A 15.ª edição do Congresso da Água, promovido pela APRH (Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos) decorreu entre os dias 22 e 26 de março. A última mesa redonda, subordinada ao tema “Adaptação às alterações climáticas nas zonas urbanas e costeiras”, juntou vários especialistas que discutiram os desafios e as oportunidades do setor da Água em Portugal.
“Portugal é um excelente exemplo de um país ameaçado pelas alterações climáticas. E há dificuldade na generalidade dos portugueses em perceber aquilo que é esperado”. Quem o diz é Carlos Mineiro Aires, bastonário da Ordem dos Engenheiros, destacando que metade da Península Ibérica é hoje um deserto; “Basta ver a mudança de paisagem que existe e que está a avançar ou a subida do nível do mar que é já uma realidade”. Em matéria de recursos hídricos, o engenheiro destaca ainda a forte dependência de montante de Espanha: “Não há nenhum local onde não pudesse ter sido construída uma barragem que ela não esteja construída. E a quantidade de água que fica retida a montante é enorme, embora essa água seja cada vez menor”.
Fala-se muito em “adaptações” mas, para Carlos Mineiro Aires, e citando António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), as “alterações climáticas” e a “cibersegurança” são os dois grandes problemas que a humanidade enfrenta: “A verdade é que as coisas não se alteraram desde então. Apenas apareceu a pandemia, com impactos sociais, sanitários e económicos e com uma brutalidade imensa”. Mas a pandemia trouxe também uma oportunidade, nomeadamente, “tempo para pensar e repensar muitas coisas”, atenta.
Perante uma situação em que houve compromissos internacionais, Carlos Mineiro Alves reconhece que há uma consciencialização cada vez maior para fazer face ao problema de escala global (as alterações climáticas) com avanços significativos. Ainda assim, o engenheiro constata que as metas sempre foram “pouco realistas” face aos “diferentes mundos” que existem, chegando mesmo a classificar de “hipocrisia”: “o mundo preocupa-se muito mais com o modelo económico em que se baseia que é o de deslocalizar (os problemas) para os países mais pobres onde a mão de obra é mais barata”. Neste momento, “estamos a arcar com as consequências” daquelas que foram as políticas erradas. “E, se não forem os países líderes do mundo a dar o exemplo nestas questões, dificilmente invertermos o caminho”, atenta.
Relativamente às questões que merecem uma resposta mais rápida, Carlos Mineiro Aires começa por destacar a energia, acreditando que o hidrogénio vai ser a solução para a mudança de paradigma, inclusive para a capacidade de armazenamento: “Com a descarbonização e com as centrais eólicas, hídricas e solares, não temos capacidade de armazenamento. Não há tecnologia”, afinca. No planeamento do território, destaque para a necessidade de “articular a vivência conjunta” do que são as Áreas Metropolitanas: “Vejo com apreensão não haver um plano de mobilidade para os metropolitanos”, exemplifica. Embora haja um “empenhamento político novo, uma visão nova e uma modernidade na abordagem desses assuntos”, o engenheiro constata que “estamos longe de ter as soluções mais adequadas para mitigar e reduzir o que origina as alterações climáticas”. E uma das soluções passa exatamente por “começarmos a fazer uma adaptação a uma nova vida”, sustenta.
[blockquote style=”2″]Cerca de 20% da zona costeira em Portugal está em risco[/blockquote]
Com foco nas alterações climáticas e nas suas causas, José Pimenta Machado, vice-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), iniciou a sua intervenção, lembrando os incêndios de 2017 e 2018 e as consequências graves que jamais serão esquecidas: “A APA meteu mãos à obra para recuperar todas as zonas afetadas pelos incêndios, tendo recuperado cerca de 1000 quilómetros de linhas de água com soluções de engenharia de base natural”. Além disso, a APA foi capaz de “capacitar empresas”, bem como “desenvolver projetos ao nível local”, refere, adiantando que “temos um pacote de investimentos para recuperar a rede hidrográfica”, recorrendo às mesmas técnicas naturais.
