Esta é a segunda e última parte da Grande Entrevista que a Ambiente Magazine fez a João Pedro Matos Fernandes, ministro do Ambiente e da Ação Climática.
- Aumentar o preço do carbono é uma das soluções para se promoverem as energias limpas, e desta forma, atingir a neutralidade carbónica. Que equilíbrio está a ser feito por parte do Governo para que as empresas mais afetadas não sofram com este aumento?
Estamos a contribuir para reduzir o défice tarifário e, com isso, reduzir o valor do acesso às redes. Vamos, para os grandes consumidores, publicar uma portaria para fazer a chamada compensação dos custos indiretos da eletricidade, que vai vigorar no próximo ano. Com isto, vamos proteger aqueles que fizeram, no passado recente, uma aposta na eletrificação. Mas não tenho dúvidas: a grande aposta será sempre o fomento das grandes energias renováveis porque essas não pagam nenhuma taxa de carbono. A tradição de um Portugal que fez um modelo de desenvolvimento das energias renováveis, que objetivamente gerou um sobrecusto para o conjunto dos cidadãos, mas também que nos permite ter hoje 60% da eletricidade produzida a partir de renováveis e sermos líderes do mundo neste processo, hoje em dia, tudo se passa ao contrário. Os dois leilões de energia solar que lançamos provam que, afinal, a utilização do mecanismo de mercado – o leilão – mas sem ficar dependente, como pensa o PSD, de valores de mercado, gera sobre-ganho para os portugueses: com a eletricidade que chegou a estar no mercado spot há poucos dias, à volta dos 80€ por MGW. E os valores de preço médio dos leilões do solar são de 20€ por MGW. Pensemos nos milhões de euros que os portugueses vão poupar assim que todos os sistemas entrarem em funcionamento.
- A energia é o setor onde provavelmente se vai assistir a uma grande transformação. Como é que perspetiva essa transformação nos próximos 10 anos?
Temos de passar de quota de incorporação de renováveis elevadíssima, ou seja, 60% da eletricidade que consumimos provém de fonte renovável e, em 2030, serão 80%. Isso significa, por exemplo, naquilo que é a produção solar, onde passamos de 2 GW para 8 a 9 GW. Isto é um esforço enorme e, neste momento, temos estabilidade regulatória, política, legislativa e, sobretudo, procura por parte dos investidores, que nos deixam muito confiantes. Uma segunda dimensão é, claramente, a dos gases renováveis: a eletrificação não é sinónimo de descarbonização. Por isso, há um conjunto de processos industriais, cuja intensidade energética não basta com eletricidade: tem de ter gás. E se tem que ter gás, não pode ser gás natural porque é fóssil e, portanto, tem que ser gás renovável. Por isso, esta grande aposta no hidrogénio verde.
- Para além da energia, quais são os outros setores onde essa transformação não vai ser tão evidente?
Decididamente, o setor dos resíduos, que é um setor onde Portugal não tem cumprido as metas. Apesar do crescimento do volume de resíduos produzidos per capita ser inferior ao crescimento elevado da economia, queremos mesmo que ele se reduza. E isso não está a acontecer. Temos mesmo que transformar muitos dos nossos hábitos e as novas regras assim o ditarão. Temos de chegar a 2035 com apenas 10% dos resíduos a irem para aterro. Por isso, a recolhas dos biorresíduos vai ser mesmo uma revolução nos tempos mais próximos. É impensável mandar matéria orgânica para aterro, ainda mais num país como o nosso que tem solos tão carentes dessa mesma matéria orgânica.
- A década de 2020 – 2030 é decisiva para que Portugal consiga ser neutro até 2050. Quais são os ganhos que o país terá com este nível de ambição?
Portugal é o país da Europa que mais sofre atualmente com as alterações climáticas. Prova disso são os fogos rurais, a perda de 13 quilómetros quadrados de costa nos últimos 20 anos, a seca quase estrutural no sul do país… Temos mesmo de dar o exemplo neste combate. E se pensarmos que o setor das energias renováveis já criou nove mil empregos, dos quais três mil, apenas, em torno do cluster eólico em Viana do Castelo, aquilo que Portugal vai ganhar é, por um lado, uma posição de destaque no mundo, que hoje já tem e que deve confirmar como um país-líder nesta transformação, e, por outro, a certeza de que muitos investimentos vão ser feitos neste setor e, com isso, criar riqueza e emprego qualificado. Em várias áreas da modernidade recente, a Europa deixou-se ficar para trás, em comparação com os EUA e com a China. É o caso da digitalização. No domínio da ação climática, a Europa é o continente líder porque uma parte muito expressiva da nossa economia vai andar em torno daquilo que vai ser o combate às alterações climáticas. A Europa e Portugal ganharão em manter este papel líder.
- “Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital” foi o lema da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia ao longo destes seis meses. Na prática, o que é significa uma “recuperação justa, verde e digital”?
A recuperação justa, verde e digital é uma recuperação que não deixa ninguém para trás. E muitas vezes diz “verde” e “digital” porque o combate às alterações climáticas depende muito do avanço do digital. Nós não conseguiremos pensar ou definir uma verdadeira economia circular, se não tivermos um sistema blockchain a funcionar que nos permita acompanhar o ciclo de vida dos materiais. E, portanto, verde e digital são duas palavras que devem estar interligadas.
- Que balanço faz destes seis meses de presidência europeia?
