Por: Ricardo Bandeira, Advogado na AMMC Legal
Tendo presente que a génese da crise pandémica não foi também alheia à crise climática, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) apresenta também em si uma dimensão de “Transição Climática”, dividida em 6 Componentes. Cada uma destas, por sua vez, corresponde a uma das seguintes áreas estratégicas de intervenção: mar, a mobilidade sustentável, descarbonização da indústria, bioeconomia, eficiência energética em edifícios e energias renováveis.
Na componente “energias renováveis” é de destacar o apoio à produção de hidrogénio renovável e outros gases renováveis promovido através do Aviso de Abertura de Concurso (AAC) n.º 02/C14-i01/2023, com período para receção de candidaturas a decorrer entre março e julho de 2023. Prevê este aviso que os novos projetos de hidrogénio verde financiados pelo PRR tenham que estar operacionais até 31 de dezembro de 2025.
Perante um prazo tão reduzido de entrada em funcionamento, os novos projetos de produção de hidrogénio verde, ou de outros gases renováveis, atravessarão o mesmo desafio que os seus projetos homólogos, financiados através do AAC n.º 01/C14-i01/2021: a necessidade de compatibilizar os objetivos e metas do PRR – o desenvolvimento de novas indústrias e de novas soluções tecnológicas que contribuam para a neutralidade carbónica – com o ordenamento do território. Designadamente, com os usos admissíveis do solo rústico no Plano Diretor Municipal (PDM) territorialmente aplicável.
Os objetivos ambiciosos e metas apertadas do PRR não serão viáveis, por muito que as candidaturas dos projetos vejam o seu financiamento aprovado, se, posteriormente, em sede de processo de licenciamento junto da Câmara Municipal se verificar que os usos do solo previstos no PDM (nomeadamente, no caso do solo rústico) não são compatíveis com tais tipos de projetos. Possibilidade que, a prática tem demonstrado, tem sido descurada.
Nesse sentido, por muito que se apregoe as virtudes desta célebre “bazuca”, não basta apregoar quantidades de projetos, se a sua qualidade não estiver intrinsecamente também acautelada. Qualidade essa que passa também pela viabilidade urbanística dos projetos.
Por conseguinte, e após décadas de acesso a fundos europeus que têm também promovido ciclos de subsidiodependência a cada quadro comunitário, seria bom que o PRR possibilitasse a introdução de alterações de fundo no país. E neste ponto a construção de edifícios, equipamentos e infraestruturas que contribuam para a mitigação de fragilidades ambientais através da produção de fontes de energia renovável seria, efetivamente, uma alteração de fundo.
Contudo, para tanto é necessário um ordenamento do território ecológico, que introduza uma qualificação dos usos do solo compaginável com todo um conjunto de atividades que contribuam para a aceleração da transição energética, mediante a normalização generalizada da produção de energia a partir de fontes renováveis, de forma a ser obtida uma redução da emissão de gases de efeito estufa, até ser atingida a almejada neutralidade carbónica. Como tal, a materialização de um ordenamento do território ecológico é ela própria uma questão de urgência.
Urgência essa que não são estranhos os prazos apertados de execução do PRR. Consequentemente, seria necessário que ao nível local fossem conciliados os projetos do PRR com os procedimentos de revisão dos PDM que estão presentemente em curso. Todavia, essa conciliação é impossível dada a morosidade decorrente da complexidade deste tipo de procedimentos. Como tal, e tendo em vista esta conciliação, é necessário lançar mão de uma medida excecional: a suspensão do PDM acompanhado de medidas preventivas. Tal permitirá antecipar para o presente os efeitos desta mesma conciliação: a atualização dos usos do solo e do seu respetivo regime por forma a viabilizar, dentro dos prazos do PRR, projetos de investimento estratégico na área das energias renováveis.
É, por isso, tempo de assumir que, também no que ao PRR respeita, nem sempre quantidade é sinónimo de qualidade, mas tem que passar a sê-lo.