Por Carla Velez, secretária-geral da ESGRA
No artigo da semana passada, fizemos o enquadramento geral dos desafios que o Setor dos Resíduos Urbanos (RU) enfrenta, das metas e objetivos a que o setor da gestão de resíduos urbanos e o país se encontram sujeitos e começámos a abordar os instrumentos financeiros disponíveis para levar a cabo esse trabalho, que tem evoluído de forma recessiva, impedindo um crescimento saudável e a sustentabilidade de todo o sistema.
No artigo anterior, foi focada a necessidade de rever a Taxa de Gestão de Resíduos, e não meramente aumentar o seu valor, que não só não cumpre um primeiro objetivo de apoiar o investimento no sistema de gestão, como também não garante um segundo objetivo, não menos importante, de fomentar novos comportamentos e atitudes das populações relativamente à produção, separação, reaproveitamento e deposição de resíduos.
Hoje, abordaríamos outros instrumentos de financiamento, começando por um extremamente importante para a sustentabilidade do sistema, e que representa uma importante fonte de receita: as contrapartidas financeiras devidas no âmbito do sistema de gestão integrado de resíduos de embalagens (SIGRE), pela prestação dos serviços de gestão e tratamento desses resíduos.
As embalagens e o SIGRE
Importa lembrar que o SIGRE, durante quase duas décadas de existência, sempre abrangeu todas as embalagens e resíduos de embalagens, com objetivo de valorização máxima dos resíduos de embalagem colocados no mercado pelos produtores do produto, pelos embaladores ou pelos fornecedores de embalagens de serviço.
Acontece que tendo sofrido várias alterações, nos últimos anos, as alterações introduzidas têm agravado a complexidade e falta de clareza deste regime, permitindo diferentes interpretações e formas de atuação por parte dos diferentes players e em diferentes momentos, para justificar, nomeadamente, cortes no seu pagamento.
Foi isso mesmo que aconteceu, recentemente, desde meados de 2019, quando, unilateralmente, foi adotado um entendimento diferente sobre o que havia sido até então a aplicação do SIGRE, e que se traduziu num corte significativo do pagamento dos valor das contrapartidas pela retoma de uma parte das embalagens recolhidas e tratadas pelos SGRU, sem que para tal tenha havido qualquer alteração legislativa que fundamentasse esta mudança de funcionamento do SIGRE.
Reconhecendo-se que, aquando da atribuição das licenças em regime de concorrência no SIGRE, foi introduzida uma limitação às embalagens primárias e secundárias multipack (excluindo do universo as restantes embalagens secundárias e terciárias, por se ter considerado que estas seriam tratadas fora do SIGRE), a verdade é que na prática tal nunca aconteceu, nem antes desta alteração nem depois.
A este facto acresce que sendo todos resíduos urbanos, não só não é viável a sua distinção como também não podem, nem devem, os SGRU devolver os resíduos que são depositados nos contentores e ecopontos.
Este é aliás o entendimento que resulta do Unilex, o diploma que veio precisamente unificar o regime da gestão de fluxos específicos de resíduos sujeitos ao princípio da responsabilidade alargada do produtor (DL n.º 152-D/2017, de 11/12). O diploma estabelece que cabe às entidades gestoras do SIGRE a gestão de todas as embalagens e resíduos de embalagens urbanas, não reutilizáveis, e que não sendo geridas no âmbito de um sistema individual, devem prosseguir a retoma de todas as embalagens que são recebidas nos sistemas de gestão de Resíduos Urbanos (SGRU). Ou seja, precisamente as embalagens primárias, secundárias e terciárias colocadas no mercado que vão gerar um resíduo urbano.
Tendo em conta a importância e o impacto desta situação ao nível da sustentabilidade financeira, económica e na estabilidade do funcionamento da prestação deste serviço público imprescindível à qualidade de vida, do ambiente e da saúde pública, tal como tem vindo a ser exercido e a evoluir nos últimos 20 anos, deixamos aqui o nosso apelo que em abono da prossecução do interesse público e do bem-estar coletivo, esta matéria seja ultrapassada.
A remuneração da energia
Outra importante fonte de receita do Setor é a remuneração pela produção de energia a partir de resíduos urbanos. A generalidade dos SGRU produz energia nas suas instalações, através da utilização do biogás gerado em unidades de digestão anaeróbia ou em aterro, e de (apenas) duas centrais de incineração dedicada de RU, cuja energia elétrica produzida é, em geral, parcialmente consumida na instalação e, o remanescente, injetado na rede elétrica de serviço público (RESP), através de um regime de remuneração garantida que cessaria a partir de 2020.
