“Portugal não é o caixote de lixo da Europa, nunca foi e nunca será”
Esta é a segunda de três partes da entrevista que a Ambiente Magazine realizou a Rui Pedro Santos, membro da direção da AEPSA – Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente. O responsável esclarece que as transferências de resíduos entre países da UE já existem há algum tempo e não se limitam a aterros de resíduos não perigosos, sendo sujeitos a “uma escrupulosa fiscalização e monitorização por parte de todos os países por onde circulam”.
Defendem uma revisão do Plano Estratégico de Gestão de Resíduos Industriais, que data de 2002, que seja atualizado em linha com os objetivos da Economia Circular, entre outros. Em termos concretos que linhas de orientação defendem?
A AEPSA é uma entidade com reputadas competências nesta área, pelo capital de know-how que reúne nos seus associados, e apresenta-se como um interlocutor privilegiado que, sem dúvida, pode contribuir de forma significativa para a discussão e adoção de um novo PESGRI, mais robusto, eficaz e alinhado com o novo modelo de circularidade da economia e dos negócios.
Na próxima revisão do PESGRI, para a qual o Ministério do Ambiente pode contar com a ativa participação da AEPSA, deverão ser discutidos quais os contributos que o setor dos resíduos industriais (não urbanos) poderá aportar para o cumprimento das metas ambientais identificar os mercados emergentes e mais urgentes do ponto de vista ambiental e de sustentabilidade, bem como os mecanismos financeiros que o Estado deverá alocar a este setor.
A título de exemplo, as metas definidas pela União Europeia referem-se aos resíduos urbanos. Nos resíduos não urbanos, em 2018 foram produzidos 10,6 milhões de toneladas de resíduos industriais (não urbanos) ou seja, o dobro dos 5,4 milhões de resíduos urbanos produzidos em Portugal.
Aproximadamente 84% destes resíduos industriais foram reciclados – uma taxa muito superior à alcançada nos resíduos urbanos e que ronda, na melhor das hipóteses, os 35% – e os restantes 10 a 15% foram, maioritariamente, tratados por deposição em aterro.
Esta é uma clara demonstração que a rede de tratamento de resíduos industriais regista melhores resultados do que a dos urbanos. Estes indicadores justificam-se, sobretudo, pelo número de operadores em atividade, pelas taxas superiores de separação na origem e, essencialmente, porque esta atividade opera com base nas leis de livre concorrência do mercado.
A gestão dos aterros de resíduos urbanos estão também a ser questionados por vários quadrantes. Qual a vossa visão sobre esta área?
Consideramos que este tema é transversal no setor de tratamento de resíduos, que carece de uma política clara e transparente de comunicação junto da população para clarificar a importância de serem mantidos os sistemas de tratamento de resíduos, quer sejam urbanos ou não urbanos, perigosos ou não perigosos. Esta comunicação deve ser clara, objetiva e isenta de demagogias ou outros fatores que contribuam para a desinformação da opinião pública.
Também partilham da ideia de que estes (aterros de resíduos urbanos) se poderão esgotar mais rápido do que se pensa, que motivos podem ser apontados a esta visão. Quais os caminhos que devem ser trilhados para mitigar esta realidade?
A AEPSA não poderá deixar de evidenciar o reconhecimento que foi dado pelo Ministro do Ambiente e Ação Climática ao papel extremamente relevante que os aterros de resíduos industriais (não urbanos) têm no panorama nacional, sendo um dos instrumentos fulcrais para assegurar a proteção do ambiente e da saúde pública, tal como a AEPSA tem vindo sistematicamente a salientar.
No entanto, recordo que Portugal dispõe de dois sistemas paralelos, mas distintos na gestão de resíduos. Por um lado, o dos resíduos urbanos, provenientes das habitações, que são geridos nos sistemas públicos de tratamento de resíduos. Por outro lado, os sistemas de resíduos industriais (não urbanos) – provenientes dos setores do comércio, serviços e da própria indústria- assegurados por gestão e investimentos privados- sem recurso a qualquer apoio financeiro do Estado, ou da União Europeia- muitos dos quais são geridos por empresas associadas da AEPSA.
Estes sistemas estão ainda longe de atingir a capacidade licenciada e demonstram, nesta fase de pandemia, uma elevada resiliência, fiabilidade e garantia de continuidade de operação, mesmo nas condições atípicas e difíceis em que vivemos e que se avizinham.
Caso se venha a verificar um cenário excecional de esgotamento das soluções existentes para tratamento de resíduos urbanos, face ao atual contexto de pandemia, os operadores de aterros de resíduos industriais (não urbanos) certamente demonstrarão a sua disponibilidade e capacidade para gerir também essa tipologia de resíduos.
Também foi neste período levantada a questão dos resíduos que estão a ser encaminhados para pedreiras, qual a vossa visão sobre esta temática?
