Entrevista SMS (II): “Com a gestão pública municipal o lucro deixou de ser o objetivo de gestão”

A Ambiente Magazine entrevistou Carlos Rabaçal, presidente do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de Setúbal (SMS) e vereador da Câmara Municipal de Setúbal, que lidera a entidade desde a sua reativação, em dezembro de 2022, no seguimento de um processo e decisões que determinaram o enquadramento do termo do contrato de concessão que vigorou por 25 anos em Setúbal e o regresso dos sistemas de abastecimento de água e saneamento à gestão pública municipal, a que se adicionou a gestão dos resíduos. Leia agora a 2.ª parte desta Grande Entrevista.

Quando assumiu os SMS quais os principais problemas identificados no município ao nível das águas?

O ano de 2023 marcou o processo de transição e instalação dos SMS. Em 2024 estamos na fase de consolidação, desenvolvimento e crescimento quer da atividade, quer da organização. A transição de serviço privado para público foi mais complexa do que tínhamos previsto. Mas isso acabou por ser um desafio à nossa capacidade de resolução de problemas e uma prova da nossa resiliência e determinação na mudança. Em termos de problemas graves herdados da concessão temos de assinalar: redes de abastecimento de água e saneamento muito envelhecidas e em mau estado de conservação; falta de estudo de fontes alternativas de água; instalações operacionais em muito mau estado, criando más condições de trabalho para os trabalhadores; reduzido número de trabalhadores nas diferentes unidades orgânicas, quer para as tarefas que a empresa realizava, quer para as novas tarefas que uma organização tem de realizar, o que nos obrigou a recrutar cerca de 40 trabalhadores só para as atividades de água e saneamento.

Quais foram as principais intervenções dos SMS para resolver essas questões?

Tivemos de intervir de uma forma muito decidida e focados no serviço público acessível e de qualidade. Um dos nossos compromissos era baixar o preço da água, e foi o que fizemos imediatamente após a reativação dos SMS, aprovando uma redução até aos 21%. Também introduzimos a tarifa social automática, até então inexistente, que beneficiou cerca de 9000 famílias. Só estas medidas, permitiram que as famílias de Setúbal poupassem em 2023, 2,8 milhões de euros face ao que pagaram em 2022, para além de outras medidas que beneficiaram os munícipes. Recordo que durante os 25 anos de concessão, e por aplicação das regras do contrato de concessão, a tarifa fixa aumentou 67%, a tarifa variável da água aumentou 102% e a tarifa de saneamento aumentou 142%, enquanto no mesmo período o aumento dos preços no consumidor (IPC) aumentou 56%. Esta dinâmica traduziu-se na geração de lucros que a concessionária transferiu para os seus acionistas, sem benefício para os sistemas. Com a gestão pública municipal o lucro deixou de ser o objetivo de gestão, passando a ser canalizados para o investimento.

Com a gestão pública municipal o lucro deixou de ser o objetivo de gestão, passando a ser canalizados para o investimento.

Apesar desta redução de receita, ainda investimos, em 2023, perto de quatro milhões de euros em toda a atividade, dos quais mais de dois milhões foram para a água e o saneamento. Para melhorar as condições de trabalho, outra das nossas prioridades em 2023, investimos mais de 200 mil euros na melhoria dos locais de trabalho, que tinham muito problemas, com repercussão para a saúde dos trabalhadores, e que não tinham sido objeto de beneficiação durante a concessão.

A herança de 25 anos de gestão privada da água é, infelizmente, muito negativa. Foram duas décadas e meia de retrocesso, sem visão para o desenvolvimento do nosso território.

A herança de 25 anos de gestão privada da água é, infelizmente, muito negativa. Foram duas décadas e meia de retrocesso, sem visão para o desenvolvimento do nosso território. Perdemos muito. E num único ano conseguimos fazer muitas melhorias, mas sobretudo demonstrámos que a gestão pública da água é mais justa e equilibrada para as pessoas, uma vez que os resultados são todos reinvestidos no setor. O lucro deixou de ser o objetivo de gestão. Penso que esta é a única forma de garantir o acesso da água a todos, mas também de assegurar uma gestão eficiente e sustentável em termos económicos e ambientais.

Este nível de investimento vai manter-se para este ano?

Para 2024 temos previsto investir cerca de sete milhões de euros e gostávamos de poder investir mais, porque é determinante para a melhoria da qualidade de vida em Setúbal: água de qualidade a preço acessível, melhor gestão do saneamento, infraestruturas de qualidade e gestão dos resíduos mais eficaz.

Como está Setúbal no que diz respeito às perdas de água?

A herança não foi boa e temos de melhorar. Estamos a trabalhar para fazer um trabalho progressivo de substituição da rede, mas também de combate às roturas para evitar as perdas de água, introduzindo novas tecnologias e mais recursos humanos. São dois tipos de intervenções distintas, mas imprescindíveis e complementares. Para a reabilitação das redes de distribuição de água estamos a investir perto de dois milhões de euros neste ano. Vamos também investir num inovador sistema de telegestão, que deverá entrar em funcionamento ainda este ano substituindo o anterior sistema com mais de duas décadas. Temos ainda em execução um Plano de Redução de Perdas de Água.

E à qualidade da mesma?