Assim, estando previsto o fim deste regime de remuneração e dada a importância desta receita para os SGRU, desde há cerca de dois anos que as associações representativas do setor têm vindo a alertar o Governo para a questão e a disponibilizar a sua colaboração para encontrar soluções.
Importa esclarecer que o custo decorrente da venda da eletricidade à Rede Elétrica de Serviço Público (RESP) no Sistema Elétrico Nacional (SEN) além de ser diminuto, reveste-se de neutralidade social, na medida em que o resultado financeiro dessa venda é devolvido ao cidadão na redução da tarifa de tratamento de resíduos ou utilizado em investimentos no tratamento de resíduos e, portanto, igualmente devolvido ao cidadão em qualidade ambiental.
Ora, em portaria recente, de 15 de outubro, veio o Governo fixar uma tarifa aplicável aos centros eletroprodutores que utilizam resíduos urbanos como fonte de produção de eletricidade em instalações de valorização energética, mas apenas na vertente de queima de resíduos sólidos urbanos indiferenciados provenientes de SGRU, o que não se compreende, quando o que todo o setor tem vindo a alertar é para a necessidade de um modelo transparente, auditável e com base em escrutínio de mercado, que possa ser aplicado a todas as instalações, não apenas à incineração, mas também a outras formas de produção de energia a partir de resíduos como seja o biogás de aterro e de digestão anaeróbia.
POSEUR, PERSU e Fundos Comunitários
Finalmente, importa referir o Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso dos Recursos (POSEUR) e o Fundo Ambiental, enquanto mecanismos para o financiamento dos investimentos considerados necessários e estratégicos para a prossecução dos objetivos definidos nos instrumentos de definição estratégica do setor, sendo o mais importante o Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU).
O POSEUR constitui um dos 16 programas criados para a operacionalização da Estratégia Portugal 2020, através dos fundos comunitários, e visa promover o crescimento sustentável, de modo a contribuir para a transição para uma economia de baixo carbono, com base numa utilização mais eficiente de recursos. Constitui a principal fonte de financiamento dos investimentos em infraestruturas e soluções tecnológicas, tendo em conta as medidas estabelecidas nos planos estratégicos do setor com vista a assegurar a concretização das linhas orientadoras para a execução daqueles planos. Acontece que, a nosso ver, nem sempre quer as medidas quer os apoios definidos refletiram as reais necessidades do setor e as melhores opções tecnológicas defendidas pelos SGRU, não obstante a sua experiência e conhecimento adquiridos.
Neste contexto, e a fim de maximizar a utilização de recursos, quer a utilização dos recursos ainda remanescentes do POSEUR quer do próximo quadro comunitário de apoio, a sua definição deve também ter em conta uma participação efetiva dos SGRU na preparação do novo quadro comunitário de apoio (2021-2027) trazendo a essa preparação a sua experiência específica e o seu conhecimento das realidades locais e regionais.
Desse modo evitar-se-á a repetição de uma estratégia em que se define uma política pública com base em soluções específicas determinadas através do lançamento de avisos justificados pela necessidade do cumprimento de metas cuja responsabilidade cabe aos SGRU sem, no entanto, ter em devida conta as opções que face à experiência e conhecimento obtido são propostas por estes.
Fundo Ambiental e SGRU
Já o Fundo Ambiental, foi criado para apoiar políticas ambientais para a prossecução dos objetivos do desenvolvimento sustentável, contribuindo para o cumprimento dos objetivos e compromissos de natureza ambiental, nacionais e internacionais, designadamente em matéria de resíduos, sendo que uma das fontes de receita deste fundo é proveniente dos montantes arrecadados com a cobrança da taxa de gestão de resíduos.
Acontece que não obstante, os montantes arrecadados referentes à receita anual consignada da Taxa de Gestão de Resíduos (TGR) para despesas com o financiamento de atividades dos sujeitos passivos que contribuam para o cumprimento dos objetivos nacionais em matéria de gestão de resíduos, a verdade é que muitos dos apoios do Fundo Ambiental foram afetos a muitos investimentos na área do ambiente e dos resíduos, mas muito menos do que seria expectável no que respeita concretamente ao apoio de projetos específicos desenvolvidos pelos SGRU.
Em suma, assumindo-se que os resíduos devem ter um importante papel na transição para um modelo de economia circular, enquanto fonte de novos materiais e recursos que evitarão a exploração de matérias-primas virgens e escassas, e estando presentes em praticamente todas as atividades produzidas pelo ser humano, dificilmente se consegue compreender esta trajetória que tem vindo a enfraquecer o setor, quando todos os esforços para o seu reforço deveriam ser mobilizados.