Portugal faz uso inédito do tratado europeu contra mais dez anos de Almaraz

Portugal recorreu a um mecanismo pouco comum para apresentar queixa contra Espanha por causa da construção do polémico armazém de resíduos radioativos na central de Almaraz, obra que permitirá prolongar os anos de funcionamento da estrutura, noticia o jornal Público.

Assim, Portugal invoca o artigo 259.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), o que acontece pela primeira vez num diferendo entre Estados-membros sobre uma central nuclear, assegura a Comissão Europeia, chamada a intervir no processo.

O recurso utilizado, considerado um ato de dureza nas relações entre Estados, pelo menos nesta matéria, insta a Comissão Europeia a fazer um parecer fundamentado no prazo de três meses, sem o qual Portugal terá o direito de ir diretamente ao Tribunal de Justiça da União Europeia. “Qualquer Estado-membro pode recorrer ao Tribunal de Justiça da União Europeia, se considerar que outro Estado-membro não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força dos tratados”, começa assim o artigo em causa do Tratado.

Não é só um recurso inédito para um diferendo sobre o nuclear. Em geral, é “um meio de ação pouco utilizado, apesar de no passado terem existido ações desta natureza”, sendo mais comum que seja a Comissão Europeia, enquanto guardiã dos tratados, a tomar a iniciativa de estudar e investigar os Estados alegadamente incumpridores, explica Patrícia Fragoso Martins, jurista especializada em Direito Europeu e professora da Universidade Católica. “Os Estados tendem a evitar resolver os seus diferendos judicialmente, confiando que a comissão, se houver indícios suficientes e relevantes de violação do Direito da União, fará esse trabalho”, acrescenta.

Miguel Sousa Ferro, jurista de Direito Europeu, Direito Nuclear e professor na Universidade de Lisboa, considera que o parecer fundamentado previsto no tratado é “necessariamente a preparação de uma decisão de incumprimento” e que este recurso coloca pressão sobre a Comissão Europeia, podendo esta decidir fazê-lo ou não.

“Vamos estudar a queixa. Tal como previsto no artigo 259.º do TFUE, a comissão dará a Portugal e Espanha a oportunidade de apresentarem o seu caso e observações. A comissão estará também, se necessário e desejado pelas partes, disponível para apoiar o diálogo bilateral sobre medidas de segurança nuclear”, respondeu o porta-voz da Comissão Europeia para o Ambiente, Enrico Brivio, que reconhecia há uns dias que esta é “uma questão complexa”.

A queixa, entregue no passado dia 16, seguiu-se à recusa de Espanha em atender à reivindicação portuguesa para que se fizesse uma avaliação de impacto ambiental fronteiriço à construção da nova estrutura que permitirá à central prolongar os seus anos de funcionamento. Embora Espanha não o assuma oficialmente, o prolongamento da vida de Almaraz por mais 10 anos (além dos 10 que lhe tinham sido concedidos) já faz parte do debate interno do país – e este é o ponto que preocupa tanto o Governo português como os ambientalistas, face aos riscos de segurança em causa. Deputados espanhóis da oposição de esquerda juntaram-se entretanto à luta contra o plano. Um dia depois da entrega da queixa, o Conselho de Segurança Nuclear de Espanha relatou o primeiro incidente do ano, uma falha num dos botões do sistema auxiliar de alimentação de água, apesar de considerado sem impacto no ambiente.

Portugal queixa-se de não ser ouvido e alega a violação das regras europeias por entender que o projeto espanhol tem impacto, do lado português, sobre as populações próximas da fronteira e sobre o curso do rio Tejo.