José Furtado: “Gostaria de ver um setor mais robusto e mais consistente para enfrentar o fenómeno das alterações climáticas” (II)
Há três décadas que é gestor tendo percorrido diferentes setores de atividade. Exerceu funções de administração de instituições públicas, financeiras, grupos empresariais e escolas de gestão. O seu percurso profissional levou a cruzar-se inicialmente com a Águas de Portugal há 20 anos, mas foi há três que recebeu o convite para liderar o Grupo que emprega 3.700 pessoas e conta com 17 empresas que atuam de norte a sul. Nesta Grande Entrevista à Ambiente Magazine, José Furtado falou da ambição do Grupo AdP – Águas de Portugal, desde a resiliência às alterações climáticas aos investimentos necessários noutros domínios da sustentabilidade no setor.
O setor da água tem sabido acompanhar os avanços que se registam na tecnologia e na digitalização? Como tem sido esta jornada?
A digitalização é um vetor muito importante em matéria de investimento na medida em que vai gerar um forte impacto na eficiência. Em primeiro lugar, temos um parque de infraestruturas muito vasto com cerca de 8 mil instalações e uma rede de transporte e distribuição que é comparável a 80% do perímetro da terra. Toda a sensorização associada para controlo de perdas é muito relevante na rede. Tudo o que tem que ver com a gestão à distância e à automação das instalações é muito relevante ao nível dos processos. Por isso, a transição digital está muito presente na nossa atividade.
Ao nível de investimento, tem sido bem canalizado/distribuído pelo setor? Como avalia este parâmetro?
Ao longos destas últimas três décadas, o setor beneficiou de avultadas verbas e, neste momento, estão em curso os desenvolvimentos do Portugal 2030. No âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o setor da água, em particular, tem um conjunto de projetos que estão a ser apoiados e que têm que ver com o Plano de Eficiência Hídrica no Algarve. Para além dessa fonte de financiamento, recorremos ao Banco Europeu de Investimento e mobilizamos fundos próprios. Entre os fundos estruturais, fundos do Banco Europeu de Investimento, e meios próprios, temos vindo a encontrar uma cobertura financeira dos últimos anos.
Onde vão incidir os 300 M€ do PRR previstos para a “Gestão Hídrica” do Algarve?
Na componente afeta ao Grupo Águas de Portugal, temos a interligação entre os dois subsistemas existentes no Algarve: o Barlavento e o Sotavento. Uma interligação entre os dois sistemas vem conferir uma maior flexibilidade na gestão por via da compensação. Depois, a ligação do Sotavento ao Guadiana permite reforçar as origens. Estamos a trabalhar numa dessalinizadora no Algarve e temos os temas associados à eficiência hídrica, mais uma vez ligada aos Municípios, e a reutilização de águas tratadas, designadamente para o golfe. Este Plano Hídrico para o Algarve é um tema que se insere no contexto mais vasto da gestão da escassez e, portanto, estamos a fazer um foco no Algarve, sendo uma das regiões mais exposta ao fenómeno das alterações climáticas. Temos estado a trabalhar com a Agência Portuguesa do Ambiente, no sentido de identificar um roteiro que correspondem às zonas mais sensíveis do país em matéria de gestão de escassez. Para além do Algarve, temos a costa alentejana, sendo uma região onde confluem os fatores das alterações climáticas e a intensidade da procura, seja industrial ou do turismo, o que vem acentuar a necessidade de encontrar soluções que permitam encontrar um balanço hídrico adequado. A APA está a concluir um Plano de Eficiência Hídrica para o Alentejo. O Interior Alentejano tem uma situação particular que tem que ver com o Alqueva: o sistema de regadio do Alqueva permite potenciar muito da nossa oferta da zona e, por isso, essa zona foi já alvo de uma intervenção. Agora, estamo-nos a focar na Costa, mais concretamente na zona de Sines. Uma outra área onde o Ministério do Ambiente está a trabalhar é na zona do Tejo e em Viseu que, em períodos de seca, acaba por ter perturbações. Por último, outra zona é o Nordeste: o tema das interligações volta a ser relevante. Aliás, a realidade é muito distinta a Sul e a Norte do Tejo: a Norte, estamos a falar mais de interligações e disponibilidade de água e a Sul estamos a falar em acrescentar água. Neste quadro, para além dos instrumentos que temos como são os Planos de Eficiência Hídrica, o Ministério do Ambiente tem promovido o conceito de Pacto de Água, isto é, procurar converter o conflito da água pelo compromisso com a água. Fundamentalmente, o que se trata é de reunir em cada um destes clusters regionais, os diferentes utilizadores e confrontá-los com a disponibilidade de água e os investimentos que são necessários fazer porque a escassez, por natureza, é a relação entre a procura e a oferta. A gestão da escassez não se resolve, apenas, pelo lado da oferta: tem que ver com os consumos e a utilização racional do recurso. Temos estado a trabalhar nesses pactos para mobilizar os principais agentes locais para, do lado da oferta e da procura, encontrar compromissos.
