Entrevista SMS (I): “A atual forma de gerir o sistema dos resíduos é uma anomalia que prejudica os municípios, as regiões e o país”

A Ambiente Magazine entrevistou Carlos Rabaçal, presidente do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de Setúbal (SMS) e vereador da Câmara Municipal de Setúbal, que lidera a entidade desde a sua reativação, em dezembro de 2022, no seguimento de um processo e decisões que determinaram o enquadramento do termo do contrato de concessão que vigorou por 25 anos em Setúbal e o regresso dos sistemas de abastecimento de água e saneamento à gestão pública municipal, a que se adicionou a gestão dos resíduos. Leia aqui a 1ª. parte desta Grande Entrevista.

Quais os principais problemas identificados no município de Setúbal no setor dos resíduos?

O grande problema é que esta atividade é deficitária e tem de ser subsidiada pela autarquia ou deixamos de recolher os resíduos urbanos, porque as tarifas estabelecidas pelo sistema em alta são impraticáveis. E este não é um problema apenas de Setúbal, como temos vindo a verificar com a contestação de mais de duas dezenas de municípios pelo país fora. Continuamos a reciclar pouco no município, na região e no país e a enterrar muitos resíduos, desperdiçando o seu potencial, é verdade. Mas é preciso uma política de resíduos holística e realista. Não vamos mudar comportamentos pela aplicação de fórmulas matemáticas (de cálculo das tarifas) que só garantem o lucro das entidades gestoras em alta e dos operadores económicos, nem do recurso ao absurdo “imposto” criado pela tutela – a Taxa de Gestão de Resíduos. O que é pago pelo setor tem de ser reinvestido no setor, porque é preciso investir muito em sistemas inovadores e inteligentes que melhorem a eficiência da operação, em veículos adequados, na capacitação dos recursos humanos e também na sensibilização do munícipe, que tem de ser diária e multifacetada.

O serviço público de recolha de resíduos urbanos, uma atividade sem concorrência, não pode estar dependente de entidades privadas que têm como objetivo o lucro

É neste contexto que defendemos uma nova abordagem do setor dos resíduos. O serviço público de recolha de resíduos urbanos, uma atividade sem concorrência, não pode estar dependente de entidades privadas que têm como objetivo o lucro. Não se trata de uma questão ideológica, trata-se de uma questão de lógica. Temos de fazer muito em muito pouco tempo, precisamos de investir e reinvestir todo o resultado desta atividade. E precisamos de reverter a privatização dos sistemas em alta, criando um novo modelo de gestão que garanta a sustentabilidade económica e ambiental integrada dos territórios, independentemente da divisão alta e baixa.

Que nova abordagem preconiza, então, para o setor dos resíduos?

É necessário alterar a governança económica deste sistema fazendo com que o resultado da valorização dos resíduos, no todo, seja distribuído por todos: munícipes que separam, municípios que recolhem e encaminham, sistema em alta que tratam e agentes económicos que valorizam. A gestão pública dos sistemas tem de ser assegurada, retirando da cadeia de operação um agente que não corre qualquer risco – empresas privadas – que com a decisão do XIX Governo de coligação PSD-CDs, passaram a ser protegidos ao substituir a metodologia cost plus pela metodologia revenue cap. Este último modelo permitiu, em 2023, que a tarifa da Amarsul tenha aumentado 39%, enquanto os gastos aumentaram apenas 13, 6%, conforme referido no seu relatório anual.

Mesmo o concedente não assume qualquer risco com a operação, ficando todos os riscos para os municípios, o que é inaceitável. A devolução do valor gerado pelo sistema aos munícipes é a única forma de os envolver de forma permanente no processo de qualificação do sistema de resíduos em Portugal. A gestão pública integral do sistema tem de ser devolvida aos municípios, num modelo que garanta capacidade efetiva de decisão. Aliás, o regresso da gestão da água e do saneamento à esfera municipal com o fim da concessão em Setúbal deu-nos uma visão muito robusta da vantagem da gestão pública e da capacidade de captar meios e recursos para a qualificação do sistema.

