Opinião: Ajustar os poderes da regulação
Entre as muitas alterações legislativas recentes, no setor dos resíduos, existe uma efetuada no Orçamento de Estado para 2021, nos seus artigos 428.º e 429.º, relativas aos poderes e competências do Regulador do setor (ERSAR).
Estas alterações resumem-se essencialmente em (i) devolver ao concedente (Estado), nos casos de sistemas de águas e resíduos da sua titularidade e com capitais maioritariamente ou exclusivamente públicos, os poderes, que até aqui se encontravam na esfera da entidade reguladora, de aprovação e fixação das tarifas aplicadas e (ii) devolver ao concedente a competência de aprovação dos planos de investimentos das concessionárias de capitais exclusivamente ou maioritariamente privados. As alterações implicam, ainda, a existência de recomendação e parecer da entidade reguladora, nessa matéria.
Cinco anos após a criação da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos, chega-nos agora a primeira alteração aos Estatutos da ERSAR, naquilo que considero ser uma evolução de conformação da atividade regulatória com a realidade existente.
Para melhor se compreender as eventuais motivações do legislador para tal, importará referir que a criação da Entidade Reguladora do setor, assentou originariamente numa estratégia política do Governo de então (Governo de Passos Coelho) de abrir caminho à total privatização destes serviços públicos essenciais. Recorda-se que na altura abria-se a possibilidade de, no setor dos resíduos, passar a permitir a existência de empresas constituídas por capitais exclusiva ou maioritariamente privados como concessionários de sistemas de titularidade estatal, se privatizou a, antes 100% pública, EGF (acionista maioritária dos sistemas multimunicipais no país) e se encetou um movimento de concentração empresarial em especial no setor do abastecimento de água (entretanto revertido). Na discussão pública existente à época, ficou sempre a ideia que esse Governo pretenderia fazer o caminho no setor do abastecimento de água, igual ao do setor de resíduos, levando, em última análise, à total privatização de ambos os setores. Como se sabe, tal não se concretizou.
Se tivesse ocorrido, obviamente, uma entidade reguladora faria todo o sentido, à semelhança do que já se verifica nos setores das comunicações e energético e onde o papel do Estado se resume, essencialmente, a regular os operadores privados que providenciam esses serviços próprios ou concessionados. Isto não acontece, de todo, no setor das águas e resíduos.
Sucede que no nosso país, ao contrário de outros, os serviços de abastecimento de água, águas residuais e gestão de resíduos sólidos urbanas em alta ou baixa em são todos de titularidade pública e não podem ter outra titularidade que não pública, sendo geridos apenas de 3 formas: a) gestão direta pela entidade titular do serviço; b) gestão delegada e c) gestão concessionada.
Isto significa que, apesar desta titularidade exclusivamente pública, em Portugal, temos um modelo de gestão e regulatório completamente original em relação ao resto dos outros países, nomeadamente na Europa, havendo uma entidade reguladora (independente) para regular a atividade de serviços do próprio Estado e, que até esta última alteração legislativa em sede do OE, tinha o poder de regular o serviço, o comportamento, a relação com os “utilizadores” (usa-se propositadamente utilizadores ou utentes e não a palavra clientes), fixar tarifas, definir os investimentos de entidades todas elas públicas, no caso das águas, e públicas e privadas (não existe nenhum sistema de gestão de resíduos sólidos urbanos totalmente privatizado) no setor dos resíduos.
Os sistemas, apesar de serem públicos, tinham uma Entidade Administrativa Independente que assumia o papel que é por norma do “dono da casa” (neste particular o dono é mesmo o Estado através dos seus representantes legitimamente eleitos pelos cidadãos para gerirem a causa pública), manietando o poder legítimo de definição da gestão destes sistemas, pois todos os poderes estavam acometidos ao Regulador, no âmbito de regulamentação elaborada pelo próprio regulador, sem possibilidade de intervenção dos donos dos sistemas de gestão.
Não irei ao ponto de defender a extinção da ERSAR e a sua substituição pela Autoridade Nacional de Resíduos, papel atribuído à APA, em Portugal, mas considero que andou bem o legislador nesta alteração efetuada.
O papel regulador da ERSAR deverá, antes, ser direcionado para os casos onde existe atividade exclusivamente privada e para matérias de regulação comportamental e de qualidade de serviço para todos os entes que atuem nestes setores, uniformizando comportamentos e o relacionamento com os cidadãos.
Deverá o Regulador agir no sentido do cumprimento, por parte de todos os Operadores de Gestão de Resíduos, das regras existentes? Sem dúvida.
Deverá a Entidade Reguladora fixar e definir tarifas de um serviço público efetuado por entes públicos? Ou decidir se podem comprar esta ou aquela máquina para cumprir o serviço público que estão mandatados os sistemas? Em meu entender claramente que não. Se a entidade reguladora tiver como competência isto, mais vale assumir entregarlhe a gestão dos sistemas e ser a ERSAR a assumir a total responsabilidade pela sustentabilidade do setor, dos seus custos e da sua imputação aos cidadãos, em vez, de serem os responsáveis políticos (Governo e Autarcas) que tinham até agora a única tarefa de assumir a responsabilidade das decisões da ERSAR.
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