Os desafios que se impõem ao setor da Água em Portugal (I)
É notória a evolução do setor da água ao longo das últimas décadas em Portugal. Mas esta evolução exige um investimento constante e depara-se com desafios que também eles têm mudado ao longo dos tempos. Ambiente Magazine ouviu alguns players do setor, nomeadamente a ERSAR, a AEPSA, a ZERO, e empresas como a Acciona ou a Indaqua, para saber como analisam este setor e quais os desafios que consideram ser mais prementes. Leia aqui a primeira parte deste trabalho, publicado na edição 104 da nossa revista.
Ao longo dos anos foram muitas as transformações vividas pelo setor da água em Portugal, refletindo de certa forma as necessidades e prioridades de cada momento. No início da década de 90, nasceu uma nova estratégia nacional que veio rever o enquadramento institucional e legislativo, os modelos de governação e a organização territorial. Foi também criado um regulador dos serviços, a ERSAR, e o setor foi maioritariamente estruturado em sistemas de alta, de âmbito multimunicipal, e em baixa, que mantiveram o seu âmbito municipal. O Estado também criou a empresa Águas de Portugal que ficou com a missão de agregar as altas e desenvolver os sistemas multimunicipais.
Nos últimos 30 anos, a evolução destes serviços em Portugal foi “notável”, afirma Vera Eiró, presidente do Conselho de Administração da ERSAR, que aponta desafios mais recentes como a estruturação das entidades gestoras responsáveis pela prestação de serviços e a garantia da sua sustentabilidade financeira a longo prazo, desafios que se traduzem “num acentuar de assimetrias entre entidades modernizadas e sustentáveis e outras com um desempenho menos satisfatório que, tipicamente, servem menos consumidores”, explica. A estes juntam-se os desafios emergentes das alterações climáticas, da creste escassez hídrica, da degradação das massas de água, do maior risco de ocorrência de inundações, da necessidade de controlo dos poluentes emergentes na qualidade da água e da necessidade de maior circularidade e valorização ambiental e territorial dos serviços, acrescenta.
Foi assim aprovado o Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 – PENSAARP 2030, com uma visão da gestão da água em Portugal que passa por “proporcionar serviços de excelência para todos e com contas certas”, aponta Vera Eiró. Perante este cenário, a gestora não hesita em afirmar que o grande desafio, hoje, é “garantir a diminuição das assimetrias através da melhoria estrutural da organização das entidades gestoras, da redução da fragmentação destas entidades, do aumento da escala, da adoção de boas práticas, da capacitação e formação para melhorar aspetos operacionais e de gestão”. Por outro lado, adianta, existe uma oportunidade de introduzir tecnologias disruptivas para uma gestão mais proactiva dos sistemas e um aproveitamento de recursos. Pelo que, o conselho de Vera Eiró é que todos os players do setor olhem para o PENSAARP 2030 pois “contém boas pistas sobre como poderão melhorar a gestão de cada uma das entidades gestoras, torná-las mais eficientes e sustentáveis, no médio e longo prazo”.
Por sua vez, Eduardo Marques, presidente da direção da AEPSA – Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente, lembra que apesar da “alocação e milhares de milhões de euros ao setor das águas na última década, verifica-se que os principais indicadores de desempenho estão estagnados ou em regressão”, uma conclusão do próprio Grupo de Apoio ao PENSAARP 2030, que aponta ainda que o setor privado, que abrange cerca de 20% da população, tem em geral melhores indicadores “e é o setor que contribui de forma mais positiva para a média nacional”. O dirigente associativo explica que o setor evoluiu para uma centralização da decisão, com perda de autonomia dos municípios, e “o Estado usa a prerrogativa de distribuição dos fundos comunitários ou do Fundo Ambiental como ferramenta de favorecimento político ou, até, de chantagem para imposição de determinados modelos de gestão, como recentemente se verificou no texto final aprovado do PENSAARP 2030, onde o financiamento do Portugal 2030 é apenas possível para as entidades agregadas em baixa, ou para as empresas do universo da AdP”. Eduardo Marques alerta para o facto de os operadores privados terem vindo a ser afastados do setor, “favorecendo-se modelos de gestão atribuídos por decreto, sem concorrência, onde as tarifas são as necessárias para cobrir os custos, sejam eles quais forem”.
A esta situação, a AEPSA acrescenta ainda as necessidades de investimento na reabilitação das infraestruturas que, no PENSAARP 2030, estão estimadas em mais de cinco mil milhões de euros só para a próxima década. Para tal, defende ser fundamental “uma estratégia nacional e um pacto de regime que alinhe os esforços da Águas de Portugal, do Estado, das autarquias, universidades e empresas privadas portuguesas, no sentido de assegurarem a inovação e os recursos de que o setor tanto carece”.
