o país que se encontra dentro do grupo de países com a mais baixa taxa de circularidade de materiais, pois substituímos muito pouco as matérias-primas por materiais recuperados”. A isto, soma-se a questão da produtividade: “Espanha, mesmo ao nosso lado, consegue ter uma produtividade bem mais superior do que a nossa, pois extrai mais valor acrescentado numa tonelada de materiais”.
E como extrair mais valor? De acordo com a especialista, as organizações de pequena e média dimensão já trabalham na reutilização de equipamentos: “Na área da construção, há empresas que já estão a recuperar componentes de edifícios em demolição para poderem reutilizar novamente em obra”, refere. Outros bons exemplos são a “utilização de materiais de construção a partir de resíduos” ou a “reciclagem de biorresíduos, uma área muito importante para descarbonização”, classificou. O “envolvimento dos cidadãos”, a “partilha” e a “entreajuda” são princípios norteadores de extrair valor: “É a vida comunitária e a proximidade como pontos de vista de valor económico, ambiental e social”.
“Uma transição justa é muito mais do que energias renováveis”
Apesar da existência de “barreiras “culturais, tecnológicas ou de legislação e regulação” que dificultam os municípios de fomentar a economia circular, a responsável considera que ações de “compras públicas, cocriação de ações com as cidades, envolvendo-as no desenvolvimento das próprias soluções”, ou a criação de “fóruns” podem assentar numa governança dedicada.
Para além disso, a Deloitte tem centrado grande foco em “metodologias” para apoiar as cidades, como por exemplo, “analisar o contexto; “determinar o nível da ambição que se pretende atingir e quais os setores alvo dentro do território que trazem mais materiais, que consomem mais energia ou mais água”; “identificar oportunidade de melhorias nesses setores e trazer opções de política pública para os cidadãos e organização que estão no território”, bem como “determinar um roteiro que incorpore uma governança que seja sólida e ativa”.
Inês Costa aproveitou o momento para relembrar a importância de colocar as pessoas no centro da ação: “Uma transição justa é muito mais do que energias renováveis: são um dos ODS, existindo outros 16, que são precisos atender e não podemos conseguir uns à custa de comprometer outros”. Outra recomendação passa por “atuar na cultura”, vista ser a “maior barreira” à adoção de práticas e iniciativas por parte das organizações, bem como a importância de se ser “consistente”, isto é, “estar dentro do sistema não significa concordar, mas sim melhorar: nós vivemos num mundo real e temos de aprender a ouvir os outros e a colaborar”, remata.
A “Conferência Economia Circular e Ambiente” decorreu no âmbito da celebração do Pacto Climático, com o Município de Guimarães e outras 70 entidades a reforçar o compromisso com a neutralidade climática até 2030.