#Opinião: Energia, Circularidade e Género: um trio estratégico

Por: Alice Khouri e Filipa Pantaleão

Muito se fala – o que é bom em termos de engagement e consciencialização coletiva – sobre a transição climática como o grande desafio da modernidade diante do grave cenário de alterações climáticas e todos os seus impactos no desenvolvimento (económico e social) em âmbito global.

Há um certo consenso, portanto, em relação à transversalidade do desafio da mitigação das alterações climáticas, mas ainda são objeto de alguma discussão académica e científica o papel de alguns sectores económicos específicos e quais esforços devem ser prioritizados.

Devido ao seu grande impacto em termos de emissões de gases de efeito estufa (40% da emissão global apurada em 2022) e a sua utilidade geral para a sociedade, o sector energético emerge como vetor crucial no cenário da transição climática referenciada acima. Necessário, portanto, o endereçamento sustentável de toda cadeia produtiva de energia (desde a geração até ao consumo) em uma evolução para um modelo energético mais adequado em processo que se chama de “transição energética”.

Alice Khouri

Por essa transição que o setor de energia precisa fazer para endereçar a urgência de descarbonização entende-se o esforço conjunto de cada segmento das atividades económicas de geração (produção de energia), as infraestruturas envolvidas na transmissão (transporte) e distribuição (entrega) da energia e, cada vez com maior protagonismo, o consumo de energia.

Pode-se dizer, com algum conforto, que a grande transformação do setor energético passa por uma significativa inserção de fontes de energia renováveis, com diminuição drástica da geração de energia a partir de combustíveis fosseis, mas não só. A transição energética consiste, de verdade, em uma mudança de ordem macro, que equilibre os três grandes desafios energéticos: segurança, preço e sustentabilidade. Referido equilíbrio tem se mostrado ser possível a partir de uma descentralização dos sectores energéticos, com a diversificação das formas de geração de energia que incluem poossibilidades de participação ativa dos consumidores.

Outro vetor essencial é a circularidade, na qual se mede a implementação da economia circular, que significa, de forma simplificada, a maximização da utilização dos recursos naturais extraídos do Planeta, ao promover a sua reintrodução na cadeia de produção.

Assim, deixamos de estar numa economia linear (baseada no consumo e descarte) como é a atual, e evoluimos para uma economia que continua a promover o crescimento económico através da reutilização dos recursos já em circulação. Consegue-se na prática aplicar este conceito se incorporarmos nos nossos modelos produtivos a redução, a reutilização e, só, no fim a reciclagem.

“quanto mais elevada for a circularidade, mais materiais secundários estão a ser utilizados para substituir materiais primários”

A circularidade também é afetada negativamente (e muito), pela utilização de combustíveis fósseis, pelo que a substituição destes por fontes renováveis, vai, naturalmente, retirar esse peso da extração da natureza, com sérias vantagens ambientais.

Em resumo, quanto mais elevada for a circularidade, mais materiais secundários estão a ser utilizados para substituir materiais primários, quer seja sob a forma física, quer seja sob a forma de energia. Parece um conceito teórico e cuja aplicabilidade é complicada mas basta pensamos no impacto positivo que teria na circularidade, se reduzirmos de forma significativa (ou total) a extração de combustíveis fósseis (principalmente carvão) para produção de energia e baixarmos significativamente as quantidades extraídas de areia e gravilha para a construção, segundo o que nos diz o estudo “Circularity gap Report 2022”. Diz este relatório, que o índice de circularidade é de 7,2% e que tem vindo a decrescer anualmente face a 2018, quando era 9,1%, devido ao aumento da extração e uso de matérias primárias.

Não obstante energia e circularidade serem assuntos para rios de tinta dado o seu potencial impacto de descarbonização, neste artigo pretendemos lançar luzes à relação entre energia, circularidade e género para demonstrar-vos como esta intersecção pode ser estratégica e positiva no combate às alterações climáticas e aceleração da cultura ESG que tanto se clama na atualidade. Trata-se, no fundo, de mudanças comportamentais essenciais que precisam de ser feitas para se alcançar os resultados pretendidos com eficiência, o que equivale dizer com qualidade, no tempo pretendido e ao menor custo.

Com isto em mente note-se que o sector de energia é um dos que tem o gap de desigualdade de género mais acentuado e isso se verifica tanto no mercado de trabalho deste sector quanto no acesso à energia, o que pode interferir diretamente no potencial de descarbonização que o sector tem. Explicamos.

Conforme indicado pela IEA (International Energy Agency), apesar de representarem 39% do mercado de trabalho em geral, as mulheres são parte de apenas 16% do sector de energia tradicional. Importante notar que a IRENA (International Renewable Energy Agency) aponta que a desigualdade de género é menos acentuada no setor de renováveis (no qual 32% são mulheres) do que em não renováveis (22%).

A igualdade de género, portanto, tem o potencial de concretizar o desenvolvimento efetivamente sustentável

Com a inserção exponencial das fontes renováveis na matriz energética – um dos principais componentes da transição energética – houve e continuará a acontecer um aumento do número de posições de trabalho no sector energético mundial. Este crescimento do número de profissionais relacionados ao sector energético representa não só enorme potencial de mudança do cenário de alterações climáticas (posto que se feito com eficiência, a inserção de renováveis pode chegar a ser responsável por 25% da descarbonização desejada para 2050), como também – e talvez principalmente – de mudança na sociedade.

