A Ambiente Magazine esteve à conversa com Ana Isabel Trigo Morais, CEO/administradora delegada da Sociedade Ponto Verde, entidade que criou, há cerca de 27 anos, um sistema de gestão de resíduos de embalagens que permitiu que a reciclagem começasse a ser uma realidade. Hoje, com 70% dos lares portugueses a colocarem as suas embalagens nos ecopontos, a SPV prossegue na sua missão de educar os cidadãos, apostando em campanhas de comunicação e sensibilização.
Como é que avalia a literacia ambiental em Portugal?
Creio que o país tem evoluído bastante nesta matéria. Portugal tem hoje cidadãos cada vez mais responsáveis e conscientes, que procuram serviços e produtos face ao seu desempenho ambiental e exigem às marcas maior transparência e rigor nas suas alegações ambientais.
No geral, diria que a sociedade está cada vez mais informada e, portanto, é também mais exigente e participativa em defesa do Ambiente, o que se reflete nas suas escolhas e nos seus comportamentos diários.
Apesar disso, há ainda muito caminho a fazer e é necessário acelerar para atingir as metas nacionais globais de reciclagem, que são bastante ambiciosas, nomeadamente no que diz respeito às embalagens, uma vez que o país tem de chegar a 65%, até 2025, e a 70%, até 2030. Neste sentido, a nossa missão passa por continuarmos a motivar os cidadãos para que se mantenham comprometidos com esta causa.
Em 1996, o ano da nossa constituição, o conceito de reciclagem era desconhecido e neste momento é, não só uma atitude frequente, como um gesto que faz parte das nossas rotinas.
No que diz respeito à nossa atuação concreta, somos responsáveis por ajudar a promover a literacia ambiental em Portugal. Em 1996, o ano da nossa constituição, o conceito de reciclagem era desconhecido e neste momento é, não só uma atitude frequente, como um gesto que faz parte das nossas rotinas.
Ainda assim, sabemos que é necessário continuar a sensibilizar e a esclarecer os cidadãos para estes temas, nomeadamente no que diz respeito à correta separação das suas embalagens após o consumo e o encaminhamento para reciclagem.
Por isso continuamos a criar campanhas de comunicação de educação ambiental, muitas delas de proximidade, e a desenvolver o projeto de iconografia da reciclagem designado “Quando a embalagem passa a mensagem”, que diz claramente ao consumidor o que deve fazer no final da sua utilização, o que representa um esforço para aumentar a literacia ambiental dos portugueses.
Que desafios enfrenta Portugal no âmbito da literacia ambiental?
Continua a ser necessário sensibilizar e incentivar a aplicação dos 3 R’s, no nosso caso, com maior foco em motivar a prática da reciclagem onde quer que os cidadãos estejam, em casa, no local de trabalho ou em lazer, para que a recolha seletiva de embalagens seja feita cada vez melhor e com melhores resultados para o país.
É importante que os portugueses saibam o impacto de colocarem corretamente as suas embalagens nos ecopontos, o que ajuda a preservar o Ambiente e permite uma maior valorização destes resíduos, que voltam a ganhar uma nova vida e entram novamente no mercado.
o país tem de acompanhar, disponibilizando e criando novos e complementares sistemas de reciclagem que funcionem bem e tragam conveniência aos cidadãos, já que um dos maiores problemas que o país enfrenta são os aterros
Contudo, os desafios não passam apenas por explicar às pessoas as medidas que devem adotar para ajudar a melhorar o meio ambiente. Devem aplicar as melhores práticas, claro que sim, mas o país tem de acompanhar, disponibilizando e criando novos e complementares sistemas de reciclagem que funcionem bem e tragam conveniência aos cidadãos, já que um dos maiores problemas que o país enfrenta são os aterros.
Em alguns casos ainda não existe sequer um fluxo definido de reciclagem, ou noutros casos falta reciclagem, como acontece com os biorresíduos, os eletrónicos ou o mobiliário velho, o que faz com que Portugal, globalmente, ainda envie para aterro cerca de 64% de todos os resíduos urbanos que produz. O que é crítico quando o país tem como meta reduzir para 10% até 2035.
Como é que se pode aumentar a literacia ambiental no nosso país?
Reforço o que mencionei anteriormente de que, hoje em dia, não é suficiente criar estratégias de sensibilização e comunicação, é necessário criar novas soluções que mobilizem para a reciclagem das embalagens, de modo a satisfazer as necessidades de toda a cadeia de valor, induzindo as empresas do Grande Consumo que utilizem embalagens, para fazer chegar o seu produto ao consumidor.
