O período pontual de seca prolongada no país foi ultrapassado. Que reflexões se devem tirar e que consequências obrigam a alterações políticas para a gestão da água daqui para a frente?
O que este ano nos mostrou foi que, em face do que já era o histórico do nosso clima mediterrânico e de algumas secas anteriores, esta teve caraterísticas diferentes, sobretudo porque se prolongou por novembro, dezembro, janeiro e quase uma parte significativa de fevereiro. A primeira reflexão a ter é pois que vamos viver períodos de seca cada vez mais frequentes, porque o número de vezes em que estão a ocorrer encurtou-se. E a segunda conclusão é que, se vamos ter de viver mais com estas situações, vamos ter de nos adaptar. Ao contrário do que muitas vezes a opinião pública possa transmitir, Portugal tem vindo a criar, nos últimos 20 anos e, sobretudo depois de 2005, uma situação bastante mais robusta do ponto de vista das suas reservas. Veja-se o caso do Alqueva. Não fora o Alqueva e esta seca teria consequências bastante dramáticas, nomeadamente para a agricultura. E a verdade é que, mesmo com a seca, tínhamos a garantia absoluta de que 2018 podia ser ultrapassado sem constrangimentos no que diz respeito ao abastecimento de água.
A terceira dimensão é que foram identificadas também algumas situações novas do ponto de vista geográfico, que historicamente não tinham problemas, o que quer dizer que a própria seca materializa-se em Portugal geograficamente de uma forma diferente. O caso de Fagilde é paradigmático pois, sendo uma região que tradicionalmente é rica em água, viveu a situação mais dramática. Portanto, por um lado, é preciso criar sistemas mais robustos e aí o papel que temos vindo a ter junto dos municípios no sentido de criarem sistemas de natureza intermunicipal. Não determinamos que o façam sempre com a AdP, mas que o façam pelo menos numa escala que seja supramunicipal, porque essa é a única maneira de termos sistemas que tenham a dimensão adequada aos níveis de desenvolvimento que as pessoas querem promover, que querem atrair empresas.
Desse ponto de vista, este Governo, desde maio [de 2017] que começou a sinalizar a situação como crítica, pese embora nem sempre com os resultados que queríamos do ponto de vista das pessoas um uso mais eficiente da água. Foi criada uma Comissão Interministerial para a seca; foram aprovadas, a nível nacional, as medidas de contingência; as reuniões da Comissão de Gestão de Albufeiras, que decorrem de três em três meses, ou seja, quatro vezes por ano, passaram a ser de 15 em 15 dias, nomeadamente na zona crítica do Alentejo, envolvendo todos os agentes. Podemos dizer que isso permitiu aos agricultores salvarem aquilo que eram as suas agriculturas, e permitiu assegurar um ano de reserva para o abastecimento público de água, que era também um dos objetivos.
A outra área que foi bastante prejudicada em Portugal em 2017 foi a produção de energia elétrica, não tanto nas albufeiras, que são exclusivamente para produção de energia elétrica, mas nas que são de fins múltiplos, ou seja, que para além da produção de hidroelétrica possa haver agricultura, abastecimento público… Aí, por uma questão dos critérios que estão nesse plano de contingência nacional, a energia foi a primeira a ficar condicionada, a seguir a agricultura, felizmente em poucos casos, e as reservas para o abastecimento público foram salvaguardadas.
Há um conjunto de investimentos em curso no Alentejo, da parte da Águas Públicas do Alentejo, nomeadamente cerca de 30 milhões de euros. Foi também concretizada uma inciativa no sentido de otimizar infraestruturas da AdP e da EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva) no Alentejo, de maneira a que os investimentos que ainda faltam fazer, quer para alargar o perímetro de rega como para aumentar a flexibilidade e a resiliência dos sistemas de abastecimento público de água, possam ser feitos com maior economia. Foi identificado um assunto crítico, que este ano já foi resolvido logo no início, a falta de planeamento dos próprios agricultores. Ou seja, se os agricultores, sobretudo do perímetro da EDIA, tivessem pedido água em tempo útil podiam ter tido essa água. Havia muita água no Alqueva que só não chegava a alguns locais porque as bombas e as condutas que estão disponíveis não podiam transportar mais água. Eu diria que os agricultores, por uma questão de natureza económica que é compreensível, mas correndo riscos de depois não terem água quando precisam, têm também de incrementar o seu planeamento.
