Por: Feliz Mil-Homens, professor do ISEL, assessor da Direção da AVALER
Portugal assumiu o compromisso da neutralidade carbónica em 2050. Isso é um compromisso geracional, de enorme ambição, que deve mobilizar todos os setores de atividade.
O setor da gestão de Resíduos Urbanos (RU) representa cerca de 7% de todas as emissões de Gases com Efeito de Estufa (GEE) do país, e dentro dessas 6,84% resultam das emissões de metano nos aterros sanitários. Resulta claro que a descarbonização do setor da gestão de RU passa acima de tudo pela forte redução da deposição de resíduos em aterro.
Portugal tem enviado para aterro sanitário, todos anos, cerca de 3 milhões de toneladas de resíduos urbanos, representando quase 60% dessa tipologia de resíduos, mais do dobro da média europeia. Esta percentagem tem que ser reduzida a um máximo de 10% até 2035, devido aos compromissos nacionais na área da gestão de RU.
Ou seja, quer do ponto de vista dos compromissos de descarbonização, quer do ponto de vista dos compromissos relativos à gestão de RU, a redução de envio de resíduos para aterro tem que ser um objetivo essencial das políticas de gestão de RU.
A redução do envio de RU deve fazer-se em primeira mão pelo aumento da recolha seletiva e da reciclagem, seja multimaterial, seja de bioresíduos. Porém, há uma fração significativa dos RU que, por não permitirem uma reciclagem de qualidade, têm como única possibilidade de desvio de aterro a valorização energética. Coloca-se assim a questão de avaliar se há benefícios, em termos de emissões de GEE, no desvio de resíduos do aterro sanitário para a valorização energética de resíduos. Procurando responder a essa questão, faz-se seguidamente o balanço carbónico associado à transferência de uma tonelada de resíduos urbanos do aterro sanitário para a valorização energética.
Quando uma tonelada de RU é transferida do aterro sanitário para a valorização energética, há um acréscimo de emissões de GEE na unidade de valorização energética de RU devido:
a) à incineração dos resíduos, parte dessas emissões são de natureza fóssil, resultantes por exemplo dos plásticos contidos nos RU, e parte são biogénicas, por exemplos dos papeis, restos de comida, etc.
b) ao consumo de combustível auxiliar (gás natural) utilizado em alturas específicas da operação da central, por exemplo no seu arranque.
Os acréscimos de emissões fósseis, devidas aos resíduos e ao combustível auxiliar são contabilizadas no balanço com sinal positivo.
Mas há igualmente reduções de emissões de GEE que, no balanço, são contabilizadas com sinal negativo, resultantes de:
- c) emissões que não ocorrem no aterro sanitário pelo facto de os RU passarem a ser tratados por valorização energética.
- d) emissões evitadas como resultado da substituição de eletricidade. A injeção de eletricidade na rede elétrica de serviço público (RESP), resultante da valorização energética de resíduos, evita a emissão de GEE associada à produção dos mesmos quantitativos de energia elétrica pelo sistema electroprodutor.
- e) emissões de GEE evitadas pelo facto de se recuperarem metais e enviarem para reciclagem. A partir das escórias de incineração são recuperados metais, ferrosos e não ferrosos, e enviados para reciclagem, donde resultam emissões de GEE evitadas por substituição da utilização de metais virgens.
Recorrendo, sempre que disponíveis, a dados oficiais específicos para a situação de Portugal Continental, em 2019, foi possível estimar as parcelas acima identificadas, referentes a uma tonelada de RU, conforte tabela seguinte.
Pode então ser calculado o balanço carbónico B, pela diferença entre o acréscimo de emissões e o seu decréscimo (emissões evitadas). Balanço também evidenciado na figura abaixo.
B= a1 + b – (c + d + e) = 392+9-(617+117+27) = – 360 kgCO2eq./t de RU.
Assim, por cada tonelada de Resíduos Urbanos desviada de aterro sanitário para valorização energética, no contexto do Continente português, evita-se a emissão de 360 kg CO2 equivalente.
Este é um valor mínimo de emissões evitadas por tonelada de resíduos urbano e similar enviado para valorização energética, uma vez que esta análise é muito conservadora. Por exemplo não se consideram as emissões evitadas devido à utilização da fração mineral das escórias, que está já a ser praticada, nem o CO2 absorvido na carbonatação das escórias (bottom ash aging).
No entanto, com base nesta análise, é possível estimar que: 1- a capacidade de valorização energética atualmente em operação no Continente, ao desviar de aterro cerca de 1 milhão de toneladas de RU por ano, está a evitar a emissão de 360 mil toneladas de CO2 equivalente por ano e 2- se a capacidade de valorização energética de resíduos urbanos passasse dos atuais 20% dos RU produzidos para 35%, o mínimo necessário para valorizar os RU não recicláveis com qualidade, isso permitiria evitar adicionalmente a emissão de 270 mil toneladas de CO2 equivalente por ano.