Hoje em dia já não é suficiente explicar como se deve reciclar, é necessário melhorar a qualidade e o nível de serviço que é prestado aos cidadãos pelos municípios e demais entidades que fazem a gestão operacional da rede dos ecopontos
Além destas soluções que mobilizam os portugueses, é também necessário estar presente no dia-a-dia das pessoas. Acompanhar as suas rotinas e conseguir estar, progressivamente, mais próximos dos cidadãos. Hoje em dia já não é suficiente explicar como se deve reciclar, é necessário melhorar a qualidade e o nível de serviço que é prestado aos cidadãos pelos municípios e demais entidades que fazem a gestão operacional da rede dos ecopontos. Mais do que nunca é preciso estar próximo de quem deles faz uso.
Um consumo moderado, consciente e sustentável, a pensar no futuro do planeta, pressupõe os 3 R’s. O “Reduzir”, o “Reutilizar” e o “Reciclar” são ações que devem acontecer, exatamente, por esta ordem, num grande trabalho de literacia ambiental junto de todos, iniciando-se nos mais jovens.
A literacia ambiental também passa por dar a perceção às pessoas de que há muito valor, económico inclusive, em fazer a reciclagem de um produto, de um bem, de uma matéria que chega ao seu fim de vida útil.
No fundo, deve continuar a trabalhar-se, coletivamente, para mostrar que tudo pode ter uma segunda vida desde que as pessoas encaminhem, de forma correta, os seus resíduos para a reciclagem. Trabalho este que tem de ser acompanhado por uma outra vertente: relembrar os cidadãos de que precisamos de reduzir o consumo de matérias-primas virgens e de introduzir outros hábitos na nossa vida, que passam por reutilizar mais vezes aquilo de que precisamos no nosso dia-a-dia, reforçando o propósito da economia circular.
Que tipo de ações podem ser levadas a cabo pelas entidades públicas e privadas?
No contexto nacional, já assistimos a um esforço coletivo para acelerar a transição para o paradigma da economia circular. Através do Plano de Ação para a Economia Circular, conseguimos ter um enquadramento político nacional, que vai acompanhando o contexto europeu, cruzando a sua atividade com vários documentos como o PRR ou o PERSU 2030, este essencial para a cadeia de valor dos resíduos urbanos, onde a Sociedade Ponto Verde atua.
Há compromissos, pactos e metas muito ambiciosas que o país tem de cumprir e, portanto, tem de aumentar-se de forma significativa os níveis de circularidade nas empresas, serviços, bens e produtos.
Ainda há pela frente uma margem enorme de progressão nesta matéria. Há compromissos, pactos e metas muito ambiciosas que o país tem de cumprir e, portanto, tem de aumentar-se de forma significativa os níveis de circularidade nas empresas, serviços, bens e produtos.
A atuação das empresas deve estar muito mais estabilizada e orientada para um compliance ambiental justo do ponto de vista económico e em maior alinhamento entre países
A atuação das empresas deve estar muito mais estabilizada e orientada para um compliance ambiental justo do ponto de vista económico e em maior alinhamento entre países; as políticas públicas para o setor do ambiente devem ter objetivos claros e mais transparentes; e, além disso, Portugal carece de um sistema estatístico e demais instrumentos para a medição da economia circular, bem como de mais instrumentos de fiscalização do cumprimento da legislação ambiental.
Qual tem sido a atuação da Sociedade Ponto Verde na promoção de uma maior literacia ambiental?
O trabalho que a SPV tem vindo a desenvolver é intrínseco à sua natureza. Somos pioneiros na promoção da reciclagem no nosso país e temos feito evoluir o sistema, que é cada vez mais moderno e inovador.
Somos pioneiros na promoção da reciclagem no nosso país e temos feito evoluir o sistema, que é cada vez mais moderno e inovador.
Recordo que criámos, há praticamente 27 anos, um sistema de gestão de resíduos de embalagens que funciona e tem vindo a melhorar, o que permitiu que a reciclagem começasse a ser feita e que tenhamos, hoje, 70% dos lares portugueses a colocar as suas embalagens nos ecopontos, cuja rede nacional já ascende a mais de 70 mil. Também a maior parte dos cidadãos considera que a reciclagem de embalagens é o seu maior contributo para o Ambiente. São tudo indicadores que nos deixam bastante agradados, mas sabemos que há ainda muito caminho pela frente.