A gestão pública integral do sistema tem de ser devolvida aos municípios, num modelo que garanta capacidade efetiva de decisão.

Recentemente, a ANMP e os representantes dos SGRU produziram um documento que propõe planos de emergência a curto e médio prazo envolvendo aterros, valores de contrapartida, investimentos, contrapartidas para acolhimento de instalações e remuneração da energia verde; alertando para a crise na gestão do sistema e risco de colapso, embora passe ao lado da questão de fundo da governança económica e da sua gestão pública integral.

Hoje, os munícipes produzem e separam os resíduos; os municípios recolhem, transportam e entregam; os munícipes e os municípios pagam; os sistemas em alta e os agentes económicos lucram. E isto não pode continuar.

Que análise faz às metas estabelecidas no PERSU 2030 e como poderão ser cumpridas?

As metas nacionais são decorrentes de decisões europeias e as metas dos SGRU e municípios foram definidas pela APA, e toda a gente sabe que não são de todo exequíveis, no atual modelo de organização do setor. Esta forma de gerir o sistema é uma anomalia que prejudica profundamente os municípios, as regiões e o país.

Fala-se em financiamento comunitário, mas até agora não vimos nada.

Só Setúbal precisaria de oito a 10 milhões de euros para fazer face às exigências estabelecidas no PAPERSU. A Amarsul, do grupo EGF, disse que precisaria de 38 milhões de euros, por ano. Fala-se em financiamento comunitário, mas até agora não vimos nada. Falta publicar os avisos, e fazer a abertura de processos concursais para trabalhadores e equipamentos, um processo que demorará cerca de dois anos, quando as metas entraram em vigor em janeiro de 2024. Note-se que nem os PAPERSU estão sequer aprovados!

Tem contestado as tarifas cobradas pela Amarsul aos municípios. Qual é a situação atual?

Não vamos desistir de contestar o aumento abusivo das tarifas propostas pela Amarsul, para o tratamento dos resíduos. A tarifa da Amarsul para este ano é de 77,04 euros/tonelada, o que confere um novo aumento de 27% face a 2023 (60,58€/ton), e insere-se numa série de aumentos anuais. A tarifa de 2024 representa um aumento de cerca de 300% em relação à tarifa vigente em 2019. E embora este ano tenha sido aprovado pela Assembleia Municipal um aumento da tarifa cobrada aos munícipes, na ordem dos 15%, este não cobre as necessidades da gestão dos resíduos, que vai continuar a ser deficitária. Em 2023, a autarquia de Setúbal suportou em cerca de quatro milhões de euros o serviço de tratamento dos resíduos urbanos e os SMS ficaram com um défice tarifário de um milhão de euros, para que os munícipes não fossem mais penalizados pelos valores praticados pela Amarsul. Mas esta situação é insustentável e não faz sentido. A cobertura de custos implicava um aumento de 150% na tarifa ao consumidor. A Amarsul recebe mais pela deposição em aterro, pelo que não tem interesse em promover a separação dos resíduos recicláveis e nós vemos isso no terreno. O serviço de recolha dos recicláveis tem muitas falhas, penalizando o município quer em termos de imagem, quer em termos de custos. No entanto, cada nova proposta feita pelos municípios para melhorar os serviços é sempre acompanhada de uma ameaça, por parte do acionista maioritário (EGF), de aumentar a tarifa.

Não vamos desistir de contestar o aumento abusivo das tarifas propostas pela Amarsul, para o tratamento dos resíduos.

Quais foram as principais intervenções dos SMS na área dos resíduos, desde foram reativados?

