A Ambiente Magazine esteve à conversa com Marta Neves, Presidente da Valorsul, entidade que completa este ano, a 16 de setembro, os 30 anos de existência na gestão, tratamento e valorização de resíduos urbanos na zona de Lisboa e região Oeste de Portugal. Depois de nos fazer um balanço dos 30 anos de vida da entidade em Portugal, numa primeira parte da entrevista já publicada, e de defender um plano mais realista para se atingirem as metas de 2030, numa segunda parte, Marta Neves aborda a temática das novas tecnologias e da inovação no setor. Leia aqui a 3.ª e última parte desta Grande Entrevista.
O setor tem tido a capacidade de acompanhar a inovação da tecnologia e da digitalização? O que falta fazer cá em Portugal, face a outros exemplos na Europa?
Nessa parte não comparamos mal. Na recolha talvez possamos evoluir um pouco mais, mas no tratamento comparamos bem a nível europeu e em termos de tecnologia, temos várias tecnologias – digestão anaeróbia, valorização energética, triagem com recurso a separação automática – e estamos a introduzir a parte da digitalização e robótica /otimização, que é uma das apostas da Valorsul. Este é um setor que pode beneficiar muito das novas formas e aplicações da inteligência artificial.
Nesta vertente da inovação, o que pretende ser o “Open Innovation 2024”? Qual a importância da ligação da Valorsul à academia, startups e empresas do setor?
Praticamente é passar das palavras à ação. Acredito que a inovação é uma área fundamental no setor dos resíduos. E este é o próximo salto no setor – a capacidade de melhorar os nossos processos internos e a forma como realizamos determinadas tarefas, isto associado também à formação dos nossos quadros.
este é o próximo salto no setor – a capacidade de melhorar os nossos processos internos e a forma como realizamos determinadas tarefas, isto associado também à formação dos nossos quadros
Neste programa de aceleração Open Innovation pegámos em três matérias da Valorsul que entendemos que podem melhorar com processos inovadores e, desse ponto de vista, demos o desafio à sociedade para nos trazer soluções.
A primeira matéria diz respeito à procura de novas soluções digitais, automáticas e baseadas em Inteligência Artificial para aumentar a eficiência e contribuir para aumentar as taxas de reciclagem e um sistema de gestão de resíduos mais sustentável.
No segundo desafio procuramos soluções para triagem de recicláveis, incluindo novas formas de caracterizar resíduos de embalagens e contaminação e novas soluções para aumentar a eficiência e pureza, através da separação automatizada de resíduos de embalagens.
Por último, gostaríamos de maximizar o potencial das escórias de incineração, nomeadamente o desenvolvimento de aplicações mais nobres para o agregado, aumentar a eficiência de recuperação de metais ferrosos e não ferrosos e melhorar o desempenho do processo de tratamento existente.
Criámos uma área de inovação na Valorsul exatamente com o objetivo de procurar soluções, não só do lado de recolha e do tratamento, mas também do lado da reutilização, ou seja, na nova entrada do resíduo no mercado.
Para este programa de inovação temos 150 mil euros para os três melhores projetos e acredito que isto traga benefícios tanto para a nossa empresa como para as entidades candidatas, com soluções inovadoras que acabarão por ser implementadas. Os vencedores vão ser conhecidos no próximo dia 25 de setembro, num evento comemorativo dos 30 Anos da Valorsul.
E a Valorsul recebeu o estatuto da empresa Inovadora COTEC. Como se chega aqui e qual o significado desta distinção?
Começa com a introdução de novos modelos de gestão como a Metodologia LEAN na nossa operação, que vamos estender a todas as nossas áreas. É uma técnica de gestão de fábrica para identificar problemas, trazer soluções, acompanhar o dia-a-dia e garantir que gera ideias, processos e comunicação. Esta cultura está já presente na Valorsul devido a algum inconformismo com o dia-a-dia e o não aceitar que aquilo que estou a fazer é suficiente e quero fazer sempre melhor.
No ano passado, tivemos vários investimentos na área da inovação, como é o caso da sensorização de um conjunto importante de ecopontos, que nos permitiu melhorar as nossas rotas dinâmicas. A sensorização significa que o sistema verifica em que estado está o enchimento do ecoponto e permite gerir melhor quando temos de ir recolher. É um dado adicional para melhorar o sistema de rotas da recolha seletiva. Temos também o Recycleye, um braço robótico com inteligência artificial que está a ser implementado na triagem e que visa contribuir para a otimização da mesma. É um projeto que estamos a olhar com bastante atenção para aplicações futuras.
E todos estes projetos e esta forma de estar acabam por contribuir para este prémio e para a forma como vemos o dia-a-dia e o futuro da Valorsul.
Para este ano, quais são os objetivos da empresa?
Há quatro anos, apresentei ao regulador ERSAR o que planeava fazer até 2025 e, por consequência, os investimentos planeados para este ano. Investimentos estes que passam sobretudo por substituição, ou seja, por uma política de manutenção da qualidade das infraestruturas e do bem-estar dos trabalhadores.
não é fácil ser gestor neste setor. Trata-se de um setor fortemente regulamentado, sujeito a desafios crescentes
No entanto, não é fácil ser gestor neste setor. Trata-se de um setor fortemente regulamentado, sujeito a desafios crescentes e em que existem muitas entidades envolvidas e, na maioria dos casos, com interesses conflituantes.
