Portugal foi o primeiro país na Europa a assumir o objetivo da neutralidade carbónica até 2050. É talvez o maior desafio que o país tem pela frente nos próximos anos: construir uma economia que gera mais riqueza com mais bem-estar e emprego mais bem qualificado, mas que é neutra em carbono e que sabe regenerar materiais. Neste desígnio, o setor energético assume extrema importância e a Estratégia Nacional para o Hidrogénio 2030 (ENH2030) é vista como uma “oportunidade única” para Portugal, que permitirá transformar o atual modelo económico “linear” num modelo económico “circular”. O “papel”, as “vantagens” e os “alertas” do hidrogénio no rumo à descarbonização é um dos temas em destaque nesta edição.
À Ambiente Magazine, fonte do Ministério do Ambiente e da Ação Climática deixou claro que o caminho para a descarbonização do país está intrinsecamente ligado à transição energética: “A estratégia de Portugal assenta numa combinação de diversas opções de políticas e medidas, bem como de opções tecnológicas variadas”. Nesta ótica, merece destaque o papel que os “gases renováveis, em particular o hidrogénio, podem desempenhar na descarbonização dos vários setores da economia, o que permitirá “alcançar níveis elevados de incorporação de fontes renováveis de energia no consumo final de energia de forma mais eficiente”. Como vantagens, o hidrogénio tem, entre outras, o facto de, “em complementaridade com a estratégia de eletrificação”, permitir reduzir os “custos da descarbonização”, reforçar substancialmente a “segurança de abastecimento num contexto de descarbonização”, dado que permite “armazenar eletricidade renovável durante longos períodos de tempo”, contribui substancialmente para “reduzir a dependência energética ao usar na sua produção fontes endógenas” e reduzir “as emissões de gases de efeito estufa (GEE) em vários setores da economia”, uma vez que “promove mais facilmente a substituição de combustíveis fósseis”.
O Ministério do Ambiente assegura que o hidrogénio irá promover o “crescimento económico e o emprego por via do desenvolvimento de novas indústrias e serviços associados”. Questionado sobre os desafios e oportunidades do hidrogénio, o Ministério destaca que o setor da indústria tem um “grande peso nas emissões de GEE”, prevendo-se uma “descarbonização a um ritmo menos acelerado”, dadas as “questões de competitividade associadas a grandes transformações e aos investimentos que são necessários efetuar para operar a descarbonização dos processos. Adicionalmente, o Ministério considera ser necessário “fomentar a adoção de soluções inovadoras de descarbonização da indústria”, sobretudo para a “indústria mais intensiva em carbono”. “O hidrogénio terá um importante papel na descarbonização da economia nacional, em particular nos setores que atualmente dispõem de poucas opções tecnológicas alternativas e onde a eletrificação no curto-médio prazo poderá traduzir-se em custos significativos”.
Criar as condições para tornar o hidrogénio numa das “soluções para a descarbonização da economia” é, assim, uma das prioridades do Governo, definindo “um conjunto de políticas públicas que orientam, coordenam e mobilizam investimento público e privado” em projetos nas áreas da produção, do armazenamento, do transporte e do consumo e utilização de gases renováveis em Portugal. Nestas matérias, já foram dados passos importantes como a estratégia EN-H2 para as próximas décadas, a regulamentação que possibilita a produção e a injeção de gases renováveis na rede nacional de gás natural ou a regulamentação que estabelece o mecanismo de emissão de garantias de origem para os gases de origem renovável, criando as bases para que o hidrogénio seja uma realidade. Também a mobilização nos incentivos ao investimento do hidrogénio, como é caso do Aviso POSEUR para apoiar projetos de produção de gases de origem renovável num total de 40 milhões de euros, o Programa de Recuperação e Resiliência, onde serão disponibilizados 185 milhões de euros para gases de origem renovável e 720 milhões de euros para a descarbonização da indústria, e, ainda o leilão que será lançado para apoiar os utilizadores de hidrogénio verde.
[blockquote style=”2″]Cautela com as ambições desmesuradas[/blockquote]
De acordo com Pedro Martins Barata, partner da Get2c, um dos grandes tópicos de 2021 na política climática europeia pende-se com a utilização do hidrogénio como “vetor energético prioritário” para a descarbonização da Europa e o objetivo da neutralidade carbónica. “O hidrogénio é hoje visto como quase incontornável no esforço coletivo que a Europa pretende encetar”, diz, sublinhando que, para tal, contribuem o “reforço da ambição, reforçada agora com o acordo alcançado sobre a Lei Climática Europeia, mas também a necessidade sentida em muitos países de investimento em infraestruturas por forma a acelerar a transição energética”.
