Por Carla Velez, secretária-geral da ESGRA
O País e o mundo assistem a uma crise sem precedentes, seja em termos ambientais e sanitários seja em termos económicos e sociais, conforme anunciada há muito, mas que na realidade nunca houve uma consciencialização global de que pudesse efetivamente concretizar-se.
Para dar resposta a esta crise é necessária uma mudança de atitude e de comportamento à escala global e claro, nacional. As medidas a tomar têm que ter subjacente uma visão estratégica que seja capaz de produzir resultados a longo prazo e que seja também já eficaz a curto prazo. É por isso necessário que haja capacidade de pensamento estratégico e de planeamento, mas também de capacidade de implementação e de execução.
Porém, em algumas áreas por mais que seja evidente a necessidade de intervenção de forma planeada e coordenada, as soluções e as medidas têm tardado e falhado na necessidade de terem uma natureza integrada de forma a otimizar e maximizar os seus resultados. As medidas avulsas e transitórias tendem a perdurar sempre mais tempo que o pretendido e na maioria dos casos ao invés de resolverem um problema, como não são estruturais nem coordenadas com todas as matérias com as quais estão relacionadas, tendem a trazer mais problemas e complicações dos que os que visavam resolver.
Esta situação que não será exclusiva, infelizmente também, do setor da gestão dos resíduos urbanos (RU) tem-se tornado o modo quase habitual de conduzir a política do setor, ignorando, a nosso ver, a importância e o papel que têm na sociedade para ajudar a combater a crise ambiental com que a humanidade se defronta.
Os RU estão presentes em praticamente todas as atividades humanas, assumindo uma transversalidade única, e por esse motivo não só deveria ser dada atenção à sua presença e à importância de serem integrados em praticamente todas as áreas de políticas públicas, como deveria ser assumido um esforço em assegurar a sustentabilidade económica e financeira do setor.
Desse modo, poderia dar-se resposta aos desafios que o país e a população enfrentam para que os RU se possam efetivamente transformar em recursos e evitar a continuação da exploração de matérias virgens escassas e que ameaçam a sustentabilidade global do planeta.
Porém, aquilo a que neste Setor se tem assistido e sofrido é uma degradação não só das suas fontes de sustentabilidade, mas também ao enfraquecimento do seu papel e da sua capacidade de intervenção. Como?
- Com o estrangulamento da sua atividade decorrente de um quadro regulamentar opaco, complexo e dúbio que leva a diferentes interpretações dos diferentes atores;
- Estas levam a que se traduzam em decisões que em pouco ou nada têm contribuído para a transformação dos resíduos em recursos, quando este deveria ser interiorizado como um desígnio da própria sobrevivência da população e do planeta como o conhecemos.
Assim, e tendo em conta que para se assegurar o bom funcionamento de qualquer atividade são precisos meios, vamos deter-nos sobre os meios de sustentabilidade do Setor dos RU.
Atualmente, e até 2020, a atividade exercida pelos Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos (SGRU) é suportada financeiramente pelas seguintes receitas:
(i) Tarifa pela prestação dos serviços de gestão e tratamento aos municípios;
(ii) Contrapartidas financeiras devidas pela retoma dos resíduos provenientes da recolha seletiva e indiferenciada que visam cobrir os custos decorrentes das operações de recolha e triagem efetuadas pelos SGRU;
(iii) Remuneração pela produção de energia a partir de resíduos e finalmente,
(iv) Apoios financeiros aos investimentos provenientes dos fundos estruturais, o POSEUR, e a nível nacional, o Fundo Ambiental.
No artigo desta semana vamos abordar as duas primeiras formas de financiamento e, na semana que vem, concluiremos a abordagem a este tema, complexo de explicar mas fácil de entender.
Assim, começando pela estrutura tarifária, as entidades gestoras – os municípios – a quem sejam prestados os serviços de tratamento de RU estão sujeitas às tarifas do serviço de gestão de RU, bem como os utilizadores finais a quem sejam disponibilizados os respetivos serviços.
