Qualidade do ar em espaços citadinos: Portugal precisa de mais fiscalização e valorização técnica
A estatística aponta para que, todos os anos, a poluição do ar provoque cerca de dois milhões de mortes prematuras. Este dado contrasta com o facto de este ser recurso o único que o ser humano consome desde o nascimento até à morte. A Ambiente Magazine falou com quatro especialistas para perceber se esta problemática faz parte das medidas políticas; e que estratégias estão a ser tomadas para preservar ou melhorar a qualidade do ar que respiramos.
Para Pedro Nunes, responsável da Associação ZERO nas áreas do Clima, da Energia e da Mobilidade, a resposta é não. Apesar dos limites estipulados na Diretiva Quadro da Qualidade do Ar, o especialista explica que os níveis de poluentes em vários locais das cidades portuguesas são, regra geral, muito altos. Considera, assim, que “o Governo e as autoridades locais já deveriam estar a planear preparar as nossas cidades para a legislação que aí vem, mas tal não se vê”.
A opinião é partilhada com Carlos Pedro Ferreira, diretor geral do grupo Sondar.i, empresa do ISQ, que critica o “formato minimalista” com que “a qualidade do ar tem sido tratada”. O responsável dá o exemplo das Redes de medição para avaliar a qualidade do ar, e afirma que não estão a ter o tratamento adequado. A dimensão é a mínima permitida, por área e por número de habitantes, as calibrações são igualmente reduzidas e há parâmetros que não são medidos por falta de equipamento adequado. As entidades competentes para a gestão destas redes estão também “esvaziadas de pessoas para tratarem a informação disponibilizada”, segundo Carlos Pedro Ferreira.
Já Isabel Lança, presidente do Conselho Diretivo da Região Centro da Ordem dos Engenheiros (OdE), afirma abertamente que “a qualidade do ar não é uma das políticas valorizadas”. A engenheira do ambiente destaca “o caso particular da saúde”, explicando que “a poluição do ar é a causa provável de aproximadamente dois milhões de mortes prematuras por ano, a nível mundial”. Na opinião da responsável, ainda assim, o quadro legislativo nacional é “abrangente e tecnicamente adequado, quer na vertente das emissões gasosas, quer na gestão e na avaliação da qualidade do ar”. Pedro Nunes não é da mesma opinião, e diz mesmo que os valores limite de poluentes no ar estão “muito desatualizados”, face ao que a ciência médica diz e que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda.
De resto, os quatro especialistas reconhecem que a legislação portuguesa é definida com base nas diretivas europeias. Por isso, o responsável da ZERO sugere que as normas europeias sejam revistas, para que estejam alinhadas com as recomendações da OMS. Depois, sim, “é preciso transpor com urgência essas normas para a legislação nacional.
“A maior fragilidade é a que se refere à qualidade do ar interior”, considera Isabel Lança, apontando para “lacunas técnicas graves no que concerne à monitorização e implementação de medidas corretivas”.
Falta de transparência
João Cavaleiro Rufo, investigador no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), defende o mesmo, ao especular que a última atualização relativamente à qualidade do ar interior “foi escrita com a ‘engenharia’ em mente e pouca importância foi dada aos aspetos de saúde pública”. Exemplo disso é o método de avaliação dos compostos orgânicos voláteis, que é efetuado apenas com base no limite geral de um conjunto alargado de substâncias, não tendo em conta os níveis específicos de cada uma. Há ainda “exemplos de legislação sem qualquer cabimento” que levam o investigador do ISPUP a sugerir a necessidade de rever a lei, mas é a falta de transparência que mais o preocupa. O especialista refere-se a aspetos como a publicação dos parâmetros da qualidade do ar, nas estações de monitorização, cujos valores absolutos apresentados raramente fazem referência aos dados brutos, inviabilizando assim “a análise causa-efeito para motivos de saúde pública”.