Naturalmente, isto traz-nos outras reflexões ligadas à própria agricultura: que agricultura temos face aos recursos hídricos que temos; é preciso mudar ou não todo o perfil dessas culturas; a intensidade com que essas culturas ocorrem. Essa é uma reflexão que vai obrigar a estudos de outra dimensão. O Governo incumbiu a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) de elaborar, em colaboração com as ARH (Administração de Região Hidrográfica), cinco planos de contingência para a seca. Queremos também ficar dotados de uma ferramenta que, perante determinadas situações, acabe por determinar, quase de uma forma automática, aquilo que têm de ser os comportamentos dos utilizadores. Isso vai obrigar-nos a ter um inventário mais apurado daquilo que são os sistemas semi-públicos.
Outro trabalho que está acometido à APA é a elaboração de uma estratégia nacional para a reutilização das águas residuais tratadas nas ETAR’s (Estações de Tratamento de Águas Residuais). Não temos uma expectativa muito elevada desse potencial mas queremos que pelo menos as 50 maiores ETAR’s – que respondem por cerca de 70% a 80% dos caudais tratados – possam ter um plano de investimentos para tentarem valorizar entre 10% a 20% dos caudais tratados, consoante a sua localização geográfica. Muitas destas águas, tendo menos potencial para usos urbanos, são águas que devidamente tratadas têm uma qualidade que pode ser muito interessante para a agricultura, pois podem trazer muitos nutrientes.
Teremos uma autêntica radiografia do país no que diz respeito ao setor das águas. É isso que podemos esperar daqui a um ano e meio?
Conhecemos bem as nossas infraestruturas, sabemos que quase 99,8% da água que nos chega a casa tem boa qualidade. Onde é que temos de fazer melhorias significativas? Na dimensão água/recursos hídricos. Desse ponto de vista, aquando da passagem do Instituto da Água para a APA e depois no período de intervenção da troika, houve um forte desinvestimento na nossa rede de medição, quer de caudais como de qualidade da água. Isso, aliás, está refletido no próprio Plano Nacional da Água, no qual o grupo de trabalho se queixa da informação de base.
Já concretizámos um investimento de cerca de quatro milhões de euros, que permitiu reabilitar toda essa rede. Neste momento, estamos numa situação confortável relativamente ao conhecimento dos nossos recursos hídricos, do ponto de vista quantitativo e qualitativo. Gostava ainda de reforçar que este problema que vivemos no rio Tejo durante o ano passado fez com que, por exemplo, além dos postos de medição e monitorização da qualidade da água, houvesse um incremento de sondas que fazem análises automáticas. Mas não foi só no Tejo. Desse ponto de vista, os 60 milhões de euros que estamos a fazer de obras ligadas à questão das cheias, no Mondego, no rio Trancão e num conjunto de outros rios, só vêm confirmar que estamos a fazer um conjunto de trabalhos nas situações que consideramos mais críticas.
Uma das preocupações do atual Governo é a configuração dos sistemas municipais de água, tentando acelerar a gestão do recurso através de entidades supramunicipais, sob a égide da AdP. Qual o balanço deste processo e que passos se seguem?
Consideramos que a sustentabilidade do setor da água passa muito por essa mudança. O Governo, num primeiro momento, resolveu – e num período até muito curto – a questão dos conflitos que existiam entre os municípios e o sistema da agregação dos sistemas municipais do Grupo AdP. Esses sistemas foram reconfigurados com a concordância dos acionistas municipais. Foi uma situação pacificadora e hoje os municípios estão muito satisfeitos com a solução encontrada e muito empenhados em concretizar agora os planos de investimento que tinham.