Nesta articulação da operação do Grupo Águas de Portugal com as concessionárias, operadoras e municípios, está prevista alguma alteração?
Em termos de orgânica, conheço a minha. Falando da especificidade de um Grupo como este, destaco a importância de uma boa governação: é um Grupo muito particular que tem mais de 3 mil trabalhadores, 17 empresas, um número considerável de gestores de quadros de alta direção e que assenta no território e, ao mesmo tempo, é preciso consolidar a plataforma comum. É um desafio de grande entrega porque atuação é feita a dois níveis: ao nível central, com soluções transversais, e ao nível da proximidade, com a operação no território. Este é um exercício extremamente interessante num Grupo que tem uma multiplicidade de partes interessadas: não é só a dinâmica interna, mas também os anseios e as necessidades da generalidade das pessoas para quem a água é vital. Neste grupo, pelo impacto que tem na vida das pessoas, o avanço que se está a dar é o reconhecimento de que a proteção de água – recurso escasso – se faz com uma visão holística e mobilizadora, chamando para este desafio a procura e oferta, ou seja, os diferentes utilizadores. Portanto, a solução para este problema é feita num ambiente muito aberto.
Num cenário de “menos água” e “mais seca”, o que é que urge não ficar para trás?
Nós temos estado a trabalhar neste contexto de escassez em diferentes planos. Obviamente que há medidas de contingência que têm de ser tomadas em função das circunstâncias, mas fundamentalmente temos estado a trabalhar nas medidas estruturais que constam nos Planos de Eficiência Hídrica, que necessitam de intervenções estruturais, sendo certo que estamos em avaliação evolutivas. E as alterações climáticas são um fenómeno evolutivo, exigindo um exercício regular de revisitar as soluções. Esse é um exercício que faz apelo a um conjunto de medidas, ou seja, a uma combinação de soluções que são graduais, sendo ponderada a oportunidade e o custo dessas mesmas soluções. É uma combinação de soluções em que há uma hierarquia na sua aplicação em função do impacto que tem essas medidas e que vão desde soluções do lado da oferta, como as soluções convencionais, isto é, a eficiência hídrica, ou as soluções não convencionais, necessariamente mais onerosas, que passam pelo tratamento de águas residuais e a sua reafetação e da água do mar (dessalinização).
Se conseguisse avançar até 2050, como gostaria que estivesse o setor da Água em Portugal?
Diria que, de uma forma transversal, a gestão da água é um tema muito territorializado e que é suscetível de incorporar as assimetrias para dentro dos sistemas, afetando o desempenho das empresas. Em termos de organização do setor, gostaria de ver um setor mais robusto e mais consistente para enfrentar o fenómeno das alterações climáticas que se vai acentuar. Tem de dispor da capacidade de se agilizar para progredir na gestão e na proteção dos recursos, num contexto de maior escassez.
Esta é a segunda parte da Grande Entrevista incluída na edição 98 da Ambiente Magazine
Fotos de Raquel Wise
Primeira parte da Entrevista: