#Opinião: A digitalização é uma faca de dois gumes
No passado dia 21 de novembro, na entrevista em jeito de debate pacifico entre os então principais concorrentes à liderança do Partido Social Democrata transmitida pela RTP, quando questionado por Vítor Goncalves sobre qual seria a sua estratégia para combater a assombração da corrupção em Portugal, Paulo Rangel anunciou que a digitalização servirá que nem um verdadeiro exorcismo para livrar o país desse demónio e assim acelerar o sistema jurídico. O deputado do Parlamento Europeu ecoava claro, as políticas comunitárias.
A digitalização, a transição digital ou a década digital, têm sido o estandarte da Comissão Europeia desde que Ursula von der Leyen tomou as rédeas da instituição. Desde então tornou-se impossível escapar ao termo espalhado por tudo o que concerne a assuntos públicos, vindo de mãos dadas com uma expectável transição verde e com mais um outro chavão: resiliência.
Mas para além de espantar os espetros da corrupção, a digitalização é tida como uma bala de prata, com um vasto potencial económico e benefícios sociais, abrangendo ínfimos setores e capaz de fazer face a outras instâncias sinistras como a necessidade de alcançar um melhor acesso ao conhecimento e a sua partilha, suportar a tomada de decisões políticas baseadas em evidências, auxiliar consumidores a tomarem decisões mais sustentáveis, mobilizar a indústria para uma economia circular e até alcançar um ambiente livre de substâncias nocivas e proteger ecossistemas. As oportunidades que a digitalização potencia são tão amplas e expressivas como o tom de Rui Rio, mas as listadas aqui são objetivos assumidos pela União Europeia, gravados em documentos políticos como o Plano de Ação para a Democracia Europeia, a Estratégia do Prado ao Prato ou o abrangente Pacto Ecológico Europeu.
A digitalização é de facto uma maravilha contemporânea que nos veio facilitar vários aspetos do quotidiano. Quem hoje quer ir à mercearia da esquina quando podemos ir às compras a partir do sofá e assim evitar ouvir o Sr. Manel falar dos seus filhos no estrangeiro? Ou mesmo conduzir até ao Santa Maria, esperar horas intermináveis na sala de espera, arriscando-se a ser espirrado em cima, enquanto podemos ter uma consulta nos confins da ilha do Corvo através dos mil e um aparelhos que temos em casa com acesso ao WIFI? A pandemia com tudo o que trouxe, veio exponenciar essa maravilha. É abismal imaginar o que seria de nós durante este período sem a possibilidade de exercermos as nossas profissões à distância, sem acesso a informação em tempo real ou mesmo sem acesso a cuidados e serviços básicos suportados por esses mecanismos digitais.
Temos que, portanto, admitir que a promessa de tecnologias avançadas é sedutora e soa bem. Necessitamos de soluções e, na condição de Homo Impacientus como somos, perder tempo não é connosco, ao que a digitalização oferece de facto agilidade e rapidez. Mas será realmente a panaceia para todos os males hodiernos? Sim, é certo que alivia empreitadas mundanas e poderá flexibilizar outras de intricado carácter como o sistema judicial ou o sistema de saúde, mas o que acontecerá quando esta rápida transição digital e tecnológica continuar a absorver sociedades e economias? Será que já não vimos isto antes? Não estaremos afinal atualmente a presenciar os impactos de avanços tecnológicos passados?
Uma das principais prerrogativas que a transição digital intui, de acordo com as ambições e estratégias dos líderes europeus, é que permitirá mitigar eficazmente alguns dos problemas ecológicos mais urgentes, desbravando caminho para um “futuro verde”. Mais especificamente, a digitalização é vista como chave promissora para reduzir as emissões de carbono e mitigar o consumo de recursos. Tais pressupostos baseiam-se na capacidade dos sistemas digitais em otimizar o desempenho de processos industriais intensivos em energia e recursos. O que se esquece ou ignora-se, é que o aumento da eficiência ou o desenvolvimento de mecanismos aprimorados e mais rápidos poderá induzir efeitos de ricochete, no sentido de quanto maior for a eficiência, com mais facilidade se produz e mais atraentes serão os bens e serviços. E o que acontece a serviços atraentes de fácil conceção? A demanda explode! O que por sua vez vem estimular um maior consumo de energia e de recursos.
Alguém mais economicamente literato do que eu poderá certamente argumentar que efeitos de ricochete dependem amplamente de outras numerosas variantes desconsideradas pela minha pessoa, ou que ainda o atual Plano de Ação para a Economia Circular europeu introduz medidas para-choque com potencial para evitar o cenário de colisão descrito. No entanto, ao analisarmos os pilares da retórica da digitalização, percebemos que em vez de de prata, a bala é de níquel, desconsiderado o emaranhamento ecológico.
Os arquitetos da digitalização estão convencidos de que o conhecimento e a tecnologia, aplicados com sabedoria, resolverão as atuais ameaças ambientais. É o chamado discurso do eco-modernismo. Os eco-modernistas ou otimistas, olham para o débil estado do planeta e encaram-no como um desafio tecnológico e se atualmente nos encontramos nesta encruzilhada é porque a tecnologia não evoluiu o suficientemente rápido para a reverter.
Bem, não precisamos de mergulhar assim tanto na história da humanidade para traçar uma linha direta com o presente e encontrar as imensas falácias desse raciocínio. Afinal, a Revolução Industrial com também todas as maravilhas que trouxe, veio amplificar a eficiência da empresa humana e é de conhecimento geral, onde essa nos conduziu: um planeta progressivamente mais calvo do que ambos Rio e Rangel.
Os ganhos em eficiência não significam necessariamente ganhos em sustentabilidade, muito menos em resiliência, podendo pelo contrário significar precisamente o oposto. A forma como a digitalização transforma a sociedade, tornando-a cada vez mais rápida, mais conectada e permitindo níveis de eficiência sem precedentes, é suscetível de trazer alguns benefícios, ao mesmo tempo que pode deixar incontestada a continua depleção dos ecossistemas planetários, fomentando o nosso declínio. É uma faca de dois gumes (feita de níquel).