Acontece que em Portugal, o modelo dominante é o da indexação do custo pela gestão de RU na fatura da água, não refletindo nem o custo verdadeiro pela prestação dos serviços de gestão e tratamento dos RU, nem permitindo a necessária alteração do comportamento da população.
Em nosso entendimento, um dos motivos que contribui para a falta de envolvimento da população em proceder de forma regular à separação e correto encaminhamento dos RU produzidos, decorre do facto de o custo da gestão dos RU não refletir nem o seu custo real nem um custo justo, na medida em que sendo igual para todos não reflete o maior ou menor contributo quer na produção de RU quer na sua correta separação e encaminhamento.
Outra questão ainda relacionada de certa forma com o sistema tarifário prende-se com a taxa de gestão de resíduos (TGR). Esta encontra-se integrada na estrutura tarifária, na medida em que o montante correspondente à repercussão do encargo suportado pela entidade gestora relativo à TGR é refletido no valor final a suportar pelos municípios pela prestação dos serviços prestados pelos SGRU.
Ora, a TGR foi criada com o propósito fundamentalmente de desincentivar a utilização de métodos de gestão de RU mais poluentes, agravando o seu valor quando a escolha recaia sobre meios mais poluentes e mais nocivos para o ambiente, como por exemplo o depósito em aterro.
Acontece que, face ao atual contexto pandémico com as repercussões económicas e sociais de profunda crise, sendo o seu custo suportado pelos municípios e pelos cidadãos, dificilmente nos parece adequado o momento escolhido para estabelecer o seu aumento para o dobro.
Reconhecendo-se a importância deste instrumento, parece-nos extremamente gravoso o momento escolhido para o seu aumento que a não ser acompanhado de outras medidas que permitam dar condições ao setor para melhorar o seu desempenho, não trarão qualquer alteração a não ser o agravamento das condições dos municípios que se multiplicam em esforços para prestar apoio social e económico junto das populações.
Acresce que para além da TGR existe a taxa de gestão de resíduos adicional e não repercutível, (TGR-NR). Esta taxa, que recai sobre os SGRU foi calculada em função do desvio às metas para o ano 2020 constantes do Plano Estratégico de Gestão de Resíduos Urbanos (PERSU 2020) e às metas intercalares que foram definidas para os anos 2016 e 2018.
Acontece que sempre que os SGRU não dominarem, mesmo por motivos a que sejam alheios, as variáveis para atingir os resultados esperados, este instrumento não deixa de ser aplicado, traduzindo-se num verdadeiro imposto, injusto, com uma verdadeira natureza sancionatória.
O problema é que, nos últimos anos, se verificou um conjunto de circunstâncias alheias ao setor que não permitiu a existência de condições para o cumprimento das metas, a saber:
- A suspensão dos apoios do POSEUR durante quase dois anos;
- A ausência de um modelo mobilizador da população, traduzindo-se na fraca adesão na separação adequada de RU;
- A instabilidade e complexidade do modelo aplicável ao fluxo de resíduos de embalagens que tem um peso muito significativo.
Ainda assim, a TGR-NR foi aplicada aos SGRU, o que representou um impacto significativo nas suas contas e na proteção e confiança do sistema, e que a aplicar-se relativamente ao ano de 2020, marcado por uma crise profunda a todos os níveis, trará consequências gravíssimas para a sustentabilidade do setor.
Esta matéria pela importância e gravidade que pode assumir, face às circunstâncias excecionais que vivemos, carece de uma séria ponderação e justifica, a nosso ver, a adoção de medidas excecionais, bem como uma há muito anunciada revisão, que continua por concretizar.
No artigo da próxima semana, vamos abordar as demais formas de financiamento do Setor, desenhando, assim, um quadro completo das questões que preocupam os SGRU e com as quais lidam todos os dias, procurando nunca falhar no seu desígnio de garantir um serviço público essencial à vida em Sociedade.