Quando se fala em alterações climáticas, a seca é um tema incontornável. “Portugal tem duas realidades: uma a Norte do Tejo e outra a Sul”. Nesta última, a seca já é estrutural: “Nos últimos 20 anos, tivemos seis anos de seca extrema e, portanto, colocam-se desafios”, afirma. Nestas matérias, a APA preparou um guia, juntamente com as entidades gestoras, para partilhar todas as informações. Já no Algarve, está a ser desenvolvida a primeira central dessalinizadora em Portugal: “Apostar na eficiência da água é uma prioridade e temos mesmo que poupar a água”, atenta. Até ao fim do ano, a APA quer “desenhar os planos sobre seca e determinar quais os concelhos com mais escassez por massa de água”, afirma José Pimenta Machado, destacando que, através desses documentos, “será criado um sistema de indicadores e um programa de medidas para o desafios das alterações climáticas”, contribuindo para uma “melhor gestão”. Ainda em matéria de recursos hídricos, José Pimenta Machado revela que será lançado a 1 de outubro um outro estudo sobre o “novo sistema nacional de informação dos recursos hídricos do século XX”.
No que diz respeito às cheias, a APA está igualmente a preparar medidas: “Estamos a elaborar um segundo ciclo para os planos de gestão de risco e indicações, isto é, um mapa de cheias desenhado para Lisboa e Coimbra”, refere.
Relativamente à erosão costeira, o vice-presidente da APA lembra que Portugal já perdeu para o mar 12,2 quilómetros quadrados, o equivalente a 1700 campos de futebol: “Cerca de 20% da zona costeira em Portugal está em risco”. A estratégia assenta, assim, em apostar num “PPR para o Litoral”: “Apostar na prevenção, mudar a estratégia e colocar limitações artificiais de areia” é um dos exemplos. Ao nível da qualidade das massas de água, José Pimenta Machado considera que há igualmente um caminho longo a fazer, nomeadamente com o vizinho espanhol. Ainda assim, “estamos a melhorar e densificar o regime de caudais”, reconhece.
Como mensagem final, o vice-presidente da APA deixa claro a necessidade de se “apostar na gestão eficiente da água”, bem como a importância de “mais planeamento, mais monitorização e mais digitalização”. Também a aposta em “soluções de origem natural” na área da reabilitação hidrográfica e também no Litoral deve ser uma prioridade: “Privilegiar o green em vez do gray, reduzir a procura, um processo mais participado e mais colaborativo e integrar a água nas diferentes políticas setoriais é relevante”, sustenta.
[blockquote style=”2″]As cidades são a chave na mitigação das alterações climáticas[/blockquote]
O que parece estar profundamente ligado às alterações climáticas e às emissões de CO2 é a urbanização. Para Filipe Duarte Santos, presidente do CNADS (Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável), nos últimos três séculos, a urbanização é uma das tendências mais transformativas na sociedade humana: “Em 1800, apenas 6,2% da população mundial vivia em povoamentos com mais de 5 mil habitantes. Depois, essa percentagem aumentou para 18%, 31%, 46% e 58%, nos anos 1900, 1950, 2000 e 2018, respetivamente. Em 2050, prevê-se que seja de 68% da população mundial”. Atualmente, “as áreas urbanas consomem mais de dois terços da energia gerada à escala global”, representando “mais de 70% das emissões globais” de CO2: “Esta percentagem é ainda maior se se contabilizar as emissões as territoriais urbanas e aquelas que são resultantes do consumo de bens produzidos fora do território urbano”, refere. Porém, “as cidades contribuem de uma forma determinante para resolver o problema” das alterações climáticas: “São a chave do problema, têm a capacidade de promover a mitigação no município, ou seja na redução de emissões, na eficiência energéticas nos edifícios, nas redes elétricas inteligentes, nos espaços verdes, ou nos transportes públicos. Ainda assim, o presidente do CNADS nota que a vulnerabilidade das cidades às alterações climáticas é muito elevada, particularmente no que respeita às inundações em algumas cidades, sobretudo nas cidades costeiras: “São vulneráveis à subida do nível médio do mar de meio metro até 2050. É um número muito significativo de pessoas que estão numa situação de risco”, atenta. Para combater tal vulnerabilidade, existem associações em cidades a nível global e regional que promovem ativamente a mitigação e a adaptação às alterações climáticas: “É o caso da rede das cidades C40, um conjunto de 97 cidades, inclusive Lisboa, que representam 8% da população mundial e 25% da economia global que comprometeram a atingir os objetivos do Acordo de Paris”.