De outra perspetiva, a avaliação que Carlos Pedro Ferreira faz da legislação portuguesa vai ao encontro da ausência de transparência. O diretor geral do Sondar.i fala numa falta de vontade política “não assumida” que, vendo no ambiente uma ameaça ao desenvolvimento económico, “simplifica ou anula as responsabilidades com a qualidade do ar”. Resultado disso é o “progressivo esvaziamento de meios humanos e técnicos” que o responsável referira anteriormente.
Isabel Lança nota igualmente uma escassez de recursos, ao reconhecer uma “falta de articulação entre as várias entidades”, quer os responsáveis pela intervenção, quer os competentes governamentais, no sentido de adequar e complementar estratégias e políticas. Para a especialista, é preciso disponibilizar mais meios “para a efetiva implementação da legislação e capacitação técnica em matéria de qualidade do ar”.
“Mais transporte público, com qualidade e com horários mais compatíveis”
De acordo com as declarações dos especialistas, a qualidade do ar não é, de facto uma prioridade política em Portugal. Não obstante, se compararmos as cidades portuguesas às homólogas europeias, verificamos que a qualidade do ar em Portugal não apresenta valores tão pessimistas. “De uma forma geral, diria que não se destaca pela negativa”, responde João Cavaleiro Rufo. O investigador do ISPUP fez apenas um reparo nos níveis de ozono, “eventualmente elevados devido às condições climatéricas e geográficas do nosso país”, assinala.
O mesmo é referido por Isabel Lança. Segundo a Agência Europeia do Ambiente (AEA), Funchal e Faro são duas das cidades europeias com o ar mais limpo, em 2022. A especialista sublinha que existem problemas relativos à concentração de poluentes, “em cidades como Lisboa e Braga, e eventualmente no Porto e noutras cidades”, devido à localização territorial. Contudo, afirma que, “na generalidade, a qualidade do ar é boa”.
Pedro Nunes, pelo contrário, defende que comparar os parâmetros da qualidade do ar é difícil, devido a “alguma falta de monitorização geograficamente alargada, fina e fidedigna da qualidade do ar nas nossas cidades”. Para contornar essa questão, propõe uma resposta possível noutra via: “é essencial estabelecer um conjunto de políticas públicas urbanas que concertadamente façam diminuir o trânsito automóvel nas cidades”, sugere.
Os Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) são “estratégias de mobilidade integradas e sustentáveis nas cidades, com o objetivo de melhorar a acessibilidade, eficiência, segurança, e sustentabilidade ambiental dos sistemas de transporte urbano”. Contudo, em Portugal, estes PMUS não estão generalizados. Lisboa, por exemplo, é a única capital europeia sem esse plano estratégico, avança o especialista da ZERO. A resposta de Carlos Pedro Ferreira para melhorar a qualidade do ar é semelhante: “mais transporte público, com qualidade e com horários mais compatíveis”. O diretor geral da Sondar.i alerta, porém, que é preciso resiliência nesta mudança.
Já Isabel Lança acredita que a solução é “uma literacia eficaz” no sentido de responder às questões da qualidade do ar numa vertente mais preventiva. Defende a “implementação urgente” de estratégias com base a informação disponível, e também de mais indicadores que permitam “a caracterização dos dados e a avaliação das metas estabelecidas de redução de doenças associadas à poluição atmosférica”. Por outro lado, os resultados da AEA mostram que “é necessária uma ação muito mais forte” para que a União Europeia alcance os objetivos de erradicar a poluição no ar.
João Cavaleiro Rufo concorda com a perspetiva da literacia, ao reconhecer que “há uma clara falta de divulgação da problemática para a comunidade portuguesa, em geral”. “Muitas das emissões de poluentes ou comportamentos de risco de exposição poderiam ser evitados se os agentes envolvidos entendessem a problemática”, justifica.
Sobre a legislação, o responsável do ISPUP recupera “algumas lacunas” que havia mencionado anteriormente, e, a nível fiscal, destaca “as fiscalizações da qualidade do ar” que são “efetuadas de forma pouco comum”. Este problema agrava-se no sentido em que muitas patologias potencialmente associadas à qualidade do ar só são “diagnosticadas anos após o início da exposição”.
Este artigo foi incluído na edição 99 da Ambiente Magazine