Por Isabel Moraes Cardoso e Ana Isabel Marques, AMMC Legal
Voltamos ao tema da desarticulação das políticas públicas com incidência territorial, agora no domínio da conservação da natureza versus planeamento e ordenamento do território a nível municipal, e assim à necessidade de se repensar o sistema de gestão territorial, na medida em que, neste casso e por ato legislativo, o Governo atua em matéria reservada pela Lei das Bases Gerais da Política Pública de Solos, Ordenamento do Território e Urbanismo, aos instrumentos de gestão territorial. A questão surge a propósito da recente aprovação pelo Governo de cinco diplomas que visam concluir o processo de classificação de Zonas Especiais de Conservação (ZEC) dos 61 Sítios de Importância Comunitária (SIC) reconhecidos pela Comissão Europeia, no âmbito da Diretiva Habitats, e que ocupam cerca de 22% do território continental de Portugal (no caso, as ZEC de Montesinho/Nogueira, de Morais, do Alvão/Marão, da Arrábida/Espichel e de Nisa/Laje da Prata), o que segue à publicação, a 6 de fevereiro, do Decreto-Lei n.º 4/2025, relativo à ZEC de São Mamede. Estes diplomas dotam, cada uma das ZEC, de um regime jurídico próprio e específico de conservação de habitat e das populações de espécies da flora e da fauna selvagens, assegurando o cumprimento da Diretiva Habitats, em resposta a dois processos de infração do direito comunitário movidos pela Comissão Europeia contra Portugal, um deles julgado em 2019 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, por ausência de adoção de objetivos e medidas de conservação para as ZEC.
Sucede que o Governo, para aquele efeito, optou por desdobrar o procedimento de classificação das ZEC em dois atos, os referidos decretos-lei e, mais tarde, e por portaria irá aprovar os respetivos planos de gestão, já objeto de consulta pública, e nos quais se irão conter as preconizadas medidas de conservação. E é aqui que se verifica mais uma entorse ao regime legal do ordenamento e planeamento do território, de que tem havido recentemente vários exemplos, como os introduzidos pelo propalado Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, por os referidos decretos-lei atendendo à sua natureza, conteúdo e entidade responsável pela respetiva elaboração e aprovação, constituírem programas setoriais que, sendo aprovados por ato legislativo, prescindem totalmente do procedimento de planeamento e assim da ponderação integrada de interesses que se lhe encontra subjacente, tal como previsto na Lei de Bases e do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT).
Tomando como exemplo o Decreto-Lei já publicado relativo à ZEC de São Mamede, verifica-se que este começa por definir os objetivos de conservação da ZEC para os habitats e espécies protegidas com presença significativa na mesma e, em seguida, determina que, na elaboração, alteração ou revisão dos planos territoriais cuja área de intervenção incida sobre a ZEC, é obrigatório o estabelecimento de um regime de uso do solo que garanta aqueles objetivos. Para enquadrar o regime de uso do solo que assegure o cumprimento dos objetivos definidos, o diploma elenca uma série de medidas de conservação a serem adotadas, distinguindo medidas de ordenamento do território e medidas de gestão, umas e outras traduzidas quer na interdição, quer na sujeição a parecer do ICNF de determinadas categorias de atos e atividades.
Estas medidas coincidem, grosso modo, com as medidas de conservação regulamentares previstas no Plano de Gestão da ZEC São Mamede que esteve em consulta pública entre 15 de outubro e 12 de novembro de 2021. Pode, por isso, presumir-se, que nos diplomas aprovados no Conselho de Ministros de 10 de março, e noutros que tenham por objeto as restantes ZEC do território continental, se obrigue à adoção de medidas idênticas ou equivalentes às que constaram dos planos de gestão que estiveram em consulta pública entre 2021 e 2024, mas que não chegaram a ser aprovados.
