Não restam quaisquer dúvidas de que a pandemia da Covid-19 marcou e condicionou o ano de 2020 de uma forma transversal. Já em matérias ambientais (a pandemia) representa um “sinal” de “alarme gritante”, sendo uma prova, “impossível de ignorar”, dos “atentados que a humanidade está a cometer sobre a natureza”, que acabam por se traduzir em “ameaças” para todos. As declarações são de João Joanaz de Melo, professor de Engenharia do Ambiente na Universidade NOVA de Lisboa e dirigente do GEOTA (Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente), que acredita que se tal alarme for levada a sério, pode ser um “fator positivo” da mudança.
Em entrevista à Ambiente Magazine, o docente sublinha que as “restrições” decorrentes da pandemia provaram que é “possível viver com menos coisas, menos deslocações e menos luxos”. Em simultâneo, foram também criadas novas oportunidades, como por exemplo, a “generalização da teleconferência e do teletrabalho”, a “melhoria de eficiência na logística e distribuição” ou a “inovação em todos os setores”. Mas, precisa o responsável, 2020 foi também o ano em que a União Europeia estabeleceu o Pacto Ecológico Europeu, em que os Estados Unidos da América mudaram o rumo dos últimos quatro anos, no sentido de reatar um relacionamento internacional normal, incluindo em matéria de clima, e em que a China anunciou pela primeira vez uma meta para a neutralidade carbónica: “São sinais de esperança nas três maiores economias do Mundo”.
Relativamente aos aspetos negativos, João Joanaz de Melo atenta que a pandemia da Covid-19 já causou mais de um milhão vítimas mortais e, ao mesmo tempo, uma “crise económica” que “aumentou significativamente a pobreza e as desigualdades sociais”. Quanto às crises da biodiversidade e do clima, essas continuam a agravar-se: “Apesar das declarações de boas intenções, as medidas estruturais necessárias não estão a ser tomadas, por uma combinação de falta de atenção política, falta de meios, e quebra de relações sociais motivada pela pandemia”.
Questionado sobre as respostas que urgem para combater as crises ambientais que Portugal, atualmente, vive o responsável destaca, desde logo, a necessidade de se “mudar de mentalidade” e o “modo de vida”, considerando que os “danos ambientais” e as “desigualdades sociais” decorrem diretamente do “estilo de vida consumista” e da “perda de valores éticos, substituídos pela ganância”. Depois, “temos de ser muito mais solidários e vulneráveis com os concidadãos” e, também, “levar a sério a crise ambiental” até porque, “tem implicações concretas em medidas desconfortáveis ou polémicas”, atenta. João Joanaz de Melo chama ainda atenção para a necessidade da “educação” entre todos, destacando a importância de uma “colaboração ativa” de todos os setores da sociedade, como as autoridades, as empresas, a sociedade civil ou as famílias: “A mudança de paradigma necessária é no sentido da conversão ecológica, tal como proposto pelo Papa Francisco”. Em relação à pandemia, há pelo menos “duas dimensões” que “falharam gravemente” em Portugal. Por um lado, a “grosseira insuficiência de testes à Covid-19 e de inquéritos epidemiológicos”, diz, acrescentando que “só é possível planear as respostas mais adequadas com informação rigorosa”. Por outro lado, “os transportes públicos devem ser valorizados como um serviço público essencial”, e, ao mesmo tempo, “reforçados em época de pandemia”, incluindo em “períodos de confinamento”, caso contrário, correm o “risco de se tornarem mais um foco de contágio” ou uma “séria limitação à atividade económica”, alerta.
[blockquote style=”2″]Crescimento económico não é sinónimo de progresso social[/blockquote]
João Joanaz de Melo defende que o sistema fiscal deve ser, não apenas uma “forma de arrecadar receitas para o Estado”, mas também, um “instrumento” de política pública, capaz de ser “universal, menos burocrático e mais transparente” que outros mecanismos de incentivo. Em síntese, precisa o docente, deve ser “agravada” a fiscalidade sobre o “lado mau” da economia (poluição, degradação e desperdício de recursos como água, energia, solo e biodiversidade) e “desagravado” o “lado bom” (rendimentos do trabalho, satisfação de necessidades sociais). Desta forma, procura-se um triplo dividendo: “A promoção de melhores práticas ambientais, a promoção do emprego, e a promoção da inovação. Isto deve ser feito mantendo a neutralidade fiscal”. E a “carga fiscal” sobre as famílias e as empresas não deve ser agravada, sendo a “receita de ecotaxas” redistribuída em “função dos comportamentos”, diz, destacando que “as boas práticas ambientais devem ser incentivadas”, promovendo em simultâneo a “equidade social”. E um bom exemplo disso é a importância de existir uma “taxa universal sobre o carbono”, devolvida às famílias e às empresas sob a forma de “incentivos à eficiência e combate à pobreza energética”, refere.
