Por, Feliz Mil-Homens, professor do ISEL e assessor Técnico e Científico da Direção da AVALER
Resíduos urbanos em Portugal
A gestão de resíduos urbanos teve nas últimas duas décadas uma evolução notável em Portugal. O primeiro estudo sobre a gestão de resíduos urbanos em Portugal (Quercus, 1995), identificou 341 lixeiras sem de condições de tratamento adequado de resíduos, para onde era enviada a quase totalidade dos resíduos, urbanos e outros, produzidos no país. Alguns lembrar-se-ão, certamente, que era com frequência que se encontravam resíduos abandonados nos campos, florestas e rios. O setor estava fragmentado em múltiplos operadores municipais que se limitavam a recolher os resíduos e a remetê-los para lixeiras. Era um setor informal, sem enquadramento legal e regulamentar, utilizando apenas as tecnologias mais básicas.
Em 20 anos construiu-se um setor com instituições públicas atuantes, um quadro regulamentar completo, empresas dotadas de capacidade tecnológica e de gestão e há hoje no país as mais modernas tecnologias de gestão de resíduos, seja na recolha, seja no tratamento (reciclagem, compostagem, digestão anaeróbia, valorização energética, aterros modernos e bem geridos, etc). O país trata a totalidade dos resíduos produzidos, de acordo com as mais exigentes regras europeias de salubridade, higiene e defesa do ambiente.
Porém, subsistem estrangulamentos que, há muito, impedem o setor de se projetar para um novo patamar de qualidade e exigência, na prossecução dos objetivos da Economia Circular. O destino final dos resíduos urbanos em Portugal (figura 1) é elucidativo: o país recicla pouco e por vezes deficientemente, não cumprirá os objetivos de reciclagem da EU (50% em 2020) e utiliza o aterro sanitário como o principal destino final dos resíduos: em 2019, como nos anos anteriores, 57,8% dos resíduos acabam em aterro, ou seja cerca de 3 milhões de toneladas por ano, dos 5 milhões produzidos.
A distância da situação atual relativamente às metas da Economia Circular, com que o país se comprometeu (reciclagem de 55% da totalidade dos resíduos urbanos em 2025, 60% em 2030 e 65% em 2035 e um máximo de 10% de envio para aterro em 2035, entre outras) é enorme e muito preocupante.
[blockquote style=”2″]Subsistem estrangulamentos que impedem o setor de se projetar na prossecução dos objetivos da Economia Circular.[/blockquote]
O contexto europeu
A União Europeia é líder global nas preocupações ambientais na gestão de resíduos. No entanto, os países da União Europeia evidenciam grandes diferenças no tratamento de resíduos.
A figura 2 mostra o perfil de tratamento de resíduos urbanos e similares na Europa. Verifica-se com clareza que há um conjunto de países (Suíça, Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Bélgica Áustria e Luxemburgo) que reduziram o envio de resíduos para aterro ao seu mínimo técnico (<5%) e valorizam a totalidades dos resíduos: 40 a 55% são valorizados por reciclagem (multimaterial e compostagem) e o restante por valorização energética. Estes são também os países e onde as exigências ambientais são mais fortes e que cumprem as metas de reciclagem determinadas pelas Diretivas da EU. Os outros países, onde Portugal se inclui, continua a enviar para aterro metade ou mais dos resíduos produzidos. Nestes, não só a valorização energética é menor, mas também a valorização material. Portugal tem desperdiçado dessa maneira os recursos de 3 milhões de toneladas de resíduos por ano.
Resulta claro que a valorização energética e valorização material são complementares e não concorrentes. Ambas são essenciais a uma valorização tendencialmente integral dos resíduos, em linha com os objetivos da Economia Circular.
A Valorização energética de resíduos em Portugal
A Valorização Energética de Resíduos começou em 2000 no Continente, com o iniciou de operação da unidade da Valorsul, no Concelho de Loures, e da unidade da Lipor no Conselho da Maia. Em 2003 juntou-se a unidade da Região Autónoma da Madeira e, em 2016, a da Ilha Terceira na Região Autónoma dos Açores. Em 20 anos de atividade estas unidades desviaram de aterro sanitário e valorizaram em energia mais de 23 milhões de toneladas de resíduos urbanos e similares, o que equivale a cerca de 4,5 anos da produção integral, atual, de resíduos urbanos. É, de longe, o maior contributo para o desvio de resíduos de aterro. Durante esse período, essa valorização de resíduos, deu origem à injeção na Rede Elétrica de Serviço Público (RESP) de cerca de 500 mil megawatt hora de eletricidade por ano, maioritariamente renovável, o que equivale ao consumo doméstico de eletricidade de cerca de 400 mil portugueses. Esta produção, sendo de base e estável, substitui maioritariamente produção de base, de origem fóssil, nomeadamente carvão.
A valorização energética de resíduos evita a emissão de gases com efeito de estufa por dois fatores que se adicionam: por um lado substitui combustíveis fósseis na produção de eletricidade e por outro desvia de aterro os resíduos urbanos biodegradáveis (55% em massa dos resíduos urbanos) que, em aterro, são a fonte principal da produção de metano, um poderoso gás com efeito de estufa.
A valorização energética de resíduos dá igualmente um contributo indelével para a reciclagem resíduos: as quatro unidades enviam para reciclagem, anualmente, cerca de 15 mil toneladas de sucatas metálicas recuperadas nas escórias, o que faz deste setor um dos grandes recicladores de metais do país. Adicionalmente, tem ainda sido possível recuperar inertes não metálicos a partir das escórias, que são utilizados em obras de construção civil, arruamentos, cobertura de células de aterro e outros, evitando a exploração e utilização de inertes virgens.
Uma estratégia de gestão integrada de resíduos exige que sejam reciclados todos os resíduos que tenham possibilidade de serem valorizados com a qualidade que a Economia Circular exige, mas não pode prescindir da valorização energética para os que não tenham possibilidade de valorização material, nomeadamente os próprios resíduos produzidos na cadeia de valor da reciclagem.
No entanto, apesar da necessidade de capacidade adicional de valorização energética de resíduos no país, unanimemente reconhecida pela generalidade dos operadores de gestão de resíduos urbanos no terreno, não tem sido possível desenvolver os projetos necessários ao aumento dessa capacidade por razões conjunturais, de preconceito ideológico ou de mera desinformação.
[blockquote style=”2″]É essencial que se pensem os processos de gestão de resíduos sem preconceitos.[/blockquote]
Subscrevemos na íntegra a aposta futura no aumento das recolhas seletivas e na reciclagem de qualidade, incluindo a recolha seletiva e valorização de bioresíduos, essencial não só para a política de resíduos, mas também para uma política de proteção aos solos. Mas seria um erro acreditar que dessa forma se pode dispensar a valorização energética de resíduos. Pelo contrário, a valorização energética de resíduos mantêm-se um pilar essencial da gestão de resíduos, mesmo num contexto de políticas ambiciosas e eficazes de reciclagem, como o demonstram as melhores práticas europeias, devidamente comprovadas.
É por isso essencial que se pensem os processos de gestão de resíduos sem preconceitos, de modo integrado, incluindo o destino final dos resíduos excessivamente contaminados ou com qualidade insuficiente para a reciclagem de elevada qualidade, e que se criem condições para eliminar a perigosa dependência do país dos aterros sanitários, ambiental, económica e socialmente insuportável.