Por Catarina Pinto Xavier, advogada SLCM // Serra Lopes, Cortes Martins & Associados – Sociedade de Advogados, SP, RL.
Olhando para a regulação hoje existente, até custa a acreditar que a primeira entidade gestora de gestão de resíduos em Portugal foi criada em 1996, por iniciativa de empresas privadas, quando na lei ainda não havia pistas sobre a natureza, estrutura e modo de organização de tais entidades. O que se estabelecia era que a entidade gestora deveria estar devidamente licenciada para exercer a atividade.
Que a lei vai sempre atrás da evolução da sociedade, é ideia basilar na ciência do Direito. Que um modo de organização de iniciativa privada se torne um pilar essencial para o funcionamento de um setor que, hoje, é altamente regulado e crítico para a transição para uma economia circular, já é caso de estudo.
As entidades gestoras de sistemas integrados de gestão de fluxos específicos de resíduos (chamemos-lhe, abreviadamente, “EG”) são a concretização prática do princípio norteador do regime jurídico da gestão de resíduos: o princípio da responsabilidade alargada do produtor.
As regras aplicáveis às EG têm vindo sempre a evoluir desde 1996, numa a lógica de ir fazendo e aprendendo, não obstante as desvantagens da insegurança jurídica inerente. A recente alteração legislativa no sector dos resíduos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, mostra que ainda não estamos num ponto de estabilização do regime jurídico das EG, pois que, mais uma vez, foi objeto de alterações.
Os artigos 11.º e 12.º do UNILEX foram alterados, no sentido de, por um lado, se restringir o âmbito das atividades que podem ser prosseguidas pelas EG e, por outro, para aumentarem as suas obrigações – na sua maioria, obrigações que já constavam de licenças atribuídas a EG.
[blockquote style=”2″]As EG são o exemplo real do aproveitamento da gestão e responsabilidade privadas[/blockquote]
Se num primeiro momento, a licença era o instrumento regulador mais importante da vida das EG, ultimamente, também a lei assume um papel fundamental, integrando regras já testadas no âmbito do licenciamento, diminuindo a discricionariedade da Administração e contribuindo para um sistema mais transparente e igualitário. Até porque, se os primeiros e mais longos passos na operacionalização das EG foram dados nos resíduos de embalagens, desde 1 de janeiro de 2018, o UNILEX deixou claro que as EG são o paradigma na concretização de qualquer sistema integrado, independentemente do fluxo específico de resíduos em causa.
Paradigmático não significa, no entanto, em termos jurídicos pelo menos, simples e seguro. Significa, sim, numa perspetiva pragmática, que funciona e que, até invenção de melhor sistema, é o mais eficiente.
Colocando o foco na perspetiva jurídica, atrevemo-nos a dizer que as EG são a figura mais particular do Direito Público português. E não nos equivocamos quando nos referimos ao Direito Público. É que estão em causa pessoas coletivas privadas, organizadas ao abrigo do direito privado e geridas por privados, mas que estão muitíssimo limitadas na sua liberdade económica e comercial, na medida em que prosseguem funções essencialmente públicas, por participarem na prestação de um serviço que é público: a gestão de resíduos.
A fronteira entre o público e o privado é, para a EG, muito ténue, já que a maioria das suas ações estão dependentes da “tutela” (i.e., Ministério do Ambiente, Ministério da Economia, APA e DGAE) e a seu core business está totalmente dependente de uma licença administrativa.
As EG são o exemplo real do aproveitamento da gestão e responsabilidade privadas para a prestação de um serviço público, sem qualquer mais-valia financeira associada.
[blockquote style=”2″]A recente reforma legislativa no setor dos resíduos é para europeu ver[/blockquote]
Torna-se, por isso, descabido pretender aplicar às EG as regras clássicas do Direito da Concorrência, quando as mesmas não são livres de definirem a sua estratégia comercial (se é que a têm). Assim como é descabido esperar que os potenciais litígios entre EG sejam dirimidos como se de normais empresas privadas se tratassem, quando os pressupostos das ações que prosseguem têm fundamento em decisões da Administração Pública.
E mais despropositado é exigir todo o tipo de regras de compliance operacional e financeira, impor metas muito ambiciosas, colocando toda a pressão na eficiência dos sistemas integrados, se a Administração Pública a quem esses sistemas integrados estão umbilicalmente ligados, através da licença, é indecisa, lenta, descoordenada e parca nas respostas.
Como se não bastasse, a lei ainda criou (e esta reforma nada alterou a esse respeito) um regulador à experiência, sem funções formalmente atribuídas, sem poderes de autoridade e sem responsabilidade jurídica, para “semi-regular” (mais ou menos) as EG: o Presidente da CAGER.
O problema é que, enquanto a Administração Pública vai fazendo e aprendendo (mais ou menos), o tempo passa e as metas não se alcançam.
Para as EG, a última alteração foi mais do mesmo: mais restrições, mais obrigações, mais metas ambiciosas. Não nos mereceria crítica, considerando a exigência da conjuntura que vivemos, rumo a uma economia circular e sustentável, se a todos esses plus, a lei – e, principalmente, a vida real – juntassem outro: mais condições. É que se o Estado não quer fazer, ao menos que não atrapalhe.
Em conclusão – e respondendo à pergunta que colocámos no título do primeiro dos artigos desta série que agora terminamos – a recente reforma legislativa no setor dos resíduos é para europeu ver. E o nosso mais sincero desejo é que a realidade da concretização dessa reforma nos desminta.
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