Faltam políticas públicas para que haja um sistema de saúde circular, sustentável e eficiente
A Economia Circular é hoje vista como a “única solução” ou o “call to action” para a sustentabilidade do planeta e para a sobrevivência de todos os seres-vivos. O modelo económico de reorganização, coordenação dos sistemas, de produção e de consumo têm que ser implementados numa visão 360º. Foi em torno da “A Economia Circular e a Saúde” que a Zero Desperdício promoveu mais uma sessão integrada nas “Conversas Circulares“. A moderação da sessão ficou a cargo de Paula Policarpo, presidente da Associação “Zero Desperdício”. A falta de políticas públicas em prol de um sistema de saúde sustentável e eficiente foi um alerta que os especialistas quiserem deixar bem presente.
Começando pela medicina dentária, Ana Sofia Lopes, médica dentista, considera que um dos grandes problemas assenta no número excessivo de dentistas para a população portuguesa, traduzindo-se no aumento de desemprego. O facto de não estarem incluídos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) é também uma barreira: “Somos um grupo muito suscetível a ser atacado pelas seguradoras e pelos licenciamentos que são muito burocratizados”. Por isso, ao nível da “sustentabilidade” das clínicas dentárias, Ana Sofia Lopes prevê uma rotura nos próximos 10 anos: “Se não houver alterações ao nível governamentais, muitas clínicas vão encerrar”.
Sobre economia circular, a medicina dentária apresenta uma “grande inovação digital” a todos os níveis: “É uma medicina muito evoluída. E em termos de resíduos, ao nível de laboratório, a vertente digital evoluiu brutalmente”. Ainda assim, aquele que parece ser o “maior problema” centra-se nos descartáveis e que, com a pandemia, aumentaram drasticamente: “Tudo o que são produtos contaminados (agulhas ou seringas) é trabalhado com uma empresa e vão para recipientes específicos”. Quanto aos descartáveis, “temos que ser nós a separar e lavar aos contentores próprios”, refere, constatando ser uma “problema de fácil resolução: temos de sensibilizar as clínicas para fazer a separação”.
[blockquote style=”2″]Nas profissões de saúde, investe-se muito em boa investigação científica[/blockquote]
Na visão de Adalberto Campos Fernandes, professor e médico, a humanidade enfrenta um problema onde cada geração é marcada por uma meta ou desígnio. A verdade é que o “condomínio” (o planeta) começa a ser pequeno para “tantos inquilinos”, atenta: “Os recursos não são expansíveis e há quem diga que acima dos 9 mil milhões de cidadãos, o mundo entra em situação de grande dificuldade, se não forem encontrados mecanismos alternativos”. Num tempo que se “esgota” em relação ao “futuro”, o nível de atuação tem que ser cada vez maior e mais rápido: “Temos que fazer mais coisas e dar uma vida digna às pessoas com os recursos que temos”.
Olhando para a saúde, o médico também concorda que se trata de uma área ligada, desde as suas origens, à inovação: “Nas profissões de saúde, investe-se muito em boa investigação científica, desenvolvem-se e fabricam-se soluções. E, portanto, sempre esteve na frente em relação àquilo que podem ser os grandes desígnios da economia circular ou da sustentabilidade ambiental do planeta”, refere. No que diz respeito ao impacto que tem no planeta, Adalberto Campos Fernandes reconhece que a saúde é um “grande consumidor” de recursos, seja da energia ou da água: “Está em curso um programa, apoiado pela União Europeia, de substituição energética dos hospitais através de energias alternativas”, exemplifica. Ainda assim, o também professor acredita que se trata de um trabalho que diz respeito a todos: “A Covid-19 veio acelerar as políticas dos agregados geográficos e geopolíticos, como a UE, os EUA, a Rússia e, sobretudo, a China, um perturbador do ecossistema ambiental”. Para o médico, as mudanças que se sentem atualmente vão cada vez mais acentuar-se: “Vamos ter grande parte da fileira automóvel nos países desenvolvidos elétrica, os transportes públicos vão sobrepor-se aos individuais e a cultura do pedonal e das bicicletas vai afirmar-se”, constata.
Comentando os desafios da medicina oral e fazendo uma alusão ao “desperdício zero”, Adalberto Campos Fernandes é perentório: “O país fez um grande número de asneiras e desperdiçou recursos financeiros que nos levam hoje a ter uma dívida insuportável”. No entanto, tem esperança de que a economia circular consiga tornar os custos do trabalho mais eficientes e que, “daqui a 10 anos, todos os portugueses tenham acesso a um médico dentista sem os esforços que fazem hoje”.
