Porquê o Restauro da Natureza?

Por: Humberto Delgado Rosa, Diretor para a Biodiversidade DG Ambiente, Comissão Europeia

Desde que a defesa do ambiente ganhou relevância política, a natureza e biodiversidade foi demasiadas vezes tida como uma parte menor ou secundária. Água, resíduos, poluição, e depois as alterações climáticas, tomaram muitas vezes a dianteira das atenções. A conservação da natureza era na prática vista como um tema menos relevante. E no entanto, nos últimos a natureza tem vindo a ascender na escala da relevância política europeia e global. Uma das razões tem a ver com a compreensão crescente de que as alterações climáticas e a perda de biodiversidade estão intimamente associadas: inter-dependem e inter-influenciam-se de um tal modo, que não é possível resolver um problema sem o outro. De facto, a saúde dos ecossistemas é determinante quer para a absorção e retenção de carbono, quer para a proteção contra os impactos dos extremos climáticos, como secas, cheias, temporais ou ondas de calor. Por outras palavras, os ecossistemas em boas condições prestam serviços inestimáveis à humanidade, como os serviços de mitigação e adaptação às alterações climáticas, mas também muitos outros. Na verdade, é a natureza que nos assegura o ar, a água, os alimentos, e tantas matérias-primas de que dependemos. É a natureza que poliniza as colheitas, que assegura a produtividade das pescas, que depura as águas, que contribui para a resiliência das florestas, que protege e regenera os solos, e tanto mais.

Basta ter consciência plena da dependência estrita que os seres humanos e suas sociedades têm de uma natureza saudável, para entender que este não é um tema menor. Mas podia-se então pensar que a ação se devia concentrar na conservação de áreas protegidas, ou de uma amostra considerável de ecossistemas, para termos tudo o que precisamos. Mas não é assim. Conservar os maiores valores naturais que ainda existem é fundamental, mas precisamos de ecossistemas saudáveis e seus serviços de uma forma muito mais generalizada do que só em áreas protegidas. E por outro lado, já fomos longe demais na degradação da natureza. Conservar é importante mas não basta: é também preciso restaurar. É em reconhecimento disso mesmo que estamos em plena década das Nações Unidas para o restauro dos ecossistemas. Foi por isso que em 2022 se alcançou em Montreal um acordo global histórico para a biodiversidade, com metas quantificadas para a conservação, o restauro e muito mais. E foi também por isso que a Comissão Europeia apresentou no ano passado uma proposta legislativa ambiciosa, inovadora e pioneira para o restauro dos ecossistemas europeus. Essa proposta de regulamento de restauro da natureza suscitou uma inesperada polémica, quando partes do espectro político se colocaram abertamente contra ela, invocando que o restauro da natureza poria em causa a segurança da produção de alimentos, a produtividade das pescas, o fornecimento de biomassa, ou o desenvolvimento das cidades. Ora, a realidade é que o regulamento de restauro da natureza visa explicitamente proteger e assegurar esses e outros valores que dependem de ecossistemas saudáveis. Não se trata de arredar atividades sociais e económicas para dar espaço à natureza, mas antes de dar espaço à natureza para assegurar as bases dessas e de tantas outras atividades que dela dependem direta ou indiretamente. O processo de decisão sobre o teor último do regulamento cabe agora aos co-legisladores, mas parece certo que a União Europeia deverá continuar pioneira em termos de legislação de restauro da natureza.

Parece pois oportuno que esta edição se dedique ao restauro da natureza, dando aos seus leitores a oportunidade de aprofundar e entender o significado do restauro para os nossos rios, mares, florestas ou cidades. Talvez assim possamos melhor contribuir para a prazo usufruirmos de ecossistemas mais completos e mais saudáveis do que aqueles que temos hoje, a bem dos seres humanos e da própria natureza de que dependem e de que também fazem parte.

 

*Este é o editorial escrito pelo nosso “Diretor Convidado” que consta na edição 101 da Ambiente Magazine