No que refere à subida do nível médio do mar, o presidente do CNADS refere que, atualmente, a principal causa dessa subida já não é a “dilatação térmica das camadas superficiais do oceano”, mas sim o “degelo dos campos de gelo” na Gronelândia e na Antártida: “Temos glaciares que terminam numa plataforma de gelo e a água do mar penetra por baixo dessa plataforma e a temperatura dos oceanos aumenta e vai derretendo o gelo”.
Há três possíveis cenários nos recursos hídricos e nas secas: “Um cenário que cumpre o Acordo de Paris (em que temperatura fica abaixo dos 2 graus celsius); um cenário intermédio (em que a temperatura vai a 3 graus); e um terceiro de 8,5 graus”. Em relação à subida do nível médio do mar as consequências são muito diferentes: “A subida é muito menos pronunciada no cenário que cumpre o Acordo de Paris do que num cenário intermédio e muito mais grave num cenário de 8,5”, precisa o responsável. Ainda assim, há uma certeza: “Temos a chave do futuro nas nossas mãos coletivas”, declara.
[blockquote style=”2″]Lisboa tem uma excelente performance nas perdas da rede[/blockquote]
Para José Sá Fernandes, vereador da Câmara Municipal de Lisboa, o mais importante passa por dar-se boa informação aos cidadãos: “Não há políticas ou decisões políticas sem boa informação porque ela permite o debate e a discussão”. É precisamente nessas métricas que a cidade de Lisboa se centra: “Temos estudos sobre todas as matérias que envolvem as alterações climáticas, desde a zona Ribeirinha da cidade, ondas de calor, problemas da mitigação e adaptação, até às metas”, refere, constatando que “essa informação é essencial para termos a boa decisão política”. Foram esses estudos e informações que permitiu fazer a base do Plano Verde de Lisboa: “Permitiu-nos criar uma tendência, que já vinha de décadas, que era construir onde não se devia construir e conseguimos parar essa tendência. Hoje, temos a concretização do Plano Verde no terreno”, destaca. Tal infraestrutura teve também impacto na água: “Nestes vales e parques, fizemos bacias de retenção de base natural”, vinca, dando como exemplo a obra do Parque Eduardo VII, onde “estamos a centrar a solução quer pela via de infiltração da água, quer pela via da retenção”.
No que concerne às “críticas que podem ser feitas” na frente Ribeirinha, como é o caso de “algumas construções” já feitas, José Sá Fernandes declara que também aí se está a inverter a situação: “Afastamos a construção da margem e não permitimos habitação na frente Ribeirinha”.
Em relação à seca, Lisboa tem uma “excelente performance” nas perdas da rede: “Na rede de distribuição da água, Lisboa dá o exemplo mundial: perdemos pouca água na rede de distribuição e na própria rede de rega de câmara os sinais são também nesse sentido”. Prova disso é que “aumentamos mais de 250 hectares de áreas verdes na cidade e gastamos menos água nessas áreas”, sustenta, destacando que esta performance está muito ligada à “inovação” e à “tecnologia” que permite “perceber onde há fuga e remediar essas perdas”. Ainda em matérias de água, Lisboa leva a cabo uma série de políticas que têm que ver com a água reutilizada: “Neste momento, estamos a instalar uma rede de água utilizada para lavagens de ruas”, exemplifica. Mas na água de rega, o vereador da Câmara Municipal de Lisboa alertou para a existência de burocracias que não permitem avançar com o projeto: “Temos tudo instalado para ter uma experiência piloto com a APA”. Em simultâneo, a capital portuguesa está a preparar tudo para se poder utilizar para fins não potáveis águas de antigas nascentes: “Estamos a preparar com a EPAL, as águas que se estão a perder hoje mas que podem ser utilizadas para outros fins nomeadamente nas zonas onde não vai chegar água reutilizada, como é o caso da Ajuda ou de Alcântara”, refere.