[blockquote style=”2″]É uma questão que está salvaguardada através do processo de autorregulação da Valormed[/blockquote]
Do lado da gestão, António Donato, gestor da Tecnimede, esclarece que a indústria farmacêutica, em conjunto com outros stakeholders da cadeia de valor do medicamento, organizam-se para fazer a “logística inversa” daquilo que são os resíduos dos produtos que não são utilizados: “A Valormed faz a recolha, a classificação, a separação e a reciclagem ou a incineração segura e valorização destes resíduos”. Aliás, “se o objetivo da indústria farmacêutica é melhorar a saúde e bem-estar da humanidad,e é óbvio que a proteção ambiental deve ser um pré-requisito”, assegura.
Quando questionado sobre os “desperdícios” que existem nos medicamentos e as dificuldades que persistem sobre o seu fim de vida, o gestor explica que há diferenças entre a área da alimentação e do medicamento: “Tanto do ponto de vista da qualidade e da segurança e eficácia essa situação não seria possível”. Além disso, “os medicamentos são financiados e a alimentação não é”, afirma. Para o responsável, há um conjunto de pontos que devem ser equacionados do ponto de vista da economia circular quando se fala em medicamentos, a começar pela identificação de “qual a pegada ecológica do medicamento”, bem como “desmistificar” conceitos. “E fazê-lo com uma visão global, integrada e com reforço na regulamentação”, defende. Ao longo da cadeia de valor do medicamento, também devem ser propostas “alterações” para aumentar a circularidade. Segundo António Donato, há um “foco desviado” sobre impacto mais relevante do medicamento relativamente ao ambiente: “Os dados que conhecemos apontam que apenas 2% dos resíduos fármacos que encontramos no ambiente são provenientes de efluentes da produção de medicamentos”. Depois, há ainda um outro enfoque na recolha de resíduos inutilizados que podem tornar-se numa ameaça: “É uma questão que está salvaguardada através do processo de autorregulação da Valormed”, refere.
Para o gestor da Tecnimede, a questão dos medicamentos não tem que ver só com a indústria farmacêutica: “Somos nós os principais responsáveis pela iluminação de medicamentos no ambiente que tem consequências e impactos grandes”. Por isso, deve ser reforçada a “consciencialização” por parte das pessoas “para que não usem medicamentos em excesso, não recorram à automedicação e que não tomem medicamentos que não sejam necessários”, atenta. Assim, o “enfoque não precisa de estar apenas nos resíduos das embalagens”, diz, assegurando que “esse está bem controlado”. E, mais uma vez, a indústria farmacêutica é muito regulamentada: “Temos contratos com entidades gestoras que recolhem todos os resíduos. O que é suscetível de ser reciclado é reciclado e o que não pode ser reciclado é incinerado com ganhos energéticos”, assegura.
António Donato acredita que os desafios em torno dos medicamentos podem ser resolvidos através da educação, tendo “maior e melhor informação relativamente ao medicamento e como se geram esses resíduos”. A título de exemplo, está o término das embalagens-teste dos medicamentos que são criadas e ficam depositadas até ao fim do seu prazo de validade e, depois, são destruídas ou incineradas: “Deve-se estabelecer regras que penalizam a utilização excessiva sobre a embalagens”, atenta.
[blockquote style=”2″]Precisamos de uma pedagogia que se centre no aproveitamento e que desperdice cada vez menos[/blockquote]
A educação é também um tema que chamou a atenção do médico Álvaro Beleza, constatando que as conversas sobre economia circular devem começar nas escolas: “As pessoas acham que, para haver progresso, é preciso ter, comprar e usar mais e tudo novo”. Em 50 anos, a era digital aconteceu de forma súbita e, de acordo com o especialista, o “novo” é o desejado na maioria das vezes: “É um problema dos países que se desenvolvem muito rápido sem terem educação e cultura para esse desenvolvimento”. Na ótica do Álvaro Beleza, é fundamental perceber que o mundo é limitado e que a premissa “reciclar e consumir menos” é urgente: “Precisamos de uma pedagogia que se centre no aproveitamento e que desperdice cada vez menos”. Esta “é uma cultura dos antigos”, sucinta.
Ao longo da sessão foi ainda revelado que está prestes a ser lançado, em parceria com a ZERO Desperdício, uma clínica dentária piloto sustentável: “Vamos medir todos os impactos ambientais, a empregabilidade e colocar tudo no mesmo bolo”. O objetivo é conseguir “indicadores” para este segmento da saúde , explica Ana Sofia Lopes, acrescentando que o espaço será direcionado a pessoas mais vulneráveis.