A importância que é dada ao setor dos resíduos é a mesma que é dada aos setores da Água e da Energia? Esta foi uma das perguntas que a Ambiente Magazine colocou a várias associações ligadas ao setor dos resíduos para perceber qual tem sido o nível de atuação, por parte do Governo, com os olhos postos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Há uma certeza: “O setor dos resíduos está omisso no PRR”.
Tão importante como definir metas, proibições e obrigatoriedades, é a estratégia que Portugal seguirá para as cumprir, expressa no Plano Estratégico do setor (PERSU 2030). Quem o diz é Feliz Mil-Homens, professor do ISEL e assessor da Direção da AVALER (Associação de Entidades de Valorização Energética de Resíduos Sólidos Urbanos), reforçando a importância do PERSU2030 estabelecer “estratégias claras”, em que o setor se reveja, começando pela “organização de toda a cadeia de valorização de bioresíduos, da compostagem doméstica e comunitária à recolha seletiva e à valorização em instalações centralizadas”. Apesar de Portugal ter uma “estratégia”, o responsável aponta a “falta de elementos”, dando como exemplo “as regras e condições, há muito anunciadas, de valorização do biometano, essenciais à tomada de decisão quanto a novos investimentos”. Por outro lado, importaria não fazer da área o “alfa” e o “ómega” de toda a política: “Há outros problemas estruturais que importa enfrentar, como o risco de subfinanciamento, um quadro regulatório complexo e rígido que não incentiva a cooperação e partilha de instalações e serviços ou uma cultura que desresponsabiliza o produtor de resíduos, que tarda em mudar, a utilização largamente excessiva do aterro sanitário e a incapacidade de criar alternativas de valorização para os resíduos que não são reciclados”. Feliz Mil-Homens lembra que Portugal envia anualmente para aterro mais de três milhões de toneladas de resíduos urbanos, representando quase 60% dessa tipologia, mais do dobro da média europeia. A valorização energética de resíduos (VER) é a “única solução robusta” para os resíduos que não encontram destino na reciclagem de qualidade: “Infelizmente, ao contrário da generalidade dos países europeus, o país tem sido incapaz de aumentar a capacidade de VER, para fazer face às suas necessidades”.
[blockquote style=”2″]Urge considerar o setor dos resíduos como uma indústria de primeira linha[/blockquote]
Quem também dá “nota negativa” ao nível de atuação do setor dos resíduos é Quitéria Antão, presidente da APOGER (Associação Portuguesa dos Operadores de Gestão de Resíduos e Recicladores), que alerta para a importância de cumprir os regulamentos europeus: “Não duvidando da bondade e da exuberância do Governo na defesa de um Portugal Verde, considero que, da palavra à prática, vai uma grande distância”. O setor dos resíduos está entregue a “Entidades Gestoras que nascem como cogumelos”, lamenta a responsável, constatando que aquilo que fazem é “gerirem uma ecotaxa paga pelos consumidores” para que os produtos que estes adquirem sejam reciclados no fim de vida: “Urge considerar o setor dos resíduos como uma indústria de primeira linha e não como um grupo de empresários que precisa de ser controlado por meia dúzia de organizações, cuja eficácia é comprovadamente má”. Já sobre a pandemia, a presidente da APOGER felicita o papel “muito importante” que as Câmaras tiveram no “serviço de recolha e tratamento dos resíduos urbanos”, provando a “importância e a indispensabilidade dos seus serviços”. Mas, ainda é cedo para falar em “aprendizagens”, até porque o PRR é praticamente omisso ao setor: “Os resíduos não existem quando comparados com os outros setores”. Apesar da importância da “bazuca”m na perspetiva de Quitéria Antão, carece de “detalhe” e “informação” sobre como será aplicado e como foram definidas algumas das prioridades: “Não basta apregoar aos sete ventos a nossa modernidade (verde), quando somos ineficazes naquilo que já sabemos fazer (verde)”. Por isso, o PRR não pode ser um conjunto de “intenções”, mas tem de possuir um “fundamentações sólidas” para o investimento: “É urgente injetar dinheiro estrutural nas empresas privadas de reciclagem de resíduos, confiar nos empresários, de forma a promover a iniciativa privada, e deixar que o mercado dinamize o mercado”, sucinta.
