Reindustrialização: “Não é uma moda nem um delírio, é uma necessidade urgente”
Numa altura em que se fala cada vez mais no pós-Covid-19, são vários os especialistas que defendem ser o momento para Portugal reconstruir uma economia sustentável, verde e justa. O Plano da Ação para a Economia Circular da União Europeia, o Pacto Ecológico Europeu e a proposta do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) pretendem assim dar um contributo relevante para a descarbonização e para a transição climática. “A Reindustrialização para a Circularidade” serviu assim de mote para o webinar promovido, no dia 20 de maio, pela Associação Smart Waste Portugal (ASWP) e pela Fundação de Serralves (FS).
Num ano marcado pela pandemia da Covid-19, as indústrias viram-se obrigadas a rever planos e modelos operacionais, sendo que “adaptação”, “resiliência” e “superação” foram as palavras de ordem. Quem o disse foi André de Albuquerque, administrador da Bondalti, destacando também a importância da relação que foi possível operar entre os vários atores da cadeia de valor. A pandemia da Covid-19 marca também a forma como se passa a encarar o mercado, “ou seja, de uma forma muito mais estruturada, com uma abordagem mais preditiva como resposta a todo o tema da incerteza com que fomos confrontados”, explica. A isto, acresce a “leitura ampla do ecossistema”, isto é, a “capacidade de compreender não só as tendências, drivers da procura, realidade específica de cada um dos nossos clientes” mas também, toda a “componente das matérias-primas e aspetos regulatórios”, acrescenta.
Na indústria química, a jornada da sustentabilidade não se iniciou agora. Aliás, nos últimos 30 anos, foi capaz de “reduzir o consumo de energia elétrica em 13%, o petróleo em 30% e a emissão de gases com efeito de estufa em 50%”, ao mesmo tempo que “duplicou o consumo de energia renovável, superando a média da indústria manufatureira na Europa”, destaca. Ainda assim, são notórios os desafios que esta indústria tem pela frente: “O que até agora foi feito será a parte mais fácil que assentou em ganhos de eficiência e numa redução de resíduos”, reconhece. Mas o tema do carbono e das pessoas na ótica da matéria-prima é muito importante: “Ao contrário daquilo que é possível fazer na produção da energia, não é possível descarbonizar a produção de um conjunto de produtos da química orgânica que são essenciais para dispormos de bens elementares do nosso dia a dia (frigorífico, automóvel ou equipamentos médicos) que, sem os quais, teríamos que enfrentar um enorme retrocesso civilizacional”. De acordo com André Albuquerque, o carbono não está nestes materiais por “mero” acaso: “É necessário e traz características a estes materiais”, vinca. E um estudo publicado recentemente, que quantificou a quantidade de carbono que é necessário ter nestes produtos, revela que são precisos “450 milhões de toneladas” por ano. Este valor levanta mais um desafio: “Como é que conseguimos ter este carbono de fonte renovável: 85% tem origem fóssil; 10% apenas na biomassa; 5% vem da reciclagem?”. A solução primária, destaca o administrador da Bondalti, tem que ver com a substituição dos 85% por “mais reciclagem” e por “mais biomassa” e, sobretudo, por “captura e utilização” do dióxido carbono “como matérias-primas no fabrico de espumas a para colchão, calçados esportivos, ou elementos do interior dos automóveis”, exemplifica.
Para André Albuquerque, a indústria química é um “ator incontornável” na descarbonização da economia e a circularidade é algo que tem, desde 2019, uma relevância grande na atividade corrente da Bondalti: “No Complexo Químico de Estarreja, passamos a produzir um terço das nossas vendas de color a partir de um subproduto do principal cliente”. E fazem-no, através da “substituição de matéria prima tradicional (sal) consumindo apenas energia elétrica que já tem uma percentagem maioritariamente renovável” e, ao mesmo tempo, “produzindo 800 toneladas de hidrogénio que incorporamos na produção e noutros produtos que fabricamos”, destaca.