No DL 4/2025 e nas já conhecidas propostas aprovadas, uma das medidas de ordenamento do território previstas consiste na interdição, em geral, da edificação em solo rústico, admitindo muito poucas exceções, o que é comum a todos ou quase todos os planos de gestão que estiveram em consulta pública. Outra medida consiste na sujeição a parecer do ICNF da instalação de infraestruturas de energia renovável em solo rústico, também com poucas exceções, sendo que, nalguns planos de gestão estas infraestruturas surgem como interditas, o que, constitui uma contradição com o direito comunitário, em concreto, com a presunção de interesse público superior, que habilita derrogações à aplicação das limitações decorrentes do regime da Rede Natura 2000, como se encontra previsto no recente DL n.º 99/2024, de 3/12, que altera o quadro regulatório aplicável às energias renováveis e transpõe parcialmente a Diretiva RED III.
Normas como estas têm incidência territorial urbanística, por dizerem respeito ao uso, ocupação e transformação do solo, têm de ser obrigatoriamente integradas nos planos municipais ou intermunicipais, os únicos que vinculam direta e imediatamente os particulares, tal como resulta da Lei de Bases e do RJIGT, uma vez que o sistema de gestão territorial atualmente em vigor assenta no princípio, tendencialmente exclusivo, de que só aos planos municipais (e intermunicipais) cabe definir o regime de uso do solo.
Resulta também da Lei de Bases e do RJIGT, e constitui princípio estruturante do sistema de ordenamento do território, que a elaboração de qualquer instrumento de gestão territorial é o resultado da colaboração e da concertação entre os vários órgãos da administração direta e indireta do Estado e da administração local, com competências sobre o território em causa, e ainda da participação dos cidadãos, visando concretizar uma adequada ponderação dos diferentes interesses, públicos e privados, nele envolvidos. A lei prevê, por isso, uma tramitação procedimental a ser observada na elaboração dos programas e planos territoriais, com várias fases e vários intervenientes, mormente com uma intervenção qualificada dos Municípios, que, acima de tudo, visa assegurar a devida ponderação e harmonização dos vários interesses públicos e privados em presença.
Estes diplomas ao conterem normas com incidência territorial urbanística deveriam reconduzir-se a um programa setorial, assegurando a referida ponderação integrada de interesses e a articulação com os planos municipais, tal como previsto na Lei de Bases e no regime jurídico da Rede Natura 2000, na medida em que condicionam o conteúdo destes últimos impondo aos Municípios a respetiva alteração. Contudo, é manifesto que tanto o DL 4/2025, como os demais não cumpriram os trâmites procedimentais previstos na lei para a elaboração dos instrumentos de gestão territorial, prescindindo por isso da necessária ponderação dos vários interesses públicos com expressão espacial, com especial relevância para os procedimentos de revisão de planos diretores municipais em curso.
Acresce que, ao interditarem, de forma aprioriorística, certos usos e atividades em todo o território abrangido pela ZEC, sem deixar qualquer margem de conformação por parte dos municípios, estes diplomas estão a dispor sobre o uso, ocupação e transformação do solo, o que constitui matéria reservada aos planos municipais e intermunicipais. Sendo necessário fixar para cumprimento da Diretiva Habitats, medidas complementares de conservação para as ZEC, estas, apenas serão legítimas se fundamentadas na necessidade de proteção dos valores de conservação da natureza em presença, o que se encontra por demonstrar, dado que os planos de gestão com a identificação dos habitats e das espécies da fauna e flora não foram publicados, e as medidas de ordenamento do território que contém violam não só o RJIGT como também a Lei de Bases, o que determina a respetiva ilegalidade e inconstitucionalidade indireta e constitui mais um caso de desarticulação das políticas públicas com expressão espacial e de descrença do legislador no funcionamento do sistema de gestão territorial.
Esperemos que esta entorse ao sistema de gestão territorial seja corrigida a breve trecho e a política de conservação da natureza seja prosseguida com a necessária coordenação com as demais políticas públicas com incidência territorial e com respeito pela política de ordenamento do território e urbanismo.