À parte a questão da Amarsul, tenho de referir a contratação de mais trabalhadores: o ano passado foram cerca de 68 novos trabalhadores e este ano andaremos perto deste número novamente. A renovação da frota, que apresentava viaturas muito antigas, foi outra das prioridades, tendo sido investido cerca de um milhão de euros na aquisição de 15 viaturas em 2023, a maioria das quais para os resíduos. A lavagem de contentores é também uma grande preocupação: o ano passado contratámos o serviço externamente e instalámos uma estação de lavagem a pressão e a quente; este ano estamos a adquirir um camião lava contentores para dar resposta às necessidades que sentimos na cidade, considerando o tipo de resíduos que temos e as temperaturas verificadas no verão. Considerando o custo benefício, a internalização deste serviço é a melhor solução. Também procedemos à renovação de 20% do parque de contentores em 2023, que estamos a reforçar em 2024 com um investimento de mais do dobro.

Desde janeiro de 2024 que é obrigatória a recolha de biorresíduos. Em que ponto está Setúbal nesta matéria?

Iniciámos a recolha dos biorresíduos em 2021, numa zona piloto e fomos alargando à população. Hoje cerca de 30% dos setubalenses estão abrangidos pela recolha de biorresíduos, sendo que temos duas modalidades: a recolha porta-a-porta em zonas de moradias e a recolha de proximidade, em contentores coletivos, em zonas mais urbanas. Em 2023, recolhemos 3489 toneladas de RU biodegradáveis (verdes e RUB). Esta não é uma abordagem simples, porque implica uma mudança de comportamentos e algumas pessoas não estão dispostas a isso. O nosso trabalho de sensibilização e informação tem de ser contínuo.

A 11 de dezembro de 2023 iniciámos a recolha seletiva porta-a-porta de resíduos alimentares no setor da restauração, na área do centro ribeirinho da cidade, incluindo a Avenida Luísa Todi e a Av. José Mourinho, e Largo da Fonte Nova e Fontaínhas, tendo a taxa de adesão dos estabelecimentos sido de 90% (cerca de 120 estabelecimentos). Até maio, foram recolhidas cerca de 181 toneladas de resíduos alimentares, contribuindo de forma significativa, quer para o incremento da taxa de recolha seletiva de biorresíduos do Município quer para o desvio do tratamento em aterro no sistema em alta evitando custos de deposição na ordem dos 19 380,00 €, quer para a melhoria da higiene pública.

Como é que os SMS chegam à população para sensibilizar para esta temática dos biorresíduos?

Criámos uma equipa de sensibilização que abrange quer o segmento doméstico, quer o da restauração, porque acreditamos numa sensibilização de proximidade, ou seja, não basta informar que temos de fazer a separação. Batemos às portas dos munícipes, explicamos o projeto, damos contentores e chaves de acesso aos contentores (no caso dos contentores coletivos) e de vez em quando voltamos à casa das pessoas, a lembrar as regras de separação, ou como agora que estamos a fazer um inquérito para perceber o que poderemos melhorar. Na restauração estamos a estudar o alargamento a outras zonas até ao final do ano.

Qual está a ser a adesão?

Há um pouco de tudo: há quem vai ter connosco e quer fazer, mesmo que ainda não esteja numa zona abrangida e temos outros casos de quem ainda não está disponível para isso. A nossa tónica é não desistir e procurar novas formas de envolver a população neste problema que é a redução dos quantitativos de resíduos e correta separação. É comum os munícipes perguntarem porque não têm uma compensação pelo seu trabalho de separação dos resíduos, quer sejam biorresíduos, quer sejam recicláveis.

Que outros resíduos preocupam os SMS para terem a correta deposição e recolha?

Estamos a lançar uma nova rede de oleões, com um total de 69 contentores inovadores, todos com sensores de enchimento e um sistema que permite autonomia energética dos equipamentos através da energia solar. Entram em funcionamento em junho.

Os têxteis é outro dos fluxos que nos preocupa e esperamos em breve ter uma solução para disciplinar e gerir eficazmente este fluxo de resíduos urbanos. No entanto, a nossa preocupação são os biorresíduos, porque representam uma fatia muito elevados dos RU e porque exige muita atenção, da nossa parte, quer ao nível da sensibilização, quer ao nível da recolha.

*entrevista publicada na edição 105 da Ambiente Magazine