“O mar é porventura o maior fator de coesão dos portugueses” (Parte I)

O mar faz parte da sua vida. Por isso, assegurar um oceano sustentável para as gerações vindouras foi sempre uma das suas missões nos cargos que desempenhou. Nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo), Moçambique, em 1961. Formado em Engenharia Química pelo Instituto Superior de Engenharia do Porto em 1985, José Maria Costa foi presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo entre 2009 e 2021. Hoje, abraça a pasta do Mar, com funções de secretário de Estado e tem o objetivo de tornar a Economia do Mar uma realidade verdadeiramente concretizada. Nesta Grande Entrevista, procuramos saber quais as ambições do atual Governo para o Mar e que metas vão ser atribuídas ao Oceano no próximo quadro legislativo.

[blockquote style=”1″]Qual a ligação que tem ao Mar?[/blockquote]

“Tendo vivido grande parte da minha vida numa cidade marítima como é Viana do Castelo e porque a minha família também está muito ligada ao mar, principalmente da parte do meu pai, as relações com o mar sempre foram muito intensas. Trabalhei na construção naval: o meu primeiro trabalho foi precisamente engenheiro nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Também tive contactos na área das energias renováveis oceânicas, em que tive oportunidade de participar na identificação dos projetos, na avaliação de impacto ambiental e na organização e facilitação para que o projeto Windfloat se pudesse instalar em Viana do Castelo, tendo também, enquanto autarca, protagonizado diversos eventos relacionados com as energias renováveis oceânicas e com a economia do mar. Também no âmbito das minhas funções enquanto Presidente de Câmara, a relação com o mar, atividade piscatória e atividades da economia do mar foram importantes, tendo apresentado um pouco antes de sair uma “Agenda para o Mar”, onde identificamos um conjunto de eixos de intervenção para a temática, nomeadamente o projeto que desenvolvemos, o “Centro do Mar”. No fundo, foi a constituição a partir de 2014, de quatro centros náuticos, permitindo a prática desportiva náutica aos jovens de Viana do Castelo”.

[blockquote style=”1″]O que esteve na origem de aceitar o desafio de ser Secretário de Estado do Mar? Enquanto assumir esta função, há alguma meta/objetivo que gostasse de ver cumprido? [/blockquote]

“Assumi esta função respondendo a um convite do Sr. Ministro da Economia e do Mar e aquilo que me foi proposto foi procurar fazer acontecer a Economia do Mar: fala-se muito em Portugal que o mar é o nosso desígnio coletivo. Diria mesmo que o mar é porventura o maior fator de coesão dos portugueses, a seguir à língua. Mas tínhamos muita dificuldade em poder concretizar [esse desígnio]. Daí que a atual orgânica do Governo também tenha esta perspetiva transversal: de certa forma, procuramos ser os facilitadores para que projetos, desde a ciência, inovação, bioeconomia, construção e reparação naval ou energias renováveis e oceânicas até à questão da alimentação, possam acontecer. Esse é objetivo que temos e o próprio programa do Governo assim o define. É, no fundo, tentarmos alavancar um conjunto de iniciativas e projetos para que a economia do mar possa ter maior peso, não só no PIB (Produto Interno Bruto) mas também no emprego e nas exportações. Hoje, em Portugal a economia do mar representa cerca de 5% do PIB, 4,9% do emprego e 5% das exportações. Pensamos que, até ao final desta legislatura, possamos dobrar estes objetivos.

Aquilo que está a acontecer no nosso país é de facto muito interessante: temos centro de investigação e de recursos que estão a ter grande desenvolvimento e uma agregação de fileiras já muito consolidada. Quero dar nota de algumas das instituições que têm feito um belíssimo trabalho como o Fórum Oceanos ou a Fundação Oceano Azul, Mas temos também uma outra área muito relevante do ponto de vista da  ciência e do conhecimento que se prende com as novas tecnologias, robóticas e satélites: temos grandes centros de investigação como o CEIIA, o INESC TEC ou Faculdade de Engenharia do Porto. 