[blockquote style=”2″]Materiais de reutilização de embalagens[/blockquote]
Do lado do setor das bebidas e da alimentação, António Eusébio, presidente do Conselho de Administração da Sumol+Compal, defende que a economia circular, dentro da agenda de sustentabilidade, é o que permite o equilíbrio entre criar valor e satisfazer as partes interessadas. Nestas matérias, apesar dos esforços que foram necessários para controlar a pandemia, a empresa não deixou de pensar no futuro: “Apostamos em projetos de melhoria de eficiência operacional, na transformação digital e, investimos nas pessoas”. Para António Eusébio, quando se fala em economia circular a incorporação de matérias-primas de embalagens recicladas, a retoma de embalagens PET, e os materiais de reutilização de embalagens” são temas de extrema relevância. No primeiro tópico, a Compal+Sumol prevê antecipar a meta estipulada de incorporação de PET reciclado em 25% de 2024 para 2022: “É um percurso que temos vindo a fazer. E na Água da Serra da Estrela, já incorporamos 25% de PET reciclado nas embalagens. Este ano, nas embalagens de 6 litros queremos passar a incorporar 100% de PET reciclado”, afirma. Também na retoma de embalagens PET, as metas são bastante ambiciosas, mas possíveis de serem atingidas, através da implementação de um sistema de depósito de reembolso: “É um sistema inovador e único, no qual a Sumol+Compal está ativamente a colaborar”. Por fim, nos materiais de reutilização de embalagens, António Eusébio refere que, desde há bastante tempo, são utilizadas na indústria de bebidas: “Espera-se uma recuperação do peso da importância dessas embalagens”, defende, assegurando ser um caminho que a empresa está a traçar.
[blockquote style=”2″]Conhecimento, capital, correta gestão de tempo e meios para se criar valor[/blockquote]
A Efacec, que opera nos setores da energia, da engenharia e da mobilidade, olha para as crises como momentos de grandes oportunidades: “Não queremos repetir muitas vezes, mas queremos ter histórias bonitas para contar depois da crise resolvida”. Ângelo Ramalho, CEO da Efacec, acredita que na crise pandémica que acelerou o “individualismo” e o “distanciamento social”, a solidariedade deve ser um comportamento assumido pelas empresas, no sentido de serem “parte ativa” na resolução de uma problemática complexa e que vai demorar o seu tempo.
Do lado da sustentabilidade, o tipo de material que é usado nos processos de fabrico não colocam particular preocupação à empresa: “Tudo aquilo que não utilizamos é facilmente reciclável e é reciclado naturalmente”. No entanto, a “preocupação maior” tem que ver com o produto que é desenvolvido e que é utilizado pelos clientes: “Como é que conseguimos reduzir a sua pegada?”. Para responder a estes desafios, Ângelo Ramalho deu o exemplo do transformador de potência, onde conseguiram reduzir a máquina em 10% em termos peso: “Estas máquinas pesam 400 toneladas, sendo que, 10% de redução representam menos 40 toneladas de aço e materiais nobres como o cobre ou o alumínio”, exemplifica, acrescentando que os “óleos em menor quantidade” também são uma grande valia neste processo. A isto acresce a logística e o transporte: “A redução do equipamento permite menos cargas nas estradas, percursos mais otimizados e, assim, impactos muito significativos”, destaca.
Olhando para os segmentos de atividade mais recentes, como a mobilidade elétrica, o CEO da Efacec refere que as preocupações andam muito em torno do “desenvolvimento das baterias”, em termos das “matérias-primas que usam” ou a “densidade energética” que têm: “(Aqui,) a nossa atuação é como é que as carregamos em tempo útil e conveniente”. No entanto, um tema que parece ser da responsabilidade da empresa tem que ver com a “reutilização dessas baterias”, na medida em que terão um “tempo limitado” para serem utilizadas em “veículos em movimento” e, apesar de “perderem performance”, Ângelo Ramalho destaca o facto de poderem ter “utilização estacionária” em matéria de “balanceamento das redes” ou de “armazenamento de energia”. Portanto, há um caminho imenso nestas matérias: “É necessário conhecimento, capital, correta gestão de tempo e meios para que consigamos criar valor”, remata.