A título de exemplo: a Valorsul entrou a 1 de julho deste ano em regime de mercado na venda de energia elétrica. Isto traz um problema porque não somos, em rigor, um comercializador de energia; vendemos energia porque é um subproduto da nossa atividade. Nós produzimos energia através da queima de resíduos na central de valorização energética, produzimos energia que tiramos do biogás dos aterros e produzimos energia através da gestão anaeróbia da nossa valorização orgânica. Atualmente, estar em mercado quer dizer que há horas que estou a vender a preço negativo. Neste momento, esta importante fonte de receita está ao sabor dos valores de mercado e, na nossa atividade, não podemos optar pela hora em que entregamos ou não energia na rede. A central é de laboração contínua. No passado foi tomada a decisão política de que a central valorizaria energeticamente a incineração dos resíduos como forma de financiamento do setor. Esta era uma fonte de financiamento importante que, entretanto, terminou e não foram criadas soluções alternativas, sendo esta quebra de receita suportada pela tarifa municipal, com impacto significativo na mesma.
Como é que a Valorsul vê futuras parcerias e sinergias com outras entidades, municípios ou empresas internacionais?
Na Valorsul acreditamos que o nosso crescimento e melhor serviço deve ser realizado em parceria. E temos vários exemplos. Com os nossos municípios realizamos webinars trimestrais, por exemplo, em que convidamos as autarquias a discutir matérias de melhores práticas. Fazemos também sessões de formação, como por exemplo de compostagem doméstica e comunitária.
Depois, com os outros Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos (SGRU), temos algumas partilhas. Existe uma partilha com a Valorlis, que atualmente está a ser repensada, uma vez que, por decisão da entidade licenciadora, foi tomada a decisão de a terminar parcialmente, em minha opinião, ao arrepio do que são os princípios subjacentes do PERSU 2030. Mesmo assim, na prática, está a ser discutida uma partilha de capacidade de tratamento de biorresíduos, acontecendo o mesmo com a Amarsul. Além disso, recebemos resíduos da Tratolixo, de acordo com capacidade da nossa central de valorização energética.
No âmbito da inovação, temos várias parcerias com empresas nacionais e internacionais, academia e, claro, as entidades gestoras, sendo o Recycleye um exemplo disso.
Como podemos ir mais longe na valorização de resíduos?
Aqui é onde a inovação tem um papel determinante. Mas os processos de inovação nem sempre são fáceis. Temos quantidades muito significativas de resíduos e qualquer solução tem de estar preparada para uma dimensão como a da Valorsul.
Há várias parcerias que estamos a ver nesta matéria, mas esbarramos sempre no tema quantidade, pois, no setor dos resíduos, são importantes a dimensão e a maturidade da tecnologia subjacente. A Valorsul é uma empresa com dimensão importante e uma nova tecnologia de valorização tem de ter a capacidade de absorver uma quantidade significativa de resíduos. Como vamos, por exemplo, fazer a reintrodução nos processos produtivos das quantidades que vão aumentando de plástico e cartão?
A indústria tem um papel vital no tipo de materiais que introduz no mercado, que devem ser de origem reciclável ou com o potencial de reutilização. O que ainda não acontece hoje e, infelizmente, em quantidades expressivas. Nesta matéria, queremos também fazer parte da solução e olhamos atentamente para novas soluções, nomeadamente com a academia.
Como gostava de ver o setor dos resíduos em Portugal daqui a 10 anos?
A cumprir as metas. É importante termos um caminho que nos permita, numa base realista, definir o que queremos fazer e quando. É importante focar quais são as decisões que temos de tomar para que algumas áreas comecem a agir já.
Gostava que daqui a 10 anos houvesse uma consciência ambiental generalizada, pelo que considero determinante a educação ambiental que estamos a tentar incorporar
Gostava que daqui a 10 anos houvesse uma consciência ambiental generalizada, pelo que considero determinante a educação ambiental que estamos a tentar incorporar. No entanto, continuamos a colocar no mercado embalagens que não são recicláveis – uma percentagem significativa de embalagens que chegam às nossas instalações não têm qualquer destino.
Há várias áreas que têm de ser abordadas de forma mais intensa, como a prevenção e a reutilização. Por outro lado, ainda temos resíduos que nos chegam com imensa contaminação porque algumas pessoas separam nos contentores errados.
A este propósito, a Valorsul lançou a Linha da Reciclagem, uma iniciativa do Grupo EGF – um número gratuito para o qual qualquer cidadão pode ligar se tiver uma dúvida ou até uma reclamação. Esta linha tem recebido muitas dúvidas sobre o que fazer com as embalagens. É ótimo perceber que este projeto tem um potencial enorme de fazer a diferença e ajudar a população a tomar as melhores decisões de reciclagem.
Por Diana Fonseca. Fotos de Raquel Wise.
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Entrevista (II): “Temos de ser ambiciosos nas metas a alcançar”