Neste momento, Portugal detém um conhecimento muito relevante que nos permite olhar para o futuro com muita confiança e, acima de tudo, com uma vantagem competitiva face a outros países. Temos uma capacidade instalada e áreas de intervenção no domínio da economia do mar muito relevantes. É o caso dos estaleiros da West Sea e Viana do Castelo que, neste momento, estão já a fazer aquilo que se designa por green shipping, transformação de frotas, permitindo a redução das emissões.

Portugal está muito bem posicionado: tem atores importantes, boas redes e contactos internacionais e agora precisamos de trabalhar mais em equipa, de articular e aproveitar estes instrumentos de financiamento comunitário que vamos ter pela frente, nomeadamente o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), que tem uma verba de mais 200 milhões de euros para o setor do Mar, mas também aproveitando aquilo que são as estratégias de desenvolvimento regional, que todas as Comissões têm, para também identificarmos boas ideias e bons projetos para este setor se afirmar cada vez mais”. 

[blockquote style=”1″]Qual a abrangência da terminologia “Economia Azul” para si? Quais os pilares que a sustentam?[/blockquote]

“Segundo os estudos mais recentes, os setores que vão ter mais sucesso dentro da Economia do Mar são as energias renováveis oceânicas (em que energia eólica offshore e energia das ondas vão ter um potencial de crescimento) e o transporte marítimo (através da denominação do shipping) e tudo o que está associado [aos transportes] (otimização dos portos com grandes investimentos na sua descarbonização ou a geração de novos navios). Também a aquicultura sustentável será uma grande área que Portugal está a desenvolver através dos centros de investigação do Algarve, Lisboa, Açores e Aveiro e que passam por construir as novas abordagens ligadas ao setor do pescado ou das algas. Associado a isto, vamos ter também aquilo que se designa por novas áreas tecnológicas que darão origem a novos serviços e profissões. Os países assumiram compromissos muito importantes, como a classificação de 30% das suas áreas marinhas. É uma enorme extensão de mar: não há nenhum país no mundo que tenha capacidade e forças suficientes para fazer a sua monitorização e vigilância. Por isso, vamos precisar tirar partido daquilo que são as novas realidades de associar a instrumentação marinha com o espaço: esta será uma relação cada vez mais intensa. E são estas novas tecnologias que nos vão permitir fazer rastreio do fundo do mar para conhecermos melhor o que está nas áreas submersas e permitir fazer uma vigilância da segurança marítima. Há novas áreas e profissões que vão surgindo e vai haver uma adaptação dos serviços e das áreas, como da pesca tradicional para uma pesca mais inteligente, utilizando artes de pesca que não sejam nocivas para o ambiente, além embarcações tradicionais mais inovadoras e descarbonização. No fundo, vamos assistir nos próximos anos a uma verdadeira revolução do ponto de vista tecnológico, algo que a descarbonização e os compromissos internacionais vão fazer acontecer. 

A Economia do Mar é, essencialmente, uma área da economia do conhecimento, onde vai estar centrado o melhor do conhecimento e da transformação tecnológica a favor da sustentabilidade do nosso planeta. É o espaço onde se vai jogar a descarbonização e onde o oceano vai ter um papel importante com as novas realidades tecnológicas”.

[blockquote style=”1″]Para a sustentabilidade dos oceanos, há áreas de atividade económica que necessitam de uma mitigação dos seus efeitos, como é o caso do transporte marítimo. Como se conseguirá conciliar os interesses económicos com a proteção dos ecossistemas e dos oceanos? [/blockquote]

“Não há nenhuma atividade humana que não tenha riscos. Há cada vez mais esta perceção de que a economia azul e as questões da sustentabilidade são a face da mesma moeda. E, por isso, temos o melhor do nosso conhecimento, da investigação nos setores tecnológicos e nas áreas científicas ao serviço da economia azul. Esse é o desafio que temos pela frente: encontrar os melhores materiais biodegradáveis e que causem menos perturbação, procurando tirar partido desse conhecimento para o desenvolvimento. E há novas áreas económicas que vão surgir nos próximos anos.

As áreas marinhas prestam um serviço ambiental à Humanidade: fazem captação do carbono, mantêm biodiversidade e alguns santuários de espécies poderão ter aplicação no setor da medicina, por exemplo. Por isso, precisamos de ter os serviços ambientais a favor da própria qualidade. Esses serviços vão ter que ter um custo. Estamos a avançar com novas teorias, nomeadamente, o desenvolvimento do carbono azul, em que vamos utilizar o espaço oceano para a descarbonização e as novas áreas tecnológicas. Ainda estamos no início dessa nova transformação, mas cada vez mais os setores da inovação e da economia azul sustentável são cada vez mais compatíveis com a sustentabilidade e estão a conjugar-se para que, no futuro, possamos intervir no espaço oceânico sem criarmos grandes dificuldades às gerações futuras”. 

[blockquote style=”1″]Tendo em conta a ZEE marítima de Portugal e a pretensão do país para que seja aumentada, de que forma a sua exploração económica pode ser balizada sustentadamente? Como poderá o governo assegurar um cumprimento de metas sustentáveis e que esforço será necessário para a sua monitorização?[/blockquote]

“Portugal está em interação com as Nações Unidas para a extensão da plataforma continental oceânica. Aquilo que se pretende é classificar uma determinada área que não entendemos que faça parte da extensão natural do nosso Continente e Ilhas para garantir para as gerações futuras aquilo que é um espaço marítimo de biodiversidade, mas que também poderá ter no seu subsolo algumas riquezas que serão importantes do ponto de vista mineral. 

O objetivo do Governo Português é promover o conhecimento do espaço: só podemos conservar e valorizar os espaços, se os conhecermos efetivamente,  o que implica, e esse é um grande desafio, mobilizar o conhecimento que temos para esta nova estratégia de conhecimento e, depois procurar também, em conjunto, com Organismos Internacionais, como o ISWA – Associação Internacional de Resíduos Sólidos, para que se crie um regulamento das áreas do mar internacional (que já está na fase final, esperando-se que final do verão seja aprovado), para que todas as intervenções sejam feitas com os cuidados, avaliações, menor risco de ponto de vista da destruição dos ecossistemas e daquilo que é a sustentabilidade dos oceanos. 

É muito importante esta concertação institucional para garantirmos que, quer fora das áreas que são da jurisdição nacional quer nas áreas internacionais, os mesmo parâmetros de qualidade e segurança ambiental de exploração de recursos sejam garantidos. 

Este é um desafio que temos pela frente! Portugal está fortemente empenhado, através da nossa comunidade científica e da estrutura de missão para extensão da plataforma continental para garantir estas questões, mas, neste momento, o que nos preocupa é fazer o mapeamento, rastreamento e identificação não só do ponto de vista mineral, mas também dos ecossistemas existentes. É um período que vamos precisar de grande coordenação internacional, cooperação de centros de investigação e a nível de cruzeiros científicos para conhecermos melhor o oceano. Por isto tudo, é importante que Portugal esteja nas redes de conhecimento, que faça parte das redes internacionais com países que tenham esta ambição marítima e conhecimento (EUA, França, Irlanda, Noruega, etc.) e, em conjunto, possamos conhecer melhor o espaço oceânico, mas também todo o fundo marinho. 

Quanto à prioridade nos 5 a 10 anos, será promover o conhecimento para que, com dados objetivos, conhecimento e experiências, podermos decidir onde e quando, se é ou não possível promover algum tipo de exploração ou utilização de recursos que estejam nesses mesmos espaços marinhos”.

[blockquote style=”1″]Que meios financeiros poderão ser alavancados neste sentido, os Fundos Comunitários terão aqui um papel importante?  E de que forma o Plano de Recuperação e Resiliência (até 2026) contribuirá para os desígnios?[/blockquote]

“Quando temos bons projetos e boas ideias, os financiamentos aparecem. Neste momento, temos à nossa frente um instrumento  importante, o PRR com cerca de 200 milhões de euros para áreas importantes: Temos o Air Centre nos Açores , que congrega uma área de investigação e cooperação internacional no Espaço Atlântico, temos a construção de uma nova plataforma logística de um novo navio para a Marinha portuguesa com equipamentos que permitem apoiar áreas de exploração e conhecimento; e os nove hubs azuis que vão ser instalados no país, por forma a garantir que vamos ter espaços de concertação entre os centros de inovação, universidades, investidores e startups em diversos locais (Olhão, Lisboa, Oeiras, Peniche, Porto) e vai garantir que vamos ter polos  de desenvolvimento e de excelência ,do ponto de vista da inovação da economia azul ligadas às bioeconomias e às biotecnologias. Estou certo que depois vamos ter possibilidade de concorrer e apresentar projetos, quer ao programa de Portugal 2030, quer diretamente da União Europeia (Horizonte 2020). Não vão faltar instrumentos de financiamento: precisamos é de ter bons projetos, boas linhas de investigação que nos permitam garantir esses financiamentos através das redes internacionais e que são a única forma de garantirmos os equipamentos e as equipas capazes de fazer uma investigação com maior profundidade possível”. 

[blockquote style=”1″]O que se pretende do Plano de Ordenamento Marítimo? Haverá uma revisão do mesmo? Quais os objetivos que se pretende com esta iniciativa?[/blockquote]

“O Plano de Ordenamento Marítimo é muito importante: vai definir quais são as áreas que têm apetência para áreas marinhas protegidas, de pesca ou outro tipo de infraestruturas, como energias renováveis. Estamos neste momento a trabalhar na sua atualização: Portugal assumiu um compromisso de, até 2030, ter 10 GWh de energia renovável oceânica e, para isso, precisamos de ter mais áreas de afetação: precisamos de estudar com rigor, informação atualizada e científica onde é que essas áreas ficam e contabilizá-las e trabalhar muito bem esse ordenamento. Depois, vamos ter de fazer outro trabalho de articulação com o Ministério do Ambiente e da Ação Climática, que tutela as áreas da energia, e precisamos de contabilizar essas mesmas áreas com as infraestruturas das redes de transporte de energia e de subestações, um trabalho importante em que, não só é necessário olhar para o mar e definir, com muito rigor, quais são as zonas que podem ser utilizadas para fins de produção de energia, mas também como essa conectividade se faz e como e faz o transporte de energia. Será um trabalho muito intenso para que, no final do primeiro trimestre do próximo ano, se possam lançar os primeiros concursos para exploração das energias. Mas queremos que estes novos concursos possam introduzir uma novidade às chamadas “ilhas tecnológicas”. Isto significa utilizar as mesmas infraestruturas para a energia eólica e que possam também ter outras utilizações, como sistemas de sensores para observações, ter equipamentos e áreas para exploração de aquicultura em alto mar e ainda para produção de hidrogénio verde no próprio espaço marítimo. É um mundo novo e é pensar nas novas infraestruturas offshore, tirando partido para várias funções. Estou certo que, nestes concursos, vão ser privilegiados os melhores projetos e os que tiverem maior integração, maior produção de energias e articulação com centros de investigação e universidades”.

[blockquote style=”1″]Portugal entrou no Ocean Alliance Global que prevê em 2030 que 30% do espaço oceânico seja protegido. Que iniciativas irão ser desenvolvidas com este fim? [/blockquote]

“Já temos algum trabalho desenvolvido neste momento, mas vamos precisar de impulsionar a cooperação dos centros de investigação das nossas universidades e também das Organizações Não Governamentais que fazem um trabalho muito importante do ponto de vista científico. Este desafio da classificação destas áreas é um desafio que nos vai colocar à prova e só é possível através de uma grande cooperação interinstitucional entre os diversos centros de conhecimento, assim como com a administração, que também tem o seu conhecimento”.  

 

Esta é a primeira parte da Grande Entrevista incluída na edição 94  da Ambiente Magazine

 📸 Raque Wise