Temos uma água de excelente qualidade, com um nível de conformidade de 99,9% de acordo com os requisitos da ERSAR. E isso para nós é fulcral manter.

E em relação ao saneamento?

Tivemos a preocupação de disciplinar os efluentes industriais no concelho, porque não havia regras neste domínio, através da aprovação, já em 2024, o Regulamento de Descargas Industriais.

Estamos também a implementar um Plano de Eliminação de Fossas no concelho, que permitirá eliminar cerca de 600 fossas, melhorando o saneamento das águas residuais das populações mais dispersas. Temos ainda em desenvolvimento um Plano de Redução de Afluências Indevidas e de Redução de Descargas sem Tratamento.
Estas iniciativas estão enquadradas no Plano Estratégico da Água, que está em desenvolvimento e que deverá estar concluído no próximo ano.

De que forma consciencializam a população para as problemáticas relacionadas com a água – poupança, escassez, etc?

Criámos a marca água 100%Setúbal para a nossa água da torneira, para que todos conheçam a excelente água que temos, que é captada em profundidade e por isso tem menos tratamento do que a água de superfície (com origem em barragens), que abastece os portugueses na maior parte do país. O conhecimento é a base para a valorização destes recursos, por isso, a nossa estratégia passa por dinamizar ações de informação e divulgação em eventos municipais.

O nosso entendimento é que a água com qualidade para consumo humano deve ser exclusivamente para isso mesmo.

De qualquer forma, o nosso entendimento é que o consumo doméstico é a grande prioridade. O consumo doméstico tem de ser responsável ou sustentável, mas não limitado. O nosso entendimento é que a água com qualidade para consumo humano deve ser exclusivamente para isso mesmo. Para outras utilizações (rega, lavagens, etc) tem de haver fontes alternativas, nomeadamente com recurso à reutilização de águas residuais tratadas ou a dessalinização, dependendo do tipo de utilização pretendida. Só que fazer esta transição não é simples, nem rápida, até porque se impõe questões de segurança, de governança, de gestão operacional, entre outras. A legislação até já existe, mas é preciso mobilizar as entidades para esta problemática e proporcionar financiamentos que ajudem as entidades a fazer essa transição.

Os SMS têm algum plano de prevenção para eventuais casos de escassez de água?

Estamos a trabalhar desde o ano passado no uso sustentável da água: informámos e sensibilizámos os maiores consumidores para a necessidade de se reduzir os consumos ou procurar alternativas (no caso das indústrias), e estamos a trabalhar em conjunto com a Câmara Municipal de Setúbal e as cinco Juntas de Freguesia para encontrarmos as melhores soluções para a rega dos jardins públicos. A nossa prioridade é, de facto o abastecimento público. Por isso, estamos a reforçar os nossos sistemas de captação para dar resposta à crescente população que o município tem vindo a registar. Com as indústrias, nomeadamente no polo da Mitrena, estamos a trabalhar a reutilização das águas residuais e mesmo a hipótese da dessalinização, numa lógica de simbioses industriais.

Neste momento, quais as principais intervenções que os SMS estão a fazer no setor da água?

Já falei da reabilitação das redes de abastecimento e do reforço na captação de água, mas também estamos a investir na rede de drenagem, na ampliação das redes de saneamento e de distribuição de água, beneficiação dos reservatórios, etc. O abastecimento de água representa a maior fatia do investimento que estamos a realizar até ao final do ano de 2024, com mais de 3,6 milhões de euros para obras.

Com a aprovação do Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030), no início deste ano, esperamos que possam surgir oportunidades de financiamento para o setor e ampliar o nível de intervenções já planeado. Aguardamos as diretrizes do novo ministério do Ambiente, sendo certo que não basta exigir e fazer planos para ficarem na gaveta. Os municípios têm de apostar neste setor, porque também é uma forma de valorizar o seu território e de reforçar o desenvolvimento sustentável, mas sem fundos que apoiem estes investimentos é muito difícil, porque estão em jogo muitos milhões de euros necessários.

Como é que os SMS esperam ver Setúbal num futuro próximo, no que diz respeito aos setores das águas e dos resíduos?

Ainda agora começámos e temos muito, muito trabalho pela frente. Estamos muito empenhados na transformação destes serviços em serviços públicos exemplares, porque o serviço público acarreta uma grande responsabilidade: trabalhar para o outro, mas numa perspetiva abrangente. Neste sentido, estamos a trabalhar de muito perto com as nossas cinco Juntas de Freguesia, organizando regularmente reuniões para resolução de problemas nos seus territórios; e estamos também com as JF a mobilizar os moradores, em reuniões por bairro/urbanização numa lógica ainda de maior proximidade. Visando envolver a comunidade na avaliação da situação, na conceção das propostas de solução e na sua solução. É um trabalho entusiasmante e altamente gratificante, cuja tradução é a melhor qualidade de vida para os setubalenses que vamos continuar a desenvolver com toda a energia e capacidade da nossa organização, nos nossos trabalhadores e dirigentes, dos SMS.

*publicado na edição 105 da Ambiente Magazine

 

Leia aqui a 1.ª parte…

Entrevista SMS (I): “A atual forma de gerir o sistema dos resíduos é uma anomalia que prejudica os municípios, as regiões e o país”