Por Dr.ª Filipa Esperança, Sócia da AMMC Legal
Na mesma lógica de pensamento que nos tem levado aconcluir pela urgente necessidade de repensar o sistema de gestão territorial, a multiplicidade de regimes que tutelam interesses comuns no âmbito do domínio hídrico, cumulando níveis de complexidade, quer na conjugação de normas, quer na interpretação das plantas nas quais se espacializam as diferentes restrições, arrisca-se a ser um passo em frente no abismo em que nos encontramos nesta matéria.
A sobreposição de tramas nas plantas de condicionantes e até em desdobramentos das plantas de ordenamento dos planos territoriais, a que correspondem diferentes regras – umas condicionantes ao uso do solo, outras limites decorrentes de planos de hierarquia superior – que visam igualmente a salvaguarda dos recursos hídricos, vem dificultando, quase impossibilitando, a gestão urbanística.
O tema coloca-se, mais do que nunca, na sequência da publicação da Resolução de Conselho de Ministros n.º 63/2024, de 22 de abril, que aprova os Planos de Gestão dos Riscos de Inundações (PGRI) do 2.º ciclo, determinando que os planos territoriais (onde se incluem os PDM) sejam atualizados através de alteração por adaptação, tendo por base a delimitação de Áreas de Risco Potencial Significativo de Inundações (ARPSI).
Qual o objetivo específico tutelado pelas ARPSI que não esteja a ser tutelado pelas ZAC e pela REN? Fará sentido aditar mais restrições ao regime de uso do solo, quando os PDMs já contemplam zonas adjacentes, delimitadas ao abrigo da Lei da Água e/ou zonas ameaçadas por cheias (ZAC), além dos cursos de água e respetivos leitos e margens (CALM), por aplicação das Orientações Estratégicas Nacionais e Regionais previstas no Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional (RJREN)? Não consomem as ARPSI a tutela dos mesmos interesses públicos?
As próprias Orientações Estratégicas Nacionais e Regionais previstas no Regime Jurídico da REN já previam que as zonas adjacentes, enquanto zonascontíguas à margem classificadas por ato regulamentar por se encontrarem ameaçadas pelo mar ou pelas cheias, ao abrigo da Lei da Água, fossem consideradas para efeito de delimitação da REN até serem atualizadas por zonas ameaçadas pelas cheias (ZAC) a validar pela entidade competente, passando então a ser esta a única servidão administrativa aplicável, no âmbito do RJREN.
Na era do Simplex deve caminhar-se no sentido da simplificação, permitindo que eventuais novos interesses a salvaguardar no âmbito do domínio hídrico venham a ser protegidos por meio de uma só restrição que consuma as anteriores, numa lógica de síntese.
Ao invés, a opção parece ser continuar a ampliar a manta de retalhos, cumulando e complicando o que devia ser simples, por referência aos mesmos interesses de base do domínio hídrico a salvaguardar, tornando muitas vezes insustentável a conciliação de normas e regimes.
Uma vez que as Orientações Estratégicas Nacionais e Regionais previstas no RJREN foram elaboradas em coerência com os instrumentos de política e estratégias nacionais e comunitárias, sendo de realçar como especialmente relevantes, designadamente, a Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos, a Lei da Água, e os diplomas complementares, em concretização da Diretiva Quadro da Água e a Diretiva de Gestão dos Riscos de Inundações, bem como os instrumentos de gestão de recursos hídricos, com particular destaque para os Planos de Gestão de Riscos de Inundação (PGRI), refere este diploma que se procurou reforçar a coerência e fortes complementaridades entre as soluções constantes destes instrumentos e a contribuição da REN para a utilização sustentável dos recursos hídricos, bem como a importância do aproveitamento mútuo dos trabalhos e da sintonia de conceitos e metodologias.
Se as Orientações Estratégicas Nacionais e Regionais previstas no RJREN já tiveram por base a ponderação dos PGRI para efeitos de delimitação da REN, por que razão surgem agora as ARPSI?
Bastaria então que fosse identificada uma única condicionante neste âmbito que resultasse de uma síntese de todos os interesses públicos a salvaguardar em matéria de domínio hídrico.
Esta necessária articulação de regimes e triagem de situações a acautelar face a interesses públicos em presença deve ser feita previamente pelas entidades públicas competentes antes da tentação, um quanto irresponsável, de lançar novas regulamentações e restrições a cumprir, que se sobrepõem e vão esgotando o planeamento.
O apregoado Simplex só será efetivo quando os decisores políticos, primeiramente e respeitando alguns dos princípios básicos da atividade administrativa, privilegiarem na sua atuação, como principal objetivo a boa administração.