Este semestre foi muito positivo, no que diz respeito ao avanço e à confirmação da Europa como continente líder no combate às alterações climáticas. Em primeiro lugar é a aprovação da Lei do Clima, onde vamos ser o primeiro continente neutro em emissões carbónicas em 2050; em segundo, é a aprovação da Estratégia Europeia para a Adaptação às Alterações Climáticas, porque os países do Norte, até há bem pouco tempo, ligavam pouco a esta questão da adaptação, visto que, não tinham problemas de escassez da água ou fenómenos climáticos extremos e, por isso, é uma grande conquista de Portugal e de uma maneira geral dos países do sul da Europa; em terceiro é a “Renovation Wave – Renovação do Edifícios”, que é essencial na melhoria das condições de vida dos cidadãos europeus, na enorme redução das emissões e as pequenas obras que têm de ser feitas, têm que ser em todo o lado. Por isso, há aqui uma criação de emprego muito grande em pequenas empresas e pequenos instaladores.
- O jornal Público noticiou recentemente que Portugal é dos países onde a componente ambiental tem menos peso nas escolhas dos projetos a executar com o dinheiro do fundo de recuperação europeu. É uma análise preliminar do instituto Bruegel. Concorda com esta visão?
Essa notícia dizia que Portugal tinha cerca de 20% e que a Dinamarca tinha 90% associada à ação climática. Se isso fosse verdade, nem o projeto dinamarquês nem o português passariam. Em Portugal, são, no mínimo, 38% porque, quando o Instituto fez a conta, fê-la apenas com aquilo que são as medidas do ambiente do estrito senso. Dos mais de 2 mil milhões que existem para a recuperação do parque habitacional, um milhão é para eficiência energética e cerca de 300 milhões de euros de investimento na saúde é para a melhoria das condições energéticas dos hospitais. E digo no mínimo porque vão ser mais. Por exemplo, em medidas que valem uns mil milhões de euros, ou seja, um quinze avos do PRR, são as agendas inovadoras para a indústria e essas mesmas agendas inovadoras vão ter mais projetos daquilo que comumente se chama a área “tutelada” pelo Ambiente, ainda que iniciativas privadas, do que aquilo que é a área comumente intitulado pelo Ministério da Economia.
- Mais do que perguntar qual a importância da bazuca europeia no ambiente e na economia e quais os seus efeitos, o que é que os empresários e a sociedade não se podem esquecer?
Quando nos explodiu a pandemia nas mãos, havia uma discussão teórica muito intensa: uns diziam que agora é o momento de investir na sustentabilidade, outros diziam que as políticas ambientais iriam passar para segundo plano. Parece muito evidente que esta (última) é uma hipótese que já ninguém fala. A bazuca veio consagrar aquilo que Portugal diz desde 2016, que é investindo na sustentabilidade que vamos fazer crescer a economia. Aquilo que o Green Deal veio estatuir, já antes da pandemia, foi que o desenvolvimento económico da Europa faz-se pelo investimento na sustentabilidade. A bazuca veio consagrar tudo isto. É mais do que o desenvolvimento: é a recuperação das condições económicas que se degradaram em função da pandemia e que tem que ser feito, essencialmente, com investimentos, em parte, na transição digital e, numa parte maior, na transição climática.
- Que lições devemos retirar desta crise de saúde pública?
A primeira (lição) é que não é possível discutir saúde humana sem discutir saúde animal, ambiental ou bem-estar das condições do planeta. Precisamos mesmo de garantir o reforço da biodiversidade e uma melhor forma de reduzir aquilo que é o risco de novas pandemias. A segunda coisa é aquisição de um conjunto de valores que espero que não se percam: o valor das cadeias curtas de produção e de consumo. Aprendemos amargamente o que é depender de matérias-primas e de produtos acabados que vêm de muito longe. O valor da ruralidade, do silêncio das cidades, da qualidade do ar melhor. Espero que todos estes valores não se percam e que passem a ser interiorizados por todos e cada um de nós.
- Voltando ao início, o que ainda falta ver concretizado para se sentir um ministro totalmente realizado?
Eu nunca serei um ministro totalmente realizado. No dia em que for um ministro totalmente realizado a única coisa que posso fazer é ir embora porque certamente que já estou muito pouco imaginativo. Sinto que aquilo que ainda falta e aquilo por Portugal ainda não é conhecido tenho de ser honesto, é pelo que tem que fazer no domínio do restauro dos ecossistemas e proteção e promoção da biodiversidade. E o investimento que já estamos a começar a fazer e as novas formas de gestão do espaço e das áreas protegidas e, em simultâneo, a nova política da paisagem, são essenciais. Estamos a falar de coisas que vai demorar tempo a ter resultados, mas que são da maior importância. Se hoje, à escala global, falar de ambiente, é falar de 1,5 graus do que temos de cumprir e, por isso, temos que acabar com o fóssil e promover as renováveis, estou muito convencido que falta pouco tempo para que este tema, continuando as ser importante, seja ultrapassado pela relevância da proteção da biodiversidade. Tenho de reconhecer que Portugal tem um caminho muito grande para fazer e particularmente desafiante, porque construir uma natureza que seja mais biodiversa passa muito pela forma equilibrada que as atividades humanas se podem espalhar no território. Este é um desafio societário de uma enorme dimensão.
*Esta entrevista foi publicada na edição 89 da Ambiente Magazine.