A Ambiente Magazine esteve à conversa com Marta Neves, Presidente da Comissão Executiva da Valorsul, entidade que completa este ano, a 16 de setembro, 30 anos de existência na gestão, tratamento e valorização de resíduos urbanos na zona de Lisboa e região Oeste de Portugal. Esta é a 1ª parte desta Grande Entrevista, na qual a gestora faz um balanço destas três décadas de trabalho e dos maiores desafios que a Valorsul enfrentou.
Que balanço faz dos 30 anos de atividade da Valorsul?
A Valorsul é um reflexo da gestão de resíduos em Portugal e da grande viragem que aconteceu neste setor desde o início do século. Representa o que de melhor se fez em Portugal nas últimas três décadas. O objetivo do projeto inicial da Valorsul era, antes de mais, eliminar o recurso a lixeiras e, depois, criar um sistema de tratamento e valorização de resíduos urbanos ao nível dos mais evoluídos da Europa. A Central de Valorização Energética, construída em 1999, em São João da Talha, e que é a maior do país, foi um passo importante no tratamento dos resíduos da Área Metropolitana de Lisboa, até porque desempenha um papel fundamental no desvio de resíduos de aterro.
Em paralelo, avançou a triagem, que teve um grande impulso com a construção dos dois centros de triagem: em Lisboa, no Lumiar, e no Cadaval, no Oeste. Ambas as instalações têm tido evoluções tecnológicas significativas, fruto de investimento considerável e aposta na inovação. E outro passo crucial foi a Valorização Orgânica dos restos alimentares, em que a Valorsul foi a primeira entidade a realizar um tratamento de resíduos orgânicos exclusivamente seletivos em Portugal, com produção de energia elétrica.
No final do ano estaremos a prestar serviço de recolha seletiva de embalagens a cerca de 1 Milhão de pessoas.
Por isso, a nossa evolução é a evolução do tratamento de resíduos, mas também da recolha seletiva. Apenas recolhíamos no Oeste, mas agora já fazemos a recolha seletiva na Amadora e, mais recentemente, dos SIMAR de Loures e Odivelas. Desta forma, temos acompanhado a necessidade dos nossos municípios. No final do ano estaremos a prestar serviço de recolha seletiva de embalagens a cerca de 1 Milhão de pessoas. E às nossas instalações chegam diariamente os resíduos para tratar de 1,6 Milhões. É, sem dúvida, a empresa mais relevante na área dos resíduos urbanos em Portugal.
Quais os maiores desafios que a empresa enfrentou nestes anos?
O mais difícil foi, certamente, a construção das principais infraestruturas porque são sempre momentos complicados. Ninguém quer infraestruturas de resíduos na sua zona, e isso traz um problema para a gestão de resíduos. Por exemplo, no caso dos ecopontos: alguém diz “faltam ecopontos na minha zona”, estes são instalados e depois vem outra pessoa e diz “eu não quero ecopontos em frente à minha casa”.
No entanto, existem hoje tecnologias que permitem evitar as desvantagens associadas a estas infraestruturas.
Este tema será novamente uma questão no futuro, porque a Valorsul, para cumprir as metas estabelecidas, terá de construir novas infraestruturas.
A fusão com a Resioeste, em 2010, foi também determinante na atividade da Valorsul, unindo duas empresas numa só, melhorando processos e a própria operação. Esta fusão permitiu à Valorsul iniciar a atividade da recolha seletiva, que até então não existia na Valorsul.
Outra fase importante foi a da privatização. A Valorsul deixou de ser uma entidade pública para passar a ser uma entidade maioritariamente privada. No entanto, os municípios continuam muito presentes na nossa atividade, e nem podia ser de outra forma, pois eles são simultaneamente nossos acionistas e nossos clientes.
E, claro, a pandemia foi outro desafio. Mesmo assim, nesta empresa ninguém colocou em causa qual era o seu objetivo e foi muito interessante ver esse espírito de missão de todos os que aqui trabalham.
Uma vez que o país, em 2024, continua a crescer na produção de resíduos, este é também um tema que teremos de abordar do ponto de vista político, porque a prevenção de resíduos é determinante, assim como o desafio de tornar cada vez mais circulares os processos de produção e garantir que os resíduos são, de facto, matérias-primas absorvidas pela cadeia de valor.
Como é que a Valorsul consegue consolidar a sua missão com a opinião da população sobre estas infraestruturas de resíduos?
Por um lado, temos a educação ambiental, que é um ponto importante da nossa atividade. Realizamos várias visitas às nossas infraestruturas e, recentemente, fizemos um Dia de Portas Abertas à comunidade. É incrível a reação das pessoas quando estão perante a realidade da quantidade de resíduos que tratamos.