Para a associação, é importante atuar no sentido de redefinir o processo de atribuição de fundos com a publicação de regras claras para todos os participantes, bem como redefinir o papel da Águas de Portugal que, na sua opinião, “deve regressar à sua génese, como entidade gestora de infraestruturas e investimentos estruturantes, e entidade de fornecimento em alta”. Outra medida deverá ser a criação de condições para a empresarialização das entidades gestoras e aumentar a participação do setor privado.
Eduardo Marques recorda ainda que é fundamental aplicar o princípio legal do utilizador-pagador para garantir a autossustentabilidade dos serviços e imperativo melhorar “de forma significativa” a eficiência hídrica das redes públicas, reduzindo-se as perdas de água que ascendem a mais de 180 milhões de m3 por ano em perdas reais. Defende pois o lançamento de concursos de eficiência hídrica para a redução da água não faturada (ANF), em que uma parte significativa da remuneração seja função da poupança efetiva. Por fim, lembra que grande parte das infraestruturas de água em Portugal estão envelhecidas e precisam de ser renovadas ou substituídas, caso contrário, poderão dar azo a “gravíssimos problemas”.
Para o presidente da AEPSA, é pois essencial “um esforço coordenado de todos, nomeadamente das agências governamentais, regulador, entidades gestoras públicas e privadas, municípios, empresas, e outras partes interessadas, para desenvolver estratégias abrangentes para gerir eficazmente o ciclo urbano da água, de forma a assegurar sustentabilidade e resiliência, a longo prazo”.
Também Sara Correia, project officer da Zero, admite serem muitos os desafios, optando por destacar a eficiência hídrica: “É fundamental otimizar o uso da água em todo o ciclo urbano da água, desde a captação até a rejeição final no meio recetor”, diz, acrescentando que isso inclui a redução das perdas e a melhoria da gestão de recursos. Outro desafio serão as próprias alterações climáticas, que exigem uma adaptação à mudança para se garantir a resiliência do sistema. Por fim, não esquecer as exigências cada vez maiores relativamente à qualidade da água e ao tratamento das águas residuais. Sara Correia aponta para as revisões da Diretiva referente à qualidade da água destinada ao consumo humano e da Diretiva das Águas Residuais Urbanas, que vêm impor novas obrigações que requerem “uma gestão muito rigorosa e uma abordagem integrada”.
O “lado” das empresas
Do lado das empresas, Emanuel Correia, managing director da Acciona Água – Portugal, não tem dúvidas de que estamos a entrar num período de mudança no que diz respeito à gestão do ciclo da água e à utilização de fontes alternativas. E admite haver uma preocupação crescente, ao nível da população e dos empresários, com a utilização mais eficiente e a reutilização deste recurso.
O gestor defende pois a implementação de várias medidas, começando desde logo pela redução das perdas de água ao longo do ciclo urbano, fundamental para conservar os recursos hídricos, o que implica identificar e reparar fugas nas redes de distribuição, promover práticas de uso eficiente da água e investir em tecnologias de controlo e gestão das redes de abastecimento e saneamento. Por outro lado, afirma Emanuel Correia, há que melhorar as infraestruturas de água e saneamento, investindo na sua modernização e ampliação para garantir o acesso a toda a população. Outra questão prende-se com a gestão das águas residuais, cujo tratamento “é essencial para proteger a qualidade da água e dos ecossistemas”. E há ainda a aposta na dessalinização e reutilização como fontes alternativas de água, com o responsável a defender a prática sustentável de gestão da água e o investimento contínuo neste tipo de sistemas.
Já Pedro Perdigão, CEO do Grupo Indaqua, é perentório quando afirma: “O setor que envolve o ciclo urbano da água necessita, em Portugal, de uma atualização profunda”. E justifica apontando que grande parte dos ativos que garantem a operação estão a entrar no último quarto da sua vida útil, um momento que implicará investimento, por um lado, mas que também “deveria ser visto como oportunidade para alavancar outras mudanças de que o setor precisa”, refere.
Por isso, para este gestor, o grande desafio está hoje, acima de tudo, na forma como atualmente são geridos os ativos e recursos, uma gestão que “parece aparentemente esquecida” e que tem de ser “trabalhada de forma mais unificada em todo o setor”. Pedro Perdigão defende pois a implementação de medidas que incentivem a eficiência, a digitalização e a profissionalização da operação, não perdendo de vista a descarbonização do setor. E não hesita em indicar que “é necessário beneficiar e proteger quem implementa boas práticas de gestão e daí obtém resultados”, assim como é fundamental valorizar os serviços que as empresas prestam através do Princípio do Poluidor/ Utilizador-Pagador, ou seja, refletindo o custo de toda a operação do ciclo urbano da água no preço que é imputado ao consumidor, sem que isso prejudique a acessibilidade económica das famílias. “Os números provam que é possível fazer isso em Portugal. Falta fazê-lo”, diz.