Outra área que consideramos estratégica para a sustentabilidade, sobretudo num momento em que andamos a investir mais de 550 milhões de euros do PO SEUR (Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos) com os municípios: mais de 100 ETAR’s novas, com valores de investimento na casa dos milhões de euros, quando depois sabemos que esses mesmos municípios vão ter um conjunto de infraestruturas muito exigentes do ponto de vista técnico (manutenção e operação exigentes) e não têm, na maior parte dos casos, quadros qualificados e dedicados a essa área que possam assegurar que esses equipamentos, depois de estarem construídos, e depois do dia da inauguração, se vão manter a funcionar bem. A escala mínima para haver uma gestão eficiente deste tipo de infraestruturas situa-se acima dos 80 mil habitantes. Portanto, temos incentivado que se criem, por vontade livre dos municípios, entidades gestoras de escala supramunicipal em que alguns daqueles que são identificados como bons players regionais, possam partilhar essas competências e know how. Esse é o nosso desejo número um. O desejo número dois é que o possam fazer criando o modelo de gestão que lhes apetecer. Temos situações em que os municípios entendem que, não tendo um grande player regional interessado em ser seu parceiro, o melhor é juntarem-se à AdP e criarem as parcerias públicas. Não é uma empresa da mesma natureza da multimunicipal, mas fica na mesma área geográfica com um estatuto diferente, na qual os municípios têm 50% e a AdP tem outros 50%, fazendo uma gestão integrada e otimizando recursos. Quer a eficiência técnica, quer a sustentabilidade económica, são asseguradas. E, temos outros que estão disponíveis para transformar empresas que já tinham em empresas que mudam de âmbito. Por exemplo, em Trás-os-Montes, na zona de Bragança, o modelo que andam a estudar é o de transformar a empresa que fazia a gestão de resíduos a nível regional numa empresa que passa a ter também a competência de gerir a água a nível regional, otimizando recursos, sobretudo os administrativos, que podem ser comuns.
Do ponto de vista do modelo, a legislação portuguesa permite quatro modelos: parcerias, intermunicipais, associações de municípios ou empresas municipais,. Para nós, qualquer uma tem acolhimento. Temos, inclusive, um aviso de 75 milhões de euros no PO SEUR para acolher candidaturas com este modelo e estamos a pensar em até eventualmente vir a abri-la. Como balanço, a fasquia que o modelo colocou nesta matéria foi de tentar que os 150 municípios com menos de 20 mil habitantes em Portugal se pudessem envolver neste processo num número superior a 80, e concretizou-se. Houve, pelo menos, mais de 90 municípios que estudaram o assunto. Hoje temos uma elevada expectativa de que, até setembro, teremos pelo menos 50 municípios que tenham tomado a decisão. Temos a forte convicção de que, durante o mês de maio, poderemos ter já os primeiros 18 municípios a anunciá-lo publicamente e que o mesmo ocorra até setembro com um número que será seguramente próximo ou superior a 50. Estamos convictos de que é esse o caminho para assegurar no futuro aquilo que são obras que hoje têm fundos comunitários e dizer que os serviços que temos hoje serão incrementados ou ainda melhorados no futuro, porque os êxitos do presente não garantem êxitos do futuro.
Esteve em Brasília, no 8.º Fórum Mundial da Água. O que trouxe de lá?
Portugal cumpriu aquilo que eram as nossas melhores expectativas. Houve uma forte representação política e muitas empresas públicas e privadas. Houve no stand de Portugal vários debates, nomeadamente com países de expressão portuguesa – Angola, Cabo Verde, São Tomé e Timor. Houve um fórum internacional de regulação com os países da América Latina. Foi concretizado um protocolo entre o Ministério da Integração do Brasil e a ERSAR para que a entidade seja parceira na capacitação na área da regulação, reconhecendo aquilo que é o trabalho português nesta matéria e as nossas competências. Houve, paralelamente, uma reunião dos ministros do Ambiente e Gestão da Água da CPLP onde foram aprovadas estratégias futuras para um maior entrosamento entre os países no domínio do ambiente em geral, mas da água em particular. Conseguimos ter o pavilhão mais animado do fórum.
Esta é a 2ª Parte da Grande Entrevista publicada na Edição 77 da Ambiente Magazine.
Leia aqui a 1ª Parte desta Grande Entrevista.