Se junto com o crescimento exponencial dos empregos em sectores energéticos houver maior inserção da expertise das mulheres, há grande potencial para estimularmos um crescimento económico que também atende às questões de governança que tanto falamos atualmente no âmbito do ESG. A igualdade de género, portanto, tem o potencial de concretizar o desenvolvimento efetivamente sustentável, mas este potencial encontra-se ainda travado por duas grandes razões:

  1. Mesmo na área renovável, mulheres são maioritariamente empregadas em cargos administrativos, de menor qualificação e não técnicos no sector energético, o que pode estar relacionado a uma preponderância do género masculino na principal área de formação que compõe as atividades ligadas a energia (science, technology, engineering and mathematics – STEM). Importante ressaltar que esta formação preponderante dos homens em STEM é reforçada pelos estereótipos de género da sociedade, que atribui os cargos relacionados à energia aos homens.

O número de mulheres com formação em STEM aumentou e, em uma pesquisa realizada pela IRENA, 71% dos participantes da pesquisa possuem, pelo menos, um diploma de licenciatura em alguma das áreas de science, technology, engineering or mathematics. Essas mesmas mulheres, quando questionadas sobre as barreiras no mercado de trabalho nessa área, responderam que o principal factor de importância é a desigualdade de género.

  1. Há um gap ainda maior no tocante aos cargos de decisão e de C-level. Essa desigualdade de género no tocante à tomada de decisões e estratégia no sector energético acentua ainda mais desigualdade em geral e priva o sector dos benefícios já apurados da inclusão.

Filipa Pantaleão

No âmbito da circularidade, sendo a Energia um setor crucial na sua aplicação, infere-se  a continuidade da problemática da questão do género como acima se expôs. Na circularidade (não considerando a energia), sabemos que nos países que integram G20 em 2020, as mulheres em posições de gestão nos sectores de abastecimento e tratamento de água e resíduos é de 20.6%, quando a média de todos os sectores de atividades é de 38%.

Ainda, segundo um questionário promovido pelo grupo de trabalho Women of waste, da Associação “International Solid Waste Association”, cujo os resultados se basearam em 626 respostas de 73 países, demostram que as mulheres são ativas no setor de resíduos, com carreiras transversais na hierarquia de resíduos e em organizações, tanto no setor público quanto no privado. Mas as conclusões que a seguir apresentamos referem que:

  • 58,1% das mulheres têm menos de 40 anos, o que esperamos que se traduza em inovadoras e diferenciadoras perspetivas para lidar com os problemas de resíduos em todo o mundo.
  • 51,6% das mulheres trabalham nas áreas de prevenção, reutilização/reparação/reabilitação e reciclagem de resíduos, refletindo a mudança de paradigma que está a acontecer no setor, e que está a atrair novos talentos. Animadoras também são as conclusões apontadas de que a liderança das mulheres e na tomada de decisões pode levar a melhores resultados ambientais, inclusive fortalecendo as políticas ambientais e promovendo investimentos sustentáveis, tanto no setor público como no privado.

Vários estudos, dirigidos ao setor empresarial demostram que quando as mulheres ocupam pelo menos 30% dos assentos do Conselho passam a fazer a diferença na governança climática das empresas e que estas administradoras dão prioridade consistentemente às questões ambientais, sociais e de governança (ESG), incluindo clima e sustentabilidade, de uma forma que os administradores do sexo masculino não fazem, inclusive quando questionados se a mudança climática deve constar na estratégia da empresa, 79% das administradoras concordaram, em comparação com 62% dos administradores do sexo masculino. Resultados semelhantes se aplicam a direitos humanos e à escassez de recursos.

O ponto que gostávamos de lançar nesta oportunidade é: que aproveitemos o momento de urgência da discussão climática para ressignificar o modelo energético e económico que queremos, e isso implica também em uma efetiva sustentabilidade dos sectores, o que não é possível sem a igualdade de género e perspectivas efetivamente inclusivas.

Ao negligenciar os talentos do género hoje tido como “sub representado”, os países (e as empresas) não só deixam de alcançar os resultados que poderiam em termos económicos e de sustentabilidade como perpetuam a violação de um crucial pilar do ESG: a governança.

Notas biográficas:

Alice Khouri é advogada e professora em Energia e Regulação Económica. Mestre em Direito Público e Doutoranda em ciências jurídico económicas na Universidade de Lisboa (Faculdade de Direito) onde é investigadora colaboradora. Coordenadora do Rolim Advogados em parceria com Ferreira Pinto Cardigos em Portugal.

Filipa Pantaleão é engenharia do Ambiente formada na Faculdade de Ciência e Tecnologia (FCT) da Universidade Nova de Lisboa e realizou um MBA pela Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica Portuguesa. Atualmente é responsável pela Direção Técnica da EGF – Environmental Global Facilities.

 

© Fernanda Fioravanti