#Opinião: “Uma história sobre gestão da Água”
Por Carlos Manso, CEO Infralobo, E.M., Economista e Membro da Direção Nacional da Ordem dos Economistas*
Desde 2018 que partilho a minha leitura e análise sobre a gestão da água em Portugal, os seus maiores desafios e conquistas, assim como os maiores riscos presentes e futuros que o setor poderia enfrentar e para os quais deveria estar previamente preparado através de uma estratégia solidária entre regiões e integrada pelos vários usos do recurso Água. Por isso hoje, não vou repetir o que venho afirmando, nos últimos anos, com base em dados reais, nomeadamente os divulgados pela entidade reguladora ERSAR, através do RASARP anual, mas também pela análise dos vários dados divulgados pelas diversas entidades gestoras em baixa. Vou antes contar-vos uma história.
Todos gostamos de uma bela história e esta tem uma pequena dose de drama, alguma tragédia, muita manipulação, salpicos de traição, boas mentiras, erros e irresponsabilidade, mas também tem muita fé e crença.
Todos os ingredientes para uma boa história estão presentes. Alerto, porque não quero que os leitores fiquem preocupados, que é uma história fictícia sobre gestão da Água, sendo que qualquer espelho da realidade é “mera coincidência”.
Vejamos, era uma vez, porque todas as boas histórias começam assim, uma pequena Região num pequeno País do mediterrânio cujas previsões apontavam para um aumento da seca nessa região, devido a tendências decrescentes nos períodos de pluviosidade, algo a que os habitantes já estavam habituados no passado, mas cujo risco de escassez de água, algo novo, começava a pairar no horizonte.
Imaginem agora, que durante o período prévio à possibilidade de haver escassez de água, muito pouco foi feito, mas os responsáveis políticos regionais (vamos chamar AMR – Associação Municípios da Região) apresentaram um plano infalível em conjunto com a autoridade responsável pelo ambiente (vamos chamar ANA – Associação Nacional do Ambiente) elaborado pelos próprios e não ouvindo outras partes interessadas e com financiamento público garantido pelo Governo do País. Como poderiam ouvir, se este plano não tinha qualquer falha e como tal passaram os anos seguintes a convencer os restantes agentes e populações da magnificência do mesmo, ignorando e até insultando quem ousava questionar a razoabilidade do mesmo, sugerindo alternativas ou melhorias ao plano.
Quando se afirma que nada foi feito, não é bem verdade, houve muita campanha de sensibilização em papel e online, muitos seminários para passar a imagem de que se estava a discutir o setor e todos diziam o mesmo. Com este Plano, não vai haver falta de água na região. Mas os indicadores contavam outra realidade, os consumos aumentavam, as perdas na rede teimavam em não baixar apesar dos discursos apaixonados a afirmar que nessa guerra não haveria tréguas, o investimento nas infraestruturas era insuficiente para garantir a sustentabilidade das mesmas, as coberturas de gastos das várias entidades gestoras eram insuficientes e não havia informação agregada credível de todos os setores no que ao recurso Água dizia respeito.
Eis que chega o ano, em que os níveis de pluviosidade descem, não inesperadamente, mas porque era previsível que assim fosse, e como no início das guerras, a primeira coisa a cair é sempre o Plano.
Nisto o responsável político regional da AMR liga ao Ministro do País (MP) e têm a seguinte conversa:
– AMR: Caro Ministro, estamos perante uma tragédia na região. Não temos água para os próximos tempos.
– MP: Mas e o Plano não foi executado por forma a garantir essa situação?
– AMR: O Plano precisava de mais tempo para ser implementado. Sabe, isto é muito complexo.
– MP: Ok. E as medidas paralelas que garantissem uma maior margem de segurança, através da implementação de medidas que aumentassem a eficácia e eficiência do sistema? Nomeadamente investimentos para reduzir as perdas, maior conhecimento cadastral das infraestruturas e um maior controlo e monitorização pelas autarquias.
– AMR: Sabe, é difícil e não se faz de um dia para o outro. Mas temos estado a sensibilizar as entidades gestoras para isso.
– MP: Ok, já vi que está tudo na mesma. E aquela estratégia de criar uma fábrica de água, já está no terreno? Já começámos a obra?
– AMR: Sabe, é difícil e não se faz de um dia para o outro. Primeiro ninguém a queria no seu território e agora que escolhemos a localização, o proprietário não aceita vender o terreno e colocou-nos em tribunal. Já viu, como se atreve? Não sabe que é para o bem da região?
– MP: Diga-me que pelo menos, já avançámos para a reutilização das águas residuais e que os Municípios já alteraram os RJUE (regimes jurídicos de urbanização e edificação) para integrarem nos novos projetos imobiliários, incluindo nas habitações a custos controlados que estamos a promover, regras que permitam uma maior eficiência hídrica?
– AMR: Sabe, é difícil e não se faz de um dia para o outro. Estamos a tratar disso e vamos promover reuniões nesse sentido.
– MP: Estão a tratar disso, mas ainda vão na fase de promover reuniões nesse sentido? Diga-me pelo menos, que no setor agrícola já temos um sistema implementado de benchmarking equivalente ao que a ERSAR tem para o setor urbano? E estamos a investir na reabilitação dos canais que transportam a água até às culturas?
– AMR: Sabe, é difícil e não se faz de um dia para o outro. Estamos a sensibilizar os agricultores na necessidade de montarmos contadores para sabermos a água que consomem e sobre a reabilitação estamos a pensar nisso.
– MP: Assim fica difícil. Temos de arranjar uma estratégia para que não nos seja imputada a responsabilidade política do insucesso do Plano. Vou proceder à demissão do responsável pela ANA que tem andado a promover o Plano e ignorado todas as alternativas.
– AMR: Mas Sr. Ministro, é um dos nossos e tem feito um trabalho magnifico. Não tem culpa do Plano ter falhado.
– MP: Tem razão. Se houver oportunidade até o devemos promovê-lo. Olhe vamos culpar e penalizar os consumidores e produtores agrícolas, através de medidas de restrição de acesso à Água e vou enviar para vos ajudar 3 técnicos altamente especializados.
– AMR: Concordo plenamente sobre quem devemos culpar. Bem pensado. Agradeço o envio da ajuda, porque toda a ajuda é bem-vinda.
Desligam a chamada. O Ministro vira-se para o seu chefe de gabinete e diz, seleciona 3 técnicos especializados da Capital para ir à Região resolver aquela trapalhada, que a AMR acreditou que achamos que não têm culpa e responsabilidade no atraso na implementação do Plano e concordámos em culpar os consumidores dos diversos setores no desperdício do recurso. O ajuste ao Plano passa por aumentar significativamente os diversos tarifários.
O responsável político na região (AMR) vira-se para o seu chefe de gabinete e diz:
– O Ministro vai enviar 3 especialistas para nos ajudar e acreditou que não temos responsabilidade nesta situação e concordámos em responsabilizar os consumidores dos diversos setores no desperdício do recurso. O ajuste ao Plano passa por aumentar significativamente os diversos tarifários.
Entretanto choveu na Região, aproximaram-se eleições e a primeira coisa a cair foi o ajuste ao Plano.
Felizmente esta história não é real. Pensem nisto.
*Este artigo de opinião apenas reflete a opinião pessoal e técnica do Autor e não a opinião ou posição das entidades com quem colabora ou trabalha. Foi publicado na edição 104 da Ambiente Magazine.