Mobilidade Elétrica: Os mitos e a importância de desmistificar conceitos
Apesar de já fazer parte do dia-a-dia de muitos portugueses, a mobilidade elétrica ainda enfrenta muitos entraves, a começar pelo desconhecimento, associado aos mitos que têm originado incertezas no momento da compra de um veículo elétrico. “Os veículos elétricos (VEs) são mais caros? A construção de um veículo elétrico é mais prejudicial para o ambiente? O processo de carregamento é muito demorado?”. Estas foram algumas das perguntas que lançamos a vários especialistas no sentido de desmistificar alguns conceitos associados à mobilidade elétrica.
As emissões dos transportes aumentaram 12% entre 2013 e 2019, e ainda não é possível “desligar totalmente” o crescimento económico do aumento de emissões provenientes dos transportes: “Para contrariar esta tendência, o Estado tem implementado um conjunto de medidas que aumentam a atratividade das formas de deslocação mais sustentáveis, quer melhorando o Transporte Público, a espinha dorsal de um sistema de mobilidade sustentável, quer incentivando a mobilidade elétrica ou a mobilidade ativa”, afirma a Secretaria de Estado para a Mobilidade Urbana numa resposta enviada à Ambiente Magazine. Desde 2017, são atribuídos incentivos à aquisição de veículos 100% elétricos: “Este ano, o montante do Fundo Ambiental para este incentivo foi reforçado, dispondo de 10 milhões de euros para apoiar a aquisição de veículos emissões zero, incluindo, pela primeira vez, o apoio à aquisição de postos de carregamento para particulares em condomínios. Para os veículos ligeiros de passageiros, definiu-se um apoio de 4 mil euros e para os ligeiros comerciais de 6 mil euros”. Além disso, foi estabelecido um “conjunto de benefícios fiscais de isenção de impostos para particulares e empresas”, acrescenta o Governo. Todas as medidas têm-se traduzido num aumento da frota de VEs em cerca de 60% por ano, algo que encoraja o Estado a manter os apoios: “A transformação da mobilidade está mesmo a acontecer”.
Mas o maior e o mais importante desafio é que, quando o cidadão tenha que se deslocar, a opção seja sempre o transporte público: “Terá sempre de ser a espinha dorsal de um sistema de mobilidade sustentável”. Contudo, quando a opção passar pelo transporte individual, importa que seja descarbonizado, recorrendo à “mobilidade ativa a pé ou de bicicleta”, ou ao “veículo individual elétrico”, defende o Governo. A contribuir para este objetivo, está a rede pública de carregamento que dá a “confiança de encontrarmos pontos de carregamento em todos os 308 municípios de Portugal”, com “informação disponível em várias plataformas dos operadores e na entidade pública gestora da rede pública de carregamento, a Mobi.E”, sustenta.
Existe infraestrutura necessária para dar resposta ao número crescente de carros elétricos?
É precisamente na infraestrutura que grande parte dos cidadãos têm grande desconfiança, tornando-se, muitas vezes, um obstáculo na compra de um veículo elétrico. O Governo assegura que o investimento contínuo que tem sido feito desde 2010 na rede pública permite, hoje, o acesso universal de todos os utilizadores a qualquer posto de carregamento num modo de funcionamento idêntico ao que existe nos sistemas ATM: “Ainda que muitas vezes não tenhamos consciência disso, esta universalidade de utilização foi reconhecida como o caminho a seguir pela União Europeia”.
Quem corrobora esta ideia é Luís Barroso, presidente da MOBI.E, que assegura que a rede tem crescido a um ritmo muito forte, ultrapassando mesmo o ritmo de crescimento das viaturas elétricas: “A rede Mobi.E disponibiliza mais de 2.750 postos de carregamento, o que corresponde a mais de 5.800 tomadas, com uma capilaridade única, uma vez que existe pelo menos um posto de carregamento disponível em cada um dos 308 municípios. Mais de 30% dos postos de carregamento disponibilizados pela rede são rápidos ou ultrarrápidos”. Mas é importante referir que a infraestrutura pública deverá ser sempre entendida como uma “complementaridade” à rede de acesso privado, atenta.