Atualmente, o encaminhamento de resíduos para pedreiras ainda ocorre em grande escala, movimentando grandes volumes de resíduos, que necessitam de triagem e tratamento adequado e que, ao serem efetuados em pedreiras – cujo objetivo seria a deposição de resíduos inertes- não são alvo dos mecanismos de proteção e controlo ambiental que são realizados nos aterros de resíduos não urbanos.
Considerando que um grande volume dos resíduos do setor da construção tem origem em obras de demolição e remodelação de imóveis, facilmente se gera um conjunto de resíduos não inertes que não podem ser depositados sem controlo em pedreiras. Importa salientar que os RCD correspondem a cerca de 1/3 de todos os resíduos produzidos a nível europeu e em Portugal.
Essas situações são já, hoje em dia, uma ameaça patente e uma forma de concorrência desigual face aos aterros de resíduos não perigosos licenciados, que colocam em causa a sustentabilidade dos mesmos.
A AEPSA considera que a tutela deve reforçar a fiscalização nesse setor e assegurar a proibição das operações que se constatem serem ilegais. A associação defende que seja igualmente aplicada a Taxa de Gestão de Resíduos nas situações em que se utilizem pedreiras para a deposição de resíduos inertes.
A importação de resíduos de outros países europeus de que forma é olhada pelos operadores do setor? Que desafios na vossa opinião se colocam nesta área e se consideram que há temáticas que deveriam ser clarificadas?
As transferências de resíduos entre Estados Membros (EM) da União Europeia são processos sujeitos a uma escrupulosa fiscalização e monitorização por parte de todos os países por onde circulam. Desde o EM onde os resíduos foram produzidos, aos países por onde circulam, e finalmente ao EM onde se realiza o processamento final do resíduo. Estas transferências não são recentes e não se limitam aos aterros de resíduos não perigosos, abrangem igualmente transferências de resíduos perigosos, resíduos hospitalares, bem como resíduos para valorização energética e material.
Portugal não é o caixote de lixo da Europa, nunca foi e nunca será. Essa visão não fazia sentido na década de 80 e muito menos agora.
O tratamento de resíduos não perigosos, não urbanos, em aterro é essencial e incontornável, consistindo numa atividade regulada e com uma fiscalização efetiva e muito rígida. Por isso, não se pode estimular o populismo e oportunismo, que se baseia em factos imprecisos, incorretos e estigmas que incentivam à síndrome do “NIMBY: Not In My Back Yard”, ultrapassada há mais de 30 anos e que agora perigosamente começa a renascer.
A título de exemplo, a procura de destinos de tratamento de resíduos nos países de origem, todos da União Europeia, tem como génese a dificuldade ou impossibilidade desses países se conseguirem dotar de infraestruturas capazes de satisfazer as suas próprias necessidades.
Nesta área, Portugal detém uma excelente infraestrutura e know-how para o tratamento, quer de resíduos perigosos, quer não perigosos, sendo uma importante fonte de receitas e exportação de serviços de valor acrescentado, num mercado que tem potencial de crescimento, tanto ao nível dos mercados de origem, como ao nível de tipologias de tratamento.
A própria Comissão Europeia reconheceu, ainda este ano, o importante papel dos movimentos transfronteiriços de resíduos na economia europeia, emitindo uma nota técnica e uma recomendação aos Estados Membros, onde apelava a que fosse garantida a continuidade dos movimentos transfronteiriços e a criação de uma “green lane” para o transporte e gestão dos mesmos. Esta orientação demonstra a importância da partilha de infraestruturas dentro da comunidade, assim como a importância das infraestruturas nacionais em prol do equilíbrio social, sanitário e económico do espaço europeu.
É um pouco estranho que em Portugal se apele, e bem, aos mecanismos de solidariedade europeia, relativamente à pandemia do COVID-19, defendendo uma mutualização da dívida e dos custos à escala europeia, mas que em contraciclo, no caso da gestão de resíduos, defendam perante o problema pontual de alguns países europeus, que cada país deve ser autossuficiente e tratar dos seus próprios resíduos.
A transferência de resíduos para Portugal não coloca em causa a autossuficiência disponível do país, pelo contrário: permite aos respetivos promotores a sustentabilidade financeira e a recuperação de investimento efetuado a médio e longo prazo. As infraestruturas nacionais não apresentam sinais de esgotamento, têm horizontes de projeto superiores a 30 anos e capacidade instalada e licenciada para vários anos de atividade.
O tratamento de resíduos quer seja por aterro, ou outras formas de tratamento, é um tema sério, rigoroso e crescentemente mais especializado que segue um conjunto complexo de regras nacionais e comunitárias de licenciamento e exploração, pelo que a AEPSA considera que a desinformação sobre estes temas deve ser solidamente combatida com informação rigorosa e transparente, sem demagogias, e contar com maior esforço e envolvimento das entidades reguladoras nacionais.