Por: Gonçalo Calado, investigador marinho no MARE – NOVA – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente
A proposta da Comissão Europeia da Lei de Restauro de Natureza foi, ainda que de forma tangencial e depois de muitas emendas, votada favoravelmente pelo Parlamento Europeu. Para além das metas concretas (percentagens de áreas a restaurar pelos Estados-Membros, limites às atividades económicas vigentes, etc.) que ainda serão afinadas, esta lei dá-nos um caminho e uma esperança de recuperar alguma parte do tempo perdido e desde 1992 que não há uma peça legislativa europeia tão importante para a conservação da natureza e biodiversidade. É, pois, uma oportunidade fugaz (não gosto de “única”) para trilhar um caminho inserido numa estratégia mais vasta de combate e adaptação às alterações climáticas, que só ganhará com um amplo consenso, e com instrumentos legislativos e financeiros articulados entre si.
O restauro ecológico não tem muito de inovador enquanto conceito. Pretende-se recuperar habitats e ecossistemas degradados ou extintos, ajudando a reajustar os processos naturais, restabelecendo os serviços prestados pelos ecossistemas. Assim o é quando se remove um açude que já não é utilizado ou se recupera uma duna degradada pela construção, pelo pisoteio, ou pela passagem de veículos todo-o-terreno. Inovador sim será um desígnio comum europeu que diga que é este o caminho, com o qual nos comprometemos com as gerações vindouras, na esperança de construir um legado natural, resistente e resiliente, que nos orgulhe e sirva os interesses legítimos de quem cá fica por mais algum tempo. Inovador será conseguir um amplo consenso na sociedade, provando que todas as atividades económicas só terão a ganhar com o esforço de restaurar habitats e ecossistemas, e que todos, sem exceção, beneficiaremos disso, fazendo jus ao lema “ninguém fica para trás” do pacto ecológico europeu.
Quando falamos de restauro ecológico no meio marinho, os desafios são maiores: a nossa perceção de degradação é muito diferente. Fazendo uma comparação grosseira, ainda hoje toleramos – e subsidiamos – a pesca de arrasto. Uma arte altamente destrutiva, que jamais toleraríamos em terra. Alguém imagina um helicóptero a arrastar uma rede em cima duma savana, rejeitando a vasta maioria dos aninais apanhados por esse meio? Deixando para trás todos os mutilados e espécies sem valor? Claro que não. O mesmo se passa com a perceção da necessidade de restauro no meio marinho. Achamos que o mar aguenta tudo. E já sabemos que não é verdade. O mar é uma espécie de caixa preta de onde retiramos proveitos – alimento ou lazer – e para a qual despejamos o que descartamos – lixo ou águas residuais. Não conseguimos ter a perceção imediata de que não podemos fazer isto indefinidamente.
Pelos motivos atrás expressos, está criado um ciclo vicioso que abre um fosso entre o restauro em terra e nas águas continentais e o restauro no meio marinho: temos menos exigência da sociedade para o restauro numa zona totalmente devastada pela pesca de arrasto, que não se vê, quando comparada com uma mina a céu aberto. Teremos por isso mais motivação política e, portanto, mais financiamento para desenvolver técnicas de restauro em ambiente terrestre do que em ambiente marinho. Ao estar longe da vista, deixa de estar nas prioridades da sociedade. É normal, ainda que indesejável.
Em Portugal, acresce a esta assimetria a questão identitária do mar, da pesca, e dos pescadores, aos quais permitimos quase tudo. A aura de heróis valentes que vão buscar o nosso alimento pondo as suas vidas em risco ofusca decisões ponderadas de gestão de recursos como todos assistimos por exemplo no caso da gestão dos “stocks” de sardinhas. Só com uma lei abrangente, que compartimente as áreas de atuação, e com instrumentos financeiros associados perfeitamente definidos é que poderemos almejar a diminuir a diferença de empenho que existe entre recuperação de ecossistemas terrestres e marinhos. Esse será talvez o maior desafio, pois a perceção de recuperação no mar não será tão imediata. Mas não tenho dúvidas que esse será o caminho. Espero que estejamos à altura deste desafio.
Este artigo foi incluído na edição 101 da Ambiente Magazine