[blockquote style=”2″]Não podemos ter uma economia saudável, se não tivermos uma banca comercial saudável[/blockquote]
Na discussão da reindustrialização e da transformação circular há um ponto que é fundamental: “No mundo atual, estamos numa encruzilhada que tem que ver com o tipo de civilização que somos. Transformamos recursos em lixo a uma velocidade sem precedentes na história. E, se se mantiver este modelo de desenvolvimento económico, vamos falhar”. O alerta é de António Costa Silva, autor da visão estratégica do PRR, que defende a importância da transição energética, sem descurar a equação da necessidade de transformar o atual modelo económico: “A nossa economia não é saudável e o sistema capitalista baseia-se num consumo exponencial de recursos”. E nesta transformação a reindustrialização é de extrema importância: “Não é uma moda nem um delírio, é uma necessidade urgente”. E “mudar de vida é mudar o modelo de desenvolvimento económico”, bem como“mudar o consumo exponencial de recursos”, defende: “Se continuarmos assim, nos próximos 20 anos, vamos duplicar o uso de matérias-primas no planeta e vamos produzir mais 70% de lixo”, atenta. A reindustrialização com base na transformação circular revela-se assim de grande importância: “Providencia um crescimento regenerativo e um eixo da abordagem que é dissociar o crescimento económico do uso cada vez mais exponencial dos recursos”, destaca. Na ótica de António Costa Silva, “transformar lixo em recursos” é, precisamente, “operar ao contrário do paradigma” que é vigente, centrando toda a abordagem naquilo que pode ser o futuro: “A valorização dos resíduos e a recuperação das matérias-primas podem ser uma fonte de criação de valor no país”. Por isso, a necessidade de “reimaginar o mundo em que vivemos” é algo que deve ser central, além de “consumir e usar os recursos que a natureza consegue restituir”, defende. E quando se pensa no futuro, António Costa Silva destaca a importância de se “combater a noção do desperdício e transformar o desperdício em recurso”.
O PRR, enquanto alavanca para a necessária transformação da indústria nacional, assegura pilares de grande importância para a reindustrialização e para a transformação circular, nomeadamente o investimento em competência e qualificações: “Precisamos de mais competências na química, na física e nas nanotecnologias que podem servir de eixo estratégico no sentido de criar novos materiais”, destaca. Além disso, há um grande plano de investimento de apoio às empresas com legendas mobilizadoras: “O Estado não deve escolher campeões nacionais. O Estado deve deixar que as empresas submetam os seus projetos em consórcio”, defende. António Costa Silva reitera assim pela importância de existir uma “grande agenda mobilizadora” para a economia circular: “Cria valor no país, diminui a dependência de matérias-primas do exterior e cria competência tecnológicas nacionais que depois podemos exportar”. A isto, acresce o facto de se “aliar tudo o que é economia circular com as biotecnologias”, defende.
Ao nível da capitalização, o autor da visão estratégica do PRR é perentório: “Não podemos ter uma economia saudável, se não tivermos uma banca comercial saudável”. Por isso, defende, é preciso criar e desenvolver o banco de fomento: “Somos o país da indecisão!”, alerta.
Por fim, o potencial da digitalização é algo que o PRR também aposta fortemente: “Se soubermos usar as plataformas eletrónicas e desenvolver na área da economia circular, empresas competentes e que tenham tecnologia de ponta, podem ser micromultinacionais que operam num mundo inteiro”. Em matérias de digitalização, “há oportunidades brutais”, remata.