Continuamos a promover o conhecimento mais amplo sobre a hierarquia de gestão de resíduos assente nos 3R’s – Reduzir, Reutilizar, Reciclar -, com grande aposta na prevenção, procurando soluções inovadoras que promovam a utilização e incorporação de matérias-primas secundárias nos processos produtivos, contribuindo para os objetivos da economia circular e da neutralidade carbónica.
Em particular, na nossa atuação para promover a literacia ambiental, destaco o trabalho que desenvolvemos de forma muito próxima com crianças e jovens porque acreditamos que são dos maiores portadores de informação, incentivando à mudança já hoje, e que são os futuros influenciadores destes temas ligados à Sustentabilidade e ao Ambiente. Desde 1996 já impactamos mais de 500.00 crianças e jovens, com os nossos programas de educação ambiental.
Neste sentido, temos em curso vários projetos, dos quais destaco a Academia Ponto Verde, um projeto dirigido à comunidade escolar; ou o jogo de tabuleiro gigante Recicla Mania, que em 2023 conseguiu chegar a um público superior a 2300 pessoas; o prémio “Junta-te ao Gervário”, desenvolvido numa perspetiva de aproximação às comunidades locais, que deu a conhecer projetos de grande valor, mostrando o que de melhor se faz nestes temas ligados à Reciclagem, Ambiente e Sustentabilidade, e com potencial para serem replicados noutras regiões do país.
Além destes, e para reforçar o nosso papel junto dos cidadãos, apostamos, cada vez mais, em soluções e ferramentas digitais que as pessoas podem usar em qualquer lado e a qualquer hora do seu dia. No fundo, estamos empenhados em investir na digitalização, já que todos andamos com a tecnologia na palma da nossa mão. Lançámos, assim, no verão, a app “Acerta e Recicla”. Trata-se de uma aplicação móvel que premeia os jogadores que mais pontos acumulam em quizzes, sondagens, perguntas do dia e happy hours sobre reciclagem, com cartões presente para descontar nas principais insígnias retalhistas. Na primeira vaga, esta app conseguiu alcançar cerca de 30 mil downloads e, atualmente, está no ar a segunda vaga, que tem mais de 15 mil euros para dar a quem jogar e que está focada na temática da reciclagem do vidro.
As campanhas de comunicação são uma boa aposta para acelerar a literacia ambiental em Portugal? Porquê?
Acreditamos que as campanhas de sensibilização e comunicação são uma aposta fundamental para dar conhecimento e levar, consequentemente, à mudança de comportamentos, e será sempre um trabalho contínuo da SPV.
É por isso que, quando avaliamos o nosso trabalho ao longo destes quase 27 anos, vemos um investimento muito significativo: no total já alocamos mais de 55 milhões de euros apenas a esta área, o que nos tem permitido envolver e levar a todas as faixas etárias, até mesmo aos mais pequenos, a mensagem de que a reciclagem deve ser feita por cada um de nós.
Que tipos de campanhas a SPV tem levado a cabo? Pode dar alguns exemplos?
Já fui mencionando alguns projetos. Na SPV, apostamos em abordagens distintas de campanha para campanha. Usamos desde os formatos mais tradicionais, como foi o caso da campanha de comunicação “O Regresso do Gervásio”, lançada em 2021, para comemorar os nossos 25 anos e que incluiu vários spots publicitários sobre as melhores práticas para a reciclagem de embalagens.
Adicionalmente, também trabalhamos junto das comunidades, tanto em iniciativas junto das escolas, como mencionei anteriormente, como das empresas e do consumidor final.
Já falei sobre a app “Acerta e Recicla”, mas gostava também de destacar a campanha de comunicação preparada para este âmbito. A primeira fase da campanha arrancou em julho, a par primeira vaga da aplicação, e teve por base a nossa aposta na digitalização e na experiência de gamificação. Neste momento, está em vigor a segunda, que reforça uma temática muito importante: a reciclagem do vidro, que surge numa tentativa de acelerar o alcance das metas estipuladas para esta embalagem. Também a “Geração R: Todos juntos pelo Planeta” é outro exemplo, esta mais centrada no posicionamento e na forma de comunicar da SPV nas redes sociais, que demos a conhecer em maio.
Em matéria de investigação e desenvolvimento (I&D), tendo o setor dos resíduos como base, que avaliação faz sobre a capacidade de Portugal? Qual a importância desta área para o setor? Qual tem sido o contributo da SPV nesse sentido?
