Por Isabel Abalada Matos e Isabel Moraes Cardoso, Sócias Fundadoras da AMMC Legal
O Simplex Urbanístico (Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro) teve a virtualidade de trazer para a ordem do dia as questões urbanísticas e, em menor medida, as de ordenamento do território. Nunca, ao longo dos já longos 26 anos da vigência do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), uma alteração legislativa motivou tamanho debate. O desiderato habitação, ou melhor, de habitação disponível no contexto nacional, fez-nos debater não só o mérito das soluções das alterações introduzidas atentos os objetivos de simplificação, mas também a por vezes pouca coerência dos meios para as alcançar e um ano volvido sobre a respetiva entrada em vigor, mostra a prática que a tentativa de uniformização de procedimentos entre municípios, redundou em várias interpretações do novo quadro legal agravadas pelo “emendar de mão” em retrocesso da simplificação, que veio a ser operada por via das Portarias n.ºs 71-A e 71-B, de 27 de fevereiro. Na “espuma” da controvérsia inerente às alterações inseridas no RJUE, a alteração efetuada pelo Simplex Urbanístico, à Lei das Bases Gerais da Política Pública de Solos, Ordenamento do Território e Urbanismo (esta sim, a “Lei dos Solos”) e ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) teve menor destaque e não fez ecoar, com exceções pontuais, os meios de comunicação. É perante a publicação do Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, que altera o RJIGT, instituindo um regime especial de reclassificação do solo para fins habitacionais e finalidades complementares, considerado pelo Presidente da República um “entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território”, que muitas foram as críticas dos especialistas e das organizações representativas na área da habitação, arquitetura, urbanismo e ambiente. Não obstante, cabe ter em conta que foi o DL 10/2024 que introduziu a primeira entorse no sistema de planeamento por via da alteração da referida Lei de Bases permitindo que por mera deliberação dos órgãos das autarquias locais se pudesse classificar o solo como urbano – o que levanta fundadas reservas de constitucionalidade, dado que nos termos da Constituição cabe aos planos definir as regras de ocupação, uso e transformação do solo -habilitação que no RJIGT na versão de início de 2024, ficava restrita às situações de reclassificação do solo rústico para urbano, com a categoria de espaço de atividades económicas, ainda que, neste caso, com consulta pública e com intervenção da Administração central, ou no caso da habitação por via de um procedimento de alteração simplificada dos planos, sempre que a propriedade do solo fosse exclusivamente pública, a área a reclassificar estivesse situada na contiguidade de solo urbano e a intervenção constasse dos instrumentos de política de habitação municipais.
O Decreto-Lei n.º 117/2024 vai mais longe e, presumidamente, a título excecional e para dar resposta “às prementes necessidades de habitação, bem como às atividades económicas”, por via da “maior disponibilidade de terrenos (…) permitindo que as famílias portuguesas tenham acesso à habitação digna”, vem alargar as situações especiais de reclassificação do solo por mera deliberação dos órgãos autárquicos (ainda que com consulta pública) que, excecionalmente, não terão de cumprir os critérios gerais para a reclassificação do solo como urbano nos casos em que a finalidade seja habitacional ou conexa à finalidade habitacional e usos complementares; se assegure a consolidação e a coerência com a área urbana existente; pelo menos 700/1000 da área total de construção acima do solo se destine a habitação pública, ou a habitação de valor moderado; seja delimitada uma unidade de execução; sejam garantidas as infraestruturas gerais e locais, assim como os equipamentos de utilização coletiva necessários e os espaços verdes adequados e seja compatível com os instrumentos de política de habitação municipais. Do processo de apreciação parlamentar já se sabe que o Governo vai deixar cair o conceito de habitação de valor moderado e reintroduzir o de habitação a custos controlados e vai passar a ser exigida a contiguidade com o solo urbano. A grande celeuma que o diploma coloca revela-se não só na sua não aptidão para assegurar os desideratos em matéria de habitação, mas também, na possibilidade de nesta reclassificação se abrangerem solos afetos a alguns sistemas da REN e solos com menor capacidade de produção agrícola inseridos na RAN, sem que os respetivos regimes jurídicos tenham sido alterados ou se preveja a intervenção das entidades que tutelam estes interesses. A esta possibilidade não é alheia a introdução pelo Simplex Urbanístico na Lei de Bases (artigo 10.º, n.º 5, alínea b)) da possibilidade de serem propostas desafetações ou alterações destas restrições de utilidade pública no âmbito de procedimentos fora do sistema de planeamento, que é o que resulta na prática da alteração ora introduzida que pressupõe uma compatibilidade do uso habitacional e usos complementares com estas condicionantes.
A maior perplexidade resulta, porém, da polémica gerada não ter em conta que é este diploma que vem pôr fim às prorrogações para os municípios adequarem os seus planos aos novos critérios de classificação do solo como urbano que resultaram da Lei de bases de 2015 e do RJIGT de 2015, e que pressupõem que o solo já se encontre parcialmente urbanizado e/ou edificado. 10 anos volvidos não foi possível cumprir este desiderato, o que justifica a necessidade de perceber o que é que afinal correu mal neste processo, mas também com o caderno de encargos que da Administração central no que concerne à recondução dos seus planos a programas. Com esta alteração legislativa, considerando as hipóteses de reclassificação do solo sem ser por via de planos que foram introduzidas no início de 2024 e agora reforçadas, bem como com as situações de reclassificação por mera alteração de plano para atividades económicas, pergunta-se que interesse têm os municípios em rever os seus planos diretores municipais. Note-se que estando agora os municípios que ainda não fizeram a referida adequação, habilitados a recorrer ao regime especial de reclassificação para solo urbano com finalidade habitacional e usos complementares e a continuar a efetuar gestão urbanística nas áreas urbanizáveis e de urbanização programada que tenham adquirido, entretanto as características de solo urbano, não vemos que os objetivos de contenção da expansão urbana fragmentada e dispersa que justificaram a eliminação das designadas áreas urbanizáveis se venham a cumprir. Por outro lado, o argumento de que foi a eliminação das áreas urbanizáveis que levou à pressão nos valores dos solos nas áreas urbanas, tem pouco sentido se atentarmos a que no final de 2024, 152 municípios não efetuaram a adequação dos seus planos. Nesta situação e com a multiplicidade de procedimentos especiais de reclassificação previstos no RJIGT, leva-nos a perguntar se não é o sistema de planeamento como um todo que deve ser repensado.