Mas esta relação com a comunidade tem de estar associada a uma forte comunicação, ou seja, informar melhor as pessoas que habitam na zona onde as infraestruturas são criadas. Tem de haver um envolvimento efetivo da população, sendo importante o papel do município nesta matéria, como também o da Valorsul, que deve conseguir transmitir a importância da infraestrutura e o real impacto desta. A constituição de uma comissão de acompanhamento de uma nova instalação, que inclui cidadãos e associações locais, ajuda a desmistificar o impacto das instalações de tratamento de resíduos.
Tem de haver um envolvimento efetivo da população, sendo importante o papel do município nesta matéria, como também o da Valorsul
Já existe uma previsão de orçamento para a construção destas novas infraestruturas?
A Valorsul representa cerca de 20% do total de resíduos produzidos a nível nacional, por isso tem um importante papel e as metas são muito ambiciosas. Temos de alcançar uma deposição em aterro, até 2035, inferior a 10%. No caso da Valorsul, quando a central está em pleno funcionamento, atingimos valores inferiores a 2% de deposição em aterro.
Mas temos ainda os objetivos de preparação para a reutilização e reciclagem, cuja meta é 65%. E isso, sim, é um desafio gigante, pois envolve não só a recolha seletiva de embalagens, mas também de biorresíduos (estes últimos são da responsabilidade do município, enquanto a recolha seletiva de trifluxo é da competência da Valorsul na maioria dos municípios da sua área de intervenção). Isto implica triplicar o que realizamos atualmente até 2030, sendo um crescimento colossal e que não depende só da Valorsul.
Não ajuda o atual aumento da produção dos resíduos e o facto de ainda haver muitas pessoas que não fazem separação de resíduos para reciclagem e que não encaram isto como um dever de cidadania. Há uma série de mitos sobre os resíduos, que estão baseados em falta de informação e conduzem a desculpas para não cumprirmos o nosso papel enquanto cidadãos, que é o de separar os resíduos que saem da nossa porta.
Adicionalmente, perante estas metas, temos de preparar as infraestruturas para o futuro. Nós temos um plano, o PAPERSU, para cumprir o PERSU2030, apresentado em dezembro de 2023, e que aponta para investimentos na ordem dos 400 milhões de euros, sendo uma parte importante associada à nova valorização orgânica dos biorresíduos recolhidos separadamente.
Neste momento, ainda temos capacidade na nossa estação de tratamento de valorização orgânica da Amadora, temos partilhas planeadas com a Valorlis e com a Amarsul e também uma potencial partilha com a Tratolixo.
Temos de garantir que os planos dos municípios estão perfeitamente alinhados com os nossos, uma vez que construir uma infraestrutura destas não demora menos do que dois anos
Não queremos construir uma infraestrutura que fique ociosa, por isso é tão importante o casamento entre o nosso trabalho e o dos municípios. Temos de garantir que os planos dos municípios estão perfeitamente alinhados com os nossos, uma vez que construir uma infraestrutura destas não demora menos do que dois anos. E tudo começa por encontrar um terreno num município que aceite uma valorização orgânica, o que não é um tema simples. No nosso caso, o principal motor para a necessidade da nova valorização orgânica será, sem dúvida, Lisboa, que tem um potencial de crescimento na área de recolha de biorresíduos muito grande e que, no fundo, faz a diferença entre o que temos e o que teremos de ter.
Necessitamos, ainda, de uma nova estação de triagem, porque a do Lumiar está a esgotar-se rapidamente
Necessitamos, ainda, de uma nova estação de triagem, porque a do Lumiar está a esgotar-se rapidamente, e transportar para o Cadaval é um custo demasiado elevado, que não se justifica, quer para a Valorsul, quer para os municípios. Este é um caso em que a proximidade da Área Metropolitana de Lisboa faz sentido.
Há também o potencial, que não incluímos como um investimento a efetivar, uma vez que se trata de uma opção política, de termos a quarta linha da central de valorização energética da Valorsul a funcionar, que poderá vir a representar uma solução para o cumprimento da meta de desvio de aterro, não para a Valorsul (para a nossa atividade chegam as atuais três linhas), mas para os restantes sistemas e municípios da região de Lisboa e Vale do Tejo.
Mas todos estes saltos não se dão com facilidade: são mudanças de comportamento que implicam fortes investimentos e que, sabemo-lo, são caros.
Por Diana Fonseca. Fotos de Raquel Wise.