No desígnio da redução das emissões de dióxido de carbono (CO2) em 55% até 2030, o engenheiro considera que os líderes políticos têm um papel essencial: “É necessária liderança, capacidade de negociação e arbitragem, num processo de mudança profundo, que afecta múltiplos interesses sociais conflituantes”. E um bom exemplo disso é que “vamos ter todos de viajar menos, de aprender a comer melhor, de gerar menos lixo, de conhecer melhor a natureza e respeitar os seus limites”, afirma, alertando que “crescimento económico não é sinónimo de progresso social”, sendo essa uma “uma lição que a maioria dos cidadãos e dos dirigentes políticos ainda não aprendeu”.
E de que forma a sociedade civil e empresas podem ser envolvidas no processo? João Joanaz de Melo destaca, desde logo, a importância do “diálogo” ou a necessidade de se “levar a sério as preocupações dos parceiros sociais”, antes de se “tomar decisões contra o interesse público”, motivadas por “interesses inconfessáveis”, lembrando o “Programa Nacional de Barragens”, o “Aeroporto do Montijo”, metade da “rede de auto-estradas vazia de carros” ou a “liquidação dos planos de ordenamento das áreas protegidas”. Além disso, o responsável chama a atenção para a necessidade de haver “regulamentação” com “transparência, informação pública adequada e incentivos económicos bem desenhados”. E, nestas matérias, a experiência é óbvia: “A combinação de conhecimento, diálogo e sinais económicos claros, faz milagres”. Ainda sobre o mesmo desígnio, o responsável acredita que com “esforço” é possível cumprir tal meta. No entanto, o caminho ainda é longo, alerta, destacando a necessidade de se “cortar no consumismo”; de “apostar na eficiência energética, em todos os setores”; de “apostar nos transportes públicos, adequados a cada função”; de “privilegiar a produção de energia descentralizada”; de “reduzir os múltiplos impactes do sistema agroalimentar”; de “concretizar a economia circular”ou de “valorizar o sequestro de carbono nos espaços naturais e rurais”, o que implica toda uma “nova política de desenvolvimento local, florestas e conservação da natureza”. Do ponto de vista do engenheiro, Portugal tem o “conhecimento” e a “tecnologia” necessários para cumprir as metas estabelecidas, a nível internacional e nacional, para os próximos 10 anos: “O que falta mesmo é uma vontade coletiva coerente”. E isso depende de todos: “de cada família, das organizações da sociedade civil, das empresas, das instituições”, sublinha. Já os dirigentes políticos, por vezes, fazem a diferença, em momentos de crise, mas raramente são pioneiros: “Se existir uma vontade clara da sociedade civil, os políticos seguirão as preocupações dos eleitores, sendo uma grande vantagem da democracia”, afinca.
[blockquote style=”2″]A conservação da natureza devia ser uma prioridade do país[/blockquote]
Se no futuro tais metas não forem cumpridas, João Joanaz de Melo não tem dúvidas de que no curto-prazo os impactos mais preocupantes centrar-se-ão no “agravamento das crises climáticas e da biodiversidade”, no “aumento do fosso entre ricos e pobres”, na “escassez de água” ou na “vulnerabilidade crescente” a “crises alimentares” e a “desastres naturais”. Portugal é uma “pequena economia aberta”, mas é “membro de pleno direito da UE”, que é o “maior clube económico” do mundo: “Temos muitos e bons recursos, com grande potencial, mas gerimo-los muito mal”, lamenta.
Já sobre as outras áreas ambientais, como os resíduos, a biodiversidade ou as florestas, o responsável alerta que todos esses setores mostram indicadores preocupantes: “O mais grave de todos, porque mais irreversível, é a perda de biodiversidade”. E para o docente, é a humanidade que está a provocar uma “extinção planetária em massa”, de tal forma que os “filósofos e cientistas já teorizam um novo período geológico de origem humana, o Antropocénico”. Em Portugal, lembra o responsável, “dois terços dos habitats protegidos” por lei estão em “mau estado” de conservação. Quanto às “espécies protegidas”, não se conhece o “estado de conservação de 40%” e das que são conhecidas, “dois terços estão seriamente ameaçadas”, alerta. Para João Joanaz de Melo, a “conservação da Natureza” devia ser uma “prioridade” do país e “feita de forma inteligente”, capaz de se valorizar os “serviços dos ecossistemas” como a “biodiversidade”, o “sequestro do carbono e a “prevenção de incêndios nas matas autóctones”, a “polinização”, a “proteção do solo”, a “regulação do ciclo hidrológico” ou o “ecoturismo”. Assim, para se salvaguardar o futuro de todos, é fundamental “ensinar” os jovens a frequentar e a gozar os espaços naturais: “A natureza é bela, o lazer e desporto em meio natural são saudáveis e divertidos. Só protegemos o que conhecemos e amamos”, reforça.
Olhando para o panorama ambiental no geral, João Joanaz de Melo é perentório: “Conhecemos as tendências presentes, as ameaças, os desafios e as ferramentas que temos para os resolver. Precisamos de mudar a nossa mentalidade coletiva, aprender a colaborar melhor, compreender melhor a natureza. O futuro depende de nós, depende do que decidirmos fazer hoje. Não há outra resposta”.