Opinião: “Haja Racionalidade Ambiental e Económica”
Por Carla Susana Santos, presidente da direção da APOGER
Uma das competências administrativas do Governo é promover a satisfação das necessidades coletivas. Questiono-me se a aplicação de um diploma de 1997 (Lei n.º 88-A/97), que se encontra em vigor com as demais alterações, responderá a essas necessidades. Nesse diploma é vedado a empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza, salvo quando concessionadas, o acesso à recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos.
A Diretiva (UE) 2018/851 do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia refere que a decisão relativa à repartição de responsabilidade pela gestão de resíduos entre intervenientes públicos e privados depende frequentemente de condições geográficas e estruturais e que a decisão cabe a cada Estado-Membro. Aqui rege o princípio da proximidade previsto no RGGR.
Todos sabemos que não existem e que nunca existirão estruturas municipais próximas da maior parte dos produtores de resíduos urbanos e que consigam responder às necessidades da população. Mas Portugal escolheu aplicar a Lei n.º 88-A/97, privando os particulares de entregar os seus resíduos a OTR privados, em quantidades inferiores a 1100 l/dia.
Os produtores particulares têm de entregar gratuitamente todos os resíduos a sistemas municipais de recolha ou a entidades concessionadas por estes, existindo assim uma perda de valor económico do OTR privado e de compensação do produtor particular motivadora para a entrega dos resíduos em unidades que promovem o tratamento dos mesmos. O que se prevê com esta restrição?
Prevê-se, nomeadamente, a deposição e descargas ilegais de resíduos, a contaminação de solos e águas, o aumento de deposição em aterro, a incorreta classificação dos resíduos, maior incumprimento de metas europeias e decréscimo na economia circular. A proibição de receção de resíduos de particulares pelos OTR privados é completamente arbitrária e não tem racionalidade ambiental e económica legítima.
Qual o objetivo do legislador não permitir que os OTR privados recepcionem quantidades inferiores a 1100 l/ dia, mas superiores já pode? Talvez os sistemas municipalizados não tenham capacidade para receber tantas quantidades. O PERSU 2030 refere que era expectável a diminuição por parte dos municípios de uma recolha indiferenciada dando lugar a um aumento da recolha selectiva, o que não se tem verificado! Os municípios estão a ajustar-se para a receção dos materiais “clássicos” que nos vêm habituando, ou seja, embalagens de papel e cartão, de vidro e de plástico, bem como biorresíduos. E os REEE? Os resíduos perigosos, de madeira, de metais ou de têxteis?
Existe capacidade de tratamento e formação para a gestão deste tipo de resíduos nos sistemas municipalizados? Ou poderão os sistemas municipalizados escolher, em forma de concessão, quais os OTR privados que podem realizar o tratamento aos resíduos urbanos?
A decisão do Governo é impor num Estado Democrático uma restrição que terá consequências devastadoras em termos económicos e ambientais. Quem se deslocará para dar um destino adequado ao resíduo que produz sem uma compensação financeira? Que controle existe no produtor de RU, se este nem carece de e-GAR para entregar os resíduos que encaminha para os sistemas municipalizados? Quais os municípios que estão preparados para receber esses resíduos? Que formação têm os colaboradores do município para receber os resíduos e proceder à correta gestão dos mesmos? Os municípios entregam as suas responsabilidades legislativas através de concessão? Que Estado de Direito Democrático existe quando são selecionados quem “vive” e quem “morre” no sector económico?
Este artigo foi publicado na edição 103 da Ambiente Magazine.