Recorrendo ao estudo de 2021 da Associação Europeia de Construtores Automóveis, a UVE – Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos lembra que Portugal é o 4.º país europeu com mais postos de carregamento por 100 km de estrada. Mesmo que a continuo crescimento da rede seja defendido pela Associação, é importante salientar que o “crescimento da rede pública mais que duplicou” entre 2020 e 2022. E, recorrendo ao portal MOBI.Data, a UVE dá nota que, “desde o início de 2022, foi instalada uma média de 19 postos de carregamento por semana”. Existem também várias redes privadas que disponibilizam centenas de postos: “A Rede de Carregamento em Portugal deixará rapidamente de ser um motivo de ansiedade para os utilizadores de VEs”.
Reconhecendo que o crescimento de carros elétricos leva a pressões no sistema energético, Teresa Leão, presidente da APVE – Associação Portuguesa do Veículo Elétrico, considera que tal evolução está a ser acompanhada pelos “reguladores e pelos operadores”, acreditando que a tendência seja a criação de “regras que irão garantir a perfeita operação do sistema”, associada à “penetração descentralizada de produção renovável” e à “digitalização”: “Ainda há muito a fazer quanto à infraestrutura, ao nível da capilaridade mas também ao nível de soluções e incentivos, para que os carregamentos tenham em conta o ecossistema dos veículos e estes sejam feitos de forma integrada com o perfil de produção do sistema elétrico”.
Na resposta às necessidades de uma eletrificação maciça dos transportes, ainda são poucos os países no mundo que estão preparados para dar resposta “a nível de postos de carregamento (públicos ou privados), mas também a nível da rede elétrica”, considera Jônatas Augusto Manzolli, investigador no INESC Coimbra. Apesar disso, o investigador considera que a tendência é que a lacuna diminua, acompanhando a grande penetração de VEs: “Somado a isso, técnicas de carregamento coordenado e inteligente são essenciais para uma melhor integração dos VEs com a rede elétrica”.
Os impactos da construção de um veículo elétrico no ambiente são maiores?
Luís Barroso considera que o percurso que a tecnologia tem feito permite que vários mitos sejam cientificamente ultrapassados, nomeadamente os processos de construção de um veículo elétrico, assim como os materiais utilizados para a produção de baterias, que têm evoluído muito nos últimos anos e são cada vez mais amigos do ambiente: “A International Council on Clean Transportation, que analisou o ciclo de vida útil (desde a fase de construção à da utilização) de todo o tipo de veículos concluiu que uma viatura elétrica é, em média, entre 66% a 69% menos poluente do que uma viatura a gasolina”, exemplifica.
A Associação UVE também recorre às conclusões dum relatório de 2020 da Federação Europeia de Transportes e Ambiente, acerca das emissões de dióxido de carbono entre um carro com motor elétrico e um carro com motor de combustão interna. “A conclusão é indesmentível: um carro elétrico é muito mais limpo que um carro a gasóleo ou gasolina”. Mesmo considerando o “pior cenário de utilização de um carro elétrico” na Europa, mais precisamente na Polónia, onde o “fabrico da eletricidade tem uma componente renovável ou de baixo carbono de apenas 15% a 20%”, as emissões de CO2 do carro elétrico são cerca de “30% menores” que as emissões de um carro a gasóleo ou gasolina, refere a UVE.
Apesar de vários estudos demonstrarem que a introdução de VE permite reduzir as emissões de CO2 do setor da mobilidade, há medidas de otimização dos processos de produção dos veículos que ainda são insuficientes e “consideravelmente poluentes”: “A produção das baterias implica o uso de matérias-primas críticas, isto é, materiais de elevada importância económica que se encontram em risco de fornecimento e utilizam grandes quantidades de energia para o processo da sua extração”, afirma Teresa Leão, dando nota de um outro fator que merece ser considerado: a reciclagem dos componentes do veículo pós-fim de vida que “ainda não se encontra autonomizada”.
Da mesma forma, Jônatas Augusto Manzolli refere que, se se tiver em consideração apenas o processo de fabricação, os veículos elétricos (VEs), regista-se uma “pegada de carbono maior” que a dos “veículos a combustão”, principalmente por conta da “extração de minérios para a manufatura das baterias”. Contudo, a resposta final não é tão simples: “Ao considerar todo o ciclo de vida dos veículos, a maior eficiência energética dos VEs normalmente compensa os impactos ambientais de sua fabricação”, sustenta.
Os veículos elétricos são mais caros?