[blockquote style=”2″]Há um défice estrutural de interiorização individual, social e política[/blockquote]
Tratando-se de um setor “fortemente condicionado pela definição estratégica de políticas públicas a nível nacional”, o nível de atuação do Governo não parece que tenha sido bem-sucedido, na medida em que os problemas fundamentais se mantêm há vários anos. Esta constatação é de Paulo Praça, presidente da Direção da ESGRA (Associação para a Gestão de Resíduos), lamentando que as diferenças com o setor da energia sejam abissais: “Há cerca de 20 anos, o setor da energia sofreu uma mudança profunda e a diferença no desempenho é que foi definido um plano nacional de ação, que gozou de uma forte determinação política” e de planos nacionais para dotar o país dos meios e capacidade de ação necessários. Mas essa determinação “não se tem verificado no caso dos resíduos, o que se traduz num efeito de arrastamento de problemas e decisões por resolver”. E a pandemia parece não ter contribuído para que houvesse “mudanças significativas do lado do comportamento da população, nem foram adotadas medidas que poderiam ter até constituído uma janela de oportunidade para uma maior responsabilização que se traduzisse numa melhoria significativa na forma como são separados e descartados os resíduos produzidos”. Paula Praça não tem dúvidas de que o setor dos resíduos tem tido a capacidade de “cooperação e de “resposta”, preservando sempre a “saúde pública”, a “limpeza e higiene dos espaços públicos”. No entanto, ao contrário de outros setores e atividades, os Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos (SGRU) não beneficiaram de regimes de moratórias ou de isenção: “Julgo que há um défice estrutural de interiorização da importância do papel da gestão e tratamento de resíduos urbanos para a qualidade de vida e do ambiente como nós a conhecemos”. Também o PRR não assumiu “de forma inequívoca” o setor como uma “uma área prioritária na transição para uma Economia Circular e para o atingir da neutralidade carbónica”. Numa altura em que se está muito longe de atingir as metas comunitárias, o presidente da Direção da ESGRA pede para que sejam tomadas “medidas verdadeiramente estratégicas a longo prazo, de modo a que não estejamos a discutir os mesmos problemas e soluções”.
[blockquote style=”2″]Criação de sinergias industriais com outros setores de atividade económica[/blockquote]
Quando comparado com outros setores, o dos resíduos tem uma natureza marcadamente diferente: “O modelo de negócio é distinto, assim como a natureza dos serviços prestados. A diversidade dos recursos recolhidos, a sua dispersão e a potencialidade de transformação em materiais a integrar mercados de matérias-primas secundárias encontra-se numa fase de maturidade mais próxima do mercado” do que no setor das águas e a “estrutura de mercado do setor da energia é muito distinta da do setor dos resíduos”, principalmente na “concorrência entre entidades”. Acresce ainda que os stakeholders dos três setores têm funções distintas, com o “ comportamento individual” a ser “fundamental para o alcance das metas impostas”. Lígia Pinto, presidente da APESB (Associação Portuguesa de Engenharia Sanitária e Ambiental), lembra que a “circularidade no setor dos resíduos e o uso eficiente de recursos” orientam a estratégia do PERSU2030 até ao final desta década: “Estas orientações colocam desafios na integração dos materiais em mercados de matérias primas secundárias, mas igualmente no design dos novos produtos e na análise do seu ciclo de vida”. Neste cenário, a responsável defende a urgência de criar “sinergias industriais” com outros setores económicos nas diversas fileiras de recursos. Ao Governo, apela-se a uma “atuação exigente, multidimensional e integradora” da diversidade existente: “O Governo tem definido um caminho ambicioso, cujo resultado será visível à medida que a estratégia for implementada”. Para a docente, a pandemia foi um “abre olhos”, pois “mostrou quais os setores em que o #fiqueemcasa não foi possível. O período (de confinamento) exigiu às entidades em alta e baixa uma alteração significativa na gestão dos recursos humanos e tecnológicos”, explica. Além de ter alterado as “quantidades e a tipologia de resíduos gerados pela alteração de hábitos e padrões de consumo”, a pandemia também alertou para a “necessidade de se tomar medidas de proteção de saúde pública”, tendo ainda “eliminado a triagem de resíduos e o seu encaminhamento direto para incineração ou aterro”, obrigando a que sejam “criadas condições que permitam retomar a trajetória pré-pandémica”. A não individualização deste setor no PRR deve-se ao facto de ser “transversal. Ainda assim, seria importante a menção da sua transversalidade e a necessidade da sua mudança na cadeia de valor de materiais”, conclui.
Este artigo foi publicado na edição 90 da Ambiente Magazine.
Foto: Esgra