#Opinião: A AIA em tempo de guerra
Por: Nuno Ferreira Matos, Partner do Grupo Matos, Fonseca & Associados
Sabemos que se vivem tempos de mudança, que é imperativo agilizar os processos para lançar novos projetos que acelerem a transição energética e assistimos a esforços governativos para ultrapassar limitações. Constatamos, todavia, que muitos destes esforços se vão focado na simplificação de procedimentos e processos. E se a simplificação é algo positivo, a mesma não poderá, nunca, confundir-se com uma facilitação, no pior dos seus sentidos. Facilitar não resolve problemas, adia-os e provavelmente, complexifica-os.
Quero iniciar esta reflexão com uma declaração de interesses: trabalho em Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) desde o longínquo ano de 1992, altura em que essa ferramenta dava os seus primeiros passos em Portugal. Mesmo a nível global, a avaliação ambiental tinha deixado há pouco a adolescência. Desde os princípios da década de 70 que a avaliação dos impactes ambientais tentava afirmar-se como uma ferramenta para o equilíbrio entre o desenvolvimento económico, social e a conservação do ambiente. Importa entender que estes termos – e o próprio conceito de equilíbrio entre eles – não têm sido pacificamente definidos. E ainda não o são. Ainda hoje encontramos correntes de pensamento bastante díspares quando nos referimos a “desenvolvimento”.
Desde o momento em que a AIA ganhou expressão enquanto ferramenta com importância ambiental – hoje dir-se-á, com importância para a sustentabilidade, conceito que alia o desenvolvimento económico e social à conservação do ambiente – que a mesma tem tido obstáculos a ultrapassar e tem, ela também, sido um obstáculo, em vários momentos e a vários níveis.
Regressando ao conceito de “desenvolvimento”, desenvolver implica “crescer”. Mesmo procurando o significado no dicionário, os seus sinónimos incluem termos como “aumento, progresso, ampliação ou incremento”. E como resulta claro, todo o “crescimento” tem custos.
Desde a sua génese, a AIA tenta que estes custos sejam aceitáveis para a sustentabilidade (a tal que procura o equilíbrio entre economia, ambiente e sociedade) e que o balanço entre o que se pretende lucrar com o crescer e o que, certamente, se perderá com o mesmo crescimento, resulte positiva, ou seja, que os ganhos se sobreponham às perdas. É esse o maior desígnio da AIA: permitir tomar decisões suportadas sobre projetos de desenvolvimento.
A AIA nasce, cresce e envelhece numa postura de árbitro em defesa da sustentabilidade. Tendo a usar e, provavelmente a abusar, do termo “sustentabilidade” em detrimento do termo “ambiente”. É propositado. Hoje temos de aspirar a algo maior. Temos de querer algo equilibrado, algo em que o termo “ambiente”, lato sensu, tem de incluir, indubitavelmente, as pessoas e o seu desenvolvimento económico e social.
Acontece que, por assumir esse papel tentativo de árbitro, a AIA sofre como quase sempre os árbitros sofrem em tantos enquadramentos diferentes: é a culpada mais simples de apontar para tudo o que corre menos bem. Temos assistido a isso, praticamente, desde sempre.
Se um projeto é recusado por indicação de uma AIA negativa, a ferramenta recebe o ónus de reprovar e impedir o desenvolvimento e o progresso. É apelidada de extremista e de fator de atraso. Se um projeto avança, objeto de uma análise que o considera viável, acusa-se a mesma ferramenta de ser demasiado alinhada com interesses económicos e valores, quase sempre, duvidosos.
Mas olhando para o papel que a AIA tem assumido, conclui-se que é, sem dúvida, uma ferramenta aplicada por pessoas. É, deste modo, sensível às suas opiniões e às suas subjetividades.
A ferramenta tenta reduzir esta capacidade, que pode tender a ser discricionária. Tenta moldar avaliações e pressupostos de acordo com princípios e normas. Regras. Mas a verdade é que a AIA se aplica a projetos de investimento propostos por pessoas, suporta-se em análises concretizadas por pessoas, resulta em avaliações feitas por pessoas e determina decisões tomadas por pessoas. E que se destinam a pessoas. Todo este processo “humano” resulta num elevado potencial para que a mesma reflita, mais ou menos diretamente, as opiniões, os posicionamentos e os valores de todos os seus intervenientes, nos resultados.
E se é verdade que há processos menos conseguidos – e decisões menos pacificamente recebidas – também penso que será consensual que a AIA tem tido um papel fulcral no desenvolvimento dito sustentável. O sucesso da ferramenta só pode ser negado por desatentos ou menos bem-intencionados.
No entanto, considero a AIA como a melhor das ferramentas para os objetivos a que se propõe. Recordo, sempre, nestes momentos uma frase de Winston Churchill que ficou célebre: “a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros”. Acredito que a AIA é, também ela, o pior dos sistemas, à exceção de todas as alternativas possíveis.
Até há pouco tempo esteve em consulta pública mais um diploma que prevê a simplificação de licenças e procedimentos para empresas na área ambiental. Nesse diploma, às boas propostas que visam, efetivamente, expurgar o processo de inconsistências e aspetos burocráticos menos pertinentes, somam-se outras que tentam, apenas e só, retirar importância e capacidade de decisão à ferramenta de Avaliação de Impacte Ambiental.
Em vários fóruns de discussão, esta facilitação encontrou – ao invés do que provavelmente seria esperado – contestação. De ONG, a promotores, de consultores a avaliadores, conclui-se que simplificar não pode passar por retirar valor à AIA. Simplificar tem de passar por reforçar a mesma, aumentando a capacidade de resposta de todos os seus atores. Simplificar também passa por reforçar os quadros técnicos de avaliadores e licenciadores, por clarificar procedimentos e metodologias, por criar linhas de diálogo entre entidades públicas e promotores, por incentivar fóruns de discussão para a melhoria da ferramenta e, não menos importante, por permitir aos decisores o conforto de não terem receio de tomar decisões.
O caminho para a simplificação só pode ser através de um robustecimento do processo. É aí que se ganham as batalhas que permitem vencer as guerras: fornecendo recursos, estabelecendo linhas de abastecimento e, acima de tudo, acreditando na bondade dos argumentos. E, em minha opinião, a AIA já demonstrou que é o veículo certo para tudo isto.