Há já algum tempo que defendo a necessidade de revisão da forma como a gestão de resíduos se organiza no país. Desde sistemas de gestão em alta que se encontram totalmente desajustados à realidade atual do país, aos desafios que se nos impõem pelas ambiciosas metas europeias, passando pelos modelos de financiamento e organização. Tudo vem sendo definido numa manta de retalhos tecida a várias mãos entre o Ministério do Ambiente, a Autoridade Nacional de Resíduos, a Entidade Reguladora, os Sistemas de Gestão multi, inter e municipais e os Sistemas de gestão de fluxos específicos. Se adicionarmos a isto a multitude de legislação aplicável, que coloca todos os “stakeholders” à beira de um ataque de nervos, temos o caos instalado. É, precisamente, neste ponto que nos iremos deter.
No passado dia 6 de novembro o Ministério do Ambiente colocou em consulta pública, até ao dia 20 do presente mês (15 dias), um projeto de Decreto-Lei (PDL), com mais de 400 páginas que (i) altera mais 60 artigos e adita 7 novos artigos no UNILEX (Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro), (ii) cria um novo Regime Geral de Gestão de Resíduos (RGGR), revogando o atual Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro, (iii) cria um novo Regime Jurídico da Deposição de Resíduos em Aterro, (iv) altera o regime jurídico da avaliação de impacte ambiental (RJAIA) e (v) altera disposições relativas ao Fundo Ambiental.
Aparentemente, a motivação de todas estas alterações prende-se com a necessidade de transposição para o ordenamento jurídico nacional das alterações efetuadas em 2018 a várias Diretivas Comunitárias, por força das Diretivas (UE) 2018/849, (UE) 2018/850; (UE) 2018/851. A questão é que as alterações ao edifício jurídico e legal vão para além de uma simples atualização dos regimes, por força das novas redações das Diretivas e cuja transposição teria de ter sido operada até julho do presente ano.
No momento, em que se escreve estas linhas, ainda nos encontramos longe de chegar a conclusões quanto às alterações propostas, no entanto poderemos dedicar atenção a duas alterações que se nos apresentam já como mais controversas.
Desde logo as alterações no UNILEX que permitirão aos SIGRE agirem como verdadeiros “conglomerados” económicos nos fluxos que gerem. Se até aqui o n.º 2 do artigo 11.º do regime impedia as entidades gestoras de “integrar entidades com atividade suscetível de gerar conflitos de interesses”, a alteração proposta no novel n.º 3 do artigo 11.º do PDL deixa uma janela aberta a essa possibilidade, desde que com o beneplácito da APA e da DGAE.
A possibilidade de concentração vertical e horizontal de entidades geridas ou controladas pelos gestores dos SIGRE, coloca-nos várias questões relacionadas com as regras de concorrência, bem como, entre a compatibilização da atividade própria da atividade comercial – obtenção de lucro e a atividade da gestão do SIGRE, cujo objeto é bem diferente.
O país já viu muitos casos em que a possibilidade deste tipo de concentração levou a resultados nefastos para os contribuintes (veja-se o caso BES/GES) e estranha-se que seja um governo do Partido Socialista a abrir esta porta, apesar das vozes contra, em especial das ONGA.
Outra questão controversa e cuja alteração, ainda não é possível obter uma visão clara quanto ao seu impacto prende-se com a alteração do RGGR no respeitante à responsabilidade da gestão e alteração da definição de resíduos urbanos. Se até agora se o resíduo urbano doméstico equivalia a 1100L/dia produzidos, isentando os municípios da responsabilidade de recolha dos resíduos produzidos, nomeadamente por operadores comerciais e outros, acima dessa quantidade, o novo regime, ainda que possa ser dotado de méritos, não clarifica absolutamente nada, apenas cria mais confusão. Necessitam, pois, uma clarificação, através de nova redação, os artigos 9.º e 10.º do Anexo I.
[blockquote style=”2″]Uma oportunidade mais que perdida[/blockquote]
Reservando para análise posterior uma leitura mais completa das alterações profundas que se propõem, ressalva-se no imediato que o facto do país se encontrar atrasado na transposição das diretivas referidas, nada justifica que, num ano extremamente atípico, inclusive no setor dos resíduos, por força da pandemia COVID-19, se processem alterações desta magnitude no setor de resíduos, sem uma discussão mais alargada e atempada com o setor e especialistas, dando a todos exclusivamente e apenas 15 dias para o fazerem. Esta forma de agir induz-nos a convicção de não haver uma genuína vontade de acolher os contributos de todos os agentes (ONGA’s, Municípios, Sistemas de Gestão, etc.). Se vontade existisse, o Ministério do Ambiente, aceitaria os reptos já lançados para estender a consulta pública, pelo menos, mais 15 dias. Não se percebe a súbita urgência nesta matéria.
Pode-se avançar, porém, que as alterações que venham a ser produzidas representam já uma oportunidade mais que perdida. É uma verdadeira oportunidade falhada de continuar o caminho trilhado de redução legislativa iniciado com o UNILEX e, ainda mais importante, a possibilidade de, com todos, preparar para as próximas décadas a gestão de resíduos no país.
[blockquote style=”3″]Todos os meses, Pedro Vaz marcará presença na Ambiente Magazine para dar a sua opinião sobre políticas ambientais e outros assuntos ligados ao meio ambiente. [/blockquote]