Mas “será mesmo assim”? O também coordenador do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 relembra outros momentos em que, “coletivamente”, se antecipou a “emergência de novas tecnologias”, apenas para se verem “esfumar” tais visões como a tecnologia conhecida como “captura e sequestro de carbono” (CCS no acrónimo inglês), considerada também como “incontornável na descarbonização das grandes instalações de combustão”, em particular nas centrais elétricas fósseis. Foram “colocados milhões em programas de investigação, cativou-se dinheiro na Europa e falava-se em múltiplos programas-piloto”, atenta. E “quinze anos depois”, tal como o Brasil, o CCS é o “eterno futuro”. Enquanto isso, a China embarcou numa “transformação radical do seu sistema energético”, de tal forma que começou a dar os seus frutos: “estabilização temporária, mas real, das emissões em 2017 e 2018; a dominância total dos mercados de tecnologia solar, mas nem um só exemplo de utilização de CCS à escala necessária”, vinca. Desta forma, em toda a história do hidrogénio atual, Pedro Barata reforça a necessidade de se ter cautela com as ambições desmesuradas: “Não é o mesmo que considerar a aposta do hidrogénio como errada, mas sim perceber as limitações do que se pretende”. O hidrogénio deve ser considerado em “aplicações específicas” em que é necessária “alta densidade de energia”. É também nesse sentido que uma “estratégia coerente e custo-eficiente deveria ter em linha de conta que a utilização das redes de transporte para aplicações que são essencialmente fixas pode não fazer sentido, sobretudo sabendo que o transporte de hidrogénio apresenta custos que o torna, na maioria dos casos, pouco competitivo, mesmo no melhor dos cenários, para aplicações a mais de 1000 km de distância do ponto de geração”, algo que parece “não ter sido pensado aquando do anúncio de muitas das atuais estratégias”. Sendo assim, a ideia de um “Pólo de hidrogénio verde em Sines” como uma “contribuição para a economia verde do centro Europeu” necessitaria de ser revisitada: “Não se trata aqui de ser contra o hidrogénio ou contra a estratégia portuguesa, mas de evitar decisões que trazem consigo riscos potenciais de ativos perdidos. E se a história de Sines nos indica alguma coisa, é o peso desse risco”, alerta.
Já sobre a meta de 2050, Pedro Barata acredita que Portugal tem todas as condições para atingir a neutralidade carbónica de uma forma eficiente: “Para tal, importa perceber que deveremos ter mais alguma ousadia nos planos dos próximos 10 anos”. Na prática, e dada a vida longa dos ativos de geração, “é na década de 2020-2030 que se irá começar a determinar o parque tecnológico de 2050”, refere. E a transição energética em curso irá ter que acelerar no “crescimento da penetração da energia renovável no mix elétrico”, podendo Portugal optar pela “recriação de um sistema elétrico centralizado semelhante ao existente ou a criação de um sistema muito mais diversificado em que coexistem soluções centralizadas com sistemas de geração descentralizados”. O partner da Get2c defende também a necessidade de se acelerar exponencialmente a eletrificação do parque automóvel de ligeiros e, posteriormente, de pesados: “Tendo em conta a idade média do parque automóvel português e a sua capacidade limitada de renovação anual, as medidas de apoio a essa renovação têm que ser pensadas num horizonte muito mais imediato do que 2030”, sustenta.
[blockquote style=”2″]As metas não são por país, mas sim por construtor[/blockquote]
Do lado do setor automóvel, Hélder Pedro, secretário-geral da ACAP (Associação do Comércio Automóvel de Portugal), reitera a necessidade de se “encontrar melhores soluções” por parte dos construtores de veículos, no sentido de “evitarem pesadas multas” em caso de incumprimento: “A par dos elétricos, os veículos movidos a hidrogénio, por terem zero emissões, são já uma realidade, com alguns construtores a apostar forte nesta tecnologia”. Existe uma vantagem que é a “ausência do peso das baterias”, algo que, segundo o responsável, é muito importante, especialmente no caso dos “veículos de mercadorias em que quanto menor for a tara, mais elevada será a sua capacidade de transporte de carga”. Sobre incentivos, Hélder Pedro destaca a importância do “investimento público neste ciclo de vida do produto” que está ainda longe da massificação: “Só assim é possível assegurar a produção que, numa fase de introdução no mercado, apresenta custos elevadíssimos que não podem ser repercutidos no cliente”. O Governo já está a atribuir um incentivo de três mil euros aos automóveis ligeiros de passageiros elétricos adquiridos por particulares: “É claramente insuficiente!”, diz. A isto, acresce que, “este ano, o Governo deixou de atribuir incentivos aos ligeiros de passageiros adquiridos por empresas”, o que conduziu a uma “queda significativa das vendas deste tipo de veículos no primeiro trimestre”, atenta.
O secretário-geral da ACAP defende que, ao setor público, cabe “incentivar a introdução das novas tecnologias”, através da “criação de postos de carregamento de veículos elétricos ou de uma rede de abastecimento de hidrogénio com ampla cobertura territorial”. Já ao privado, cabe “assegurar a mudança gradual de paradigma no sentido da descarbonização do setor dos transportes, através do forte investimento que tem vindo a ser feito em ID”, refere.
Questionado sobre se Portugal vai cumprir com a meta até 2050, Hélder Pedro é perentório: “As metas não são por país, mas sim por construtor. Como as coimas são extraordinariamente elevadas no caso de incumprimentos, todos os construtores terão de ficar abaixo dos valores limite definidos pela Comissão Europeia”.
*Este artigo foi publicado na edição 88 da Ambiente Magazine.