A comparação de preços é outro obstáculo que tende a preocupar os consumidores no momento da compra: “Se tivermos em conta apenas o preço no momento da aquisição, podemos ser levados a ter essa conclusão”, diz Luís Barroso, lembrando, contudo, que “se associarmos os diversos subsídios que o Governo tem promovido com o objetivo de acelerar a transição energética e os custos associados à utilização, concluímos, para determinadas potências e perfis de utilização mais intensivos, que, afinal, o custo de uma viatura elétrica em todo o ciclo de vida de utilização sai mais barato do que um veículo a gasolina ou a diesel”. E se se introduzir a “variável do custo ambiental para a sociedade”, o presidente da MOBI.E é perentório: “Não há dúvida que os custos associados às viaturas elétricas são muito menores”.
Apesar da “discrepância” no valor inicial de aquisição, a Associação UVE considera que, rapidamente, é compensada nos primeiros anos de uso de um veículo 100% elétrico: “A poupança começa logo quando o veículo é registado, visto que beneficiam de isenção” de impostos, indica. Para além dos benefícios fiscais, os veículos 100% elétricos novos são “elegíveis para o Incentivo pela Introdução no Consumo de Veículos de Emissões Nulas no Ano de 2022do Fundo Ambiental”, acrescenta a UVE.
No entender da APVE, a diferença de preço resulta fundamentalmente dos “custos de produção das baterias” que implica “processos industriais intensivos”, que aumentam substancialmente as emissões e o preço do veículo: “Há margem para atuar no ciclo de vida de produção destes componentes e na melhoria de todo o processo associado”. Além disso, a “escala também contribuirá para a redução de custos”, afirma Teresa Leão.
Já Jônatas Augusto Manzolli constata que o preço é mais caro se “olharmos para o valor unitário dos veículos”, mas numa perspetiva de ciclo de vida, os VE tendem a ser mais vantajosos economicamente por conta do combustível mais barato (eletricidade x gasóleo) e menores custos de reparação: “É previsto também um custo associado às emissões de carbono, que elevarão os preços dos veículos a combustão”.
O carregamento é muito demorado?
Sobre o processo de carregamento dum VE, Luís Barros indica que tudo tem que ver com as “caraterísticas do conversor interno do veículo, da bateria e da potência do posto de carregamento que é utilizado”, pelo que o tempo de carregamento é variável: “Nos últimos anos, temos visto uma grande evolução tecnológica, que tem permitido aumentar a rapidez dos carregamentos e a autonomia dos veículos”. Nos próximos anos, a evolução será contínua: “Atualmente, já se conseguem fazer carregamentos de 100km em cerca de 5 minutos”. Mas “será que estamos sempre com pressa ou, na maioria das vezes, podemos aproveitar o tempo em que descansamos, trabalhamos, comemos ou fazemos compras para carregar tranquilamente o veículo?” O presidente da MOBI.E defende que o utilizador deve estar sempre informado relativamente às “características do seu veículo para ser o mais eficiente possível”.
Da mesma opinião, a Associação UVE considera que, os utilizadores para que possam tirar o melhor partido possível das características do veículo que têm e do posto que vão utilizar para efetuar o carregamento, é importante saber “qual a potência máxima de carregamento que o veículo permite em Corrente Alterna e Contínua e que tipo de posto vai ser usado para o carregamento”. Assim, antes de iniciar um carregamento, o utilizador pode “recorrer a uma de várias aplicações móveis que determinam, consoante o veículo e o posto, qual a duração total da sessão de carregamento”, refere a Associação.
Por que motivo devem os portugueses optar por um veículo elétrico?
Teresa Leão defende que os portugueses devem olhar para o “ciclo de vida e o veículo elétrico”, dependendo da gama, como sendo “quase sempre mais barato e contribui para a descarbonização”, onde já não restam dúvidas da sua obrigatoriedade, isto “se não queremos caminhar para o ´suicídio coletivo´”.
Já Jônatas Augusto Manzolli refere que, ao nível do usuário final, o VE é “mais estável, fácil de conduzir e compensa mais economicamente”, numa perspetiva a longo prazo., além de ser potencialmente “mais verde. O futuro da mobilidade será elétrico e os portugueses devem acompanhar essa tendência”, sustenta.
*Este artigo foi incluído na edição 95 da Ambiente Magazine