A Inovação é uma das nossas maiores prioridades. Este é um setor que depende, precisamente, da inovação para criar não só embalagens cada vez mais sustentáveis, mas também novas soluções mais digitais, verdes e eficientes para o setor da gestão de resíduos, e que mobilizem os consumidores para mais e melhor reciclagem.
Por isso, a aposta da SPV nesta área tem sido muito forte e isso fica patente no investimento de 13 milhões de euros.
A nossa atuação é feita, principalmente, através do Ponto Verde Lab, uma plataforma de conhecimento dedicada aos nossos clientes e assente na adoção das melhores práticas de ecodesign e design for recycling assegurando a melhoria da pegada ambiental das embalagens. Só através do Ponto Verde Lab, falamos de 46 projetos de investigação e desenvolvimento já apoiados pela SPV, de 87 entidades que decidiram inovar connosco.
Em que projetos de I&D a SPV tem trabalhado? Pode dar alguns exemplos? Que balanço é possível fazer desses projetos?
Ainda no campo da Inovação, destaco o Re-Source, um programa de aceleração da inovação em parceria com a Beta-i, que já teve duas edições. Trata-se de uma iniciativa bem-sucedida que mostra que o trabalho colaborativo dos diferentes agentes da cadeia de valor, envolvendo empreendedores, inovadores e academia, permite a criação de novas soluções. Nas edições já organizadas, estiveram envolvidos cerca de 30 parceiros e 150 empreendedores de mais de 45 países, nomeadamente da Europa e América, além de representação nacional.
Cada um dos projetos apresentados tem as suas características, mas têm em comum o facto de beneficiarem os agentes da cadeia de valor do setor, seja pela forma como promovem a circularidade das embalagens, bem como por potenciarem a criação de novas soluções tendo em vista tornar o sistema de gestão de recolha e reciclagem mais eficaz.
Além disso, lançamos recentemente um projeto em conjunto com a Universidade NOVA de Lisboa, da qual somos parceiros. Através do gabinete NOVA Impact, criamos CIRCULAR inNOVA(tion), um programa de inovação, ideação e empreendedorismo que tem como objetivos promover o desenvolvimento de novos produtos, modelos de negócio e soluções inovadoras na cadeia de gestão de resíduos que ajudem a reduzir, separar e recolher, eficazmente, mais e melhor as embalagens no pós-consumo.
Queremos estimular, com o apoio de equipas multidisciplinares, a criatividade para responder a desafios específicos que estão bem identificados por nós, Sociedade Ponto Verde, e que passam, por exemplo, pela implementação de sistemas pay as you throw ou on demand.
A investigação e o desenvolvimento vão continuar a ser uma aposta para a SPV?
A aposta nestes eixos é fundamental à atuação da SPV, pelo que obviamente continuarão a fazer parte da nossa aposta. Neste momento, estamos empenhados em dar continuidade ao nosso trabalho nos projetos já existentes e em dar-lhes cada vez mais valor e destaque.
A nossa estratégia passa também por investir, aprofundar e dar, progressivamente, mais escala aos projetos que temos no ativo atualmente, tendo como principal objetivo que cheguem a mais pessoas e empresas, tenham mais participação e que, assim, produzam mais e melhores resultados.
Como é que Portugal pode aumentar o número de projetos de I&D em prol de um setor dos resíduos mais resiliente?
Este é um setor que tem sabido modernizar-se e a sua evolução depende da inovação e de um maior uso da tecnologia e da digitalização.
Para isso, é necessário que as empresas tenham capacidade de investimento em I&D e haja projetos de financiamento e incentivos aos quais se possam candidatar para o desenvolvimento desses projetos. É o que vai possibilitar a criação de embalagens e produtos direcionados para o grande consumo, que sejam cada vez mais sustentáveis em todo o seu ciclo de vida, mas também que se desenvolvam novas soluções e ferramentas capazes de mobilizar os cidadãos para que reciclem mais e melhor, alterando até padrões de consumo.
Este é um caminho que as empresas estão a fazer, ao abrigo da sua responsabilidade. É a promoção desta circularidade que vai permitir gerar valor ambiental, social e económico para Portugal e aumentar o número de projetos de I&D.
Nesta ótica, continuamos a defender um trabalho mais coordenado e colaborativo entre todas as partes interessadas e os agentes envolvidos para conseguir aferir-se os instrumentos, os meios e as ações necessários para o cumprimento das metas e objetivos estabelecidos.
*Esta entrevista foi publicada na edição 102 da Ambiente Magazine.