#ENEG2021: Há respostas para as dificuldades na Gestão da Água, mas tudo depende da ambição do setor
“Dificuldades na Gestão da Água e a Emergência Climática: Mudanças Necessárias” foi o grande tema da edição 2021 do ENEG (Encontro Nacional de Entidades Gestoras de Água e Saneamento) que decorreu entre os dias 23 e 26 de novembro no Tivoli Marina Vilamoura – Centro de Congressos do Algarve. Este título serviu ainda de mote para o Grande Debate que juntou durante uma manhã várias entidades, empresas e universidades para debater a urgência de agir, sendo esta a década primordial para garantir um setor resiliente e próspero.
Depois de vários debates e de partilhas de opinião, a pergunta que se coloca é: “Ainda vamos a tempo?”. Rui Godinho, presidente da APDA (Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas), é perentório: “Obviamente que ainda vamos a tempo e a última coisa que podemos fazer é desistir”. O objetivo é encontrar as “soluções adequadas” para se conseguir fazer face a um problema global: “E quando se verifica os efeitos que a escassez de água vai tendo sobre as economias, as vidas das pessoas, o não acesso em zonas tão críticas, é que, ao contrário de outros desastres naturais, as secas tendem a tornar-se mais frequentes e mais prolongadas”. Tal significa que os efeitos se vão “consolidando” sobre as regiões, populações ou atividades económicas. No caso de Portugal, em particular, o presidente da APDA considera que a preocupação já é e deve ser suficientemente “aguda” levando à “reflexão” e à “intervenção” no concreto para que se possa “atalhar”, nomeadamente, com o “avanço da desertificação” no Sul, envolvendo já o “Algarve”, o “Alentejo” e o “Centro Interior” com “reflexos negativos” nas principais bacias hidrográficas do país, designadamente, as bacias internacionais – “Douro, Tejo e Guadiana” -, mas também nas nacionais – “Sado e Mira” – e começando, também, a ter reflexos nas bacias importantes do Centro, como sendo o “Mondego”. Para Rui Godinho, a questão das águas subterrâneas deve ser uma área em que a atenção deve ser redobrada:”Portugal é rico e tem o maior aquífero – Península de Setúbal – da Europa, mas outros aquíferos complementares a este já estão perante uma fortíssima pressão”. Outra questão passa pela distribuição dos grandes consumidores em Portugal: “A agricultura (70%), os restantes são as indústrias e o consumo urbano”. Isto significa que em determinadas áreas, em particular, com a agricultura, não se pode continuar com os processos de produção intensivos: “Medidas têm de ser tomadas”, atenta.
Quando se questiona se o tempo é realmente suficiente para os desafios que o planeta tem pela frente, Manuela Moreira da Silva, professora da Universidade do Algarve, também parece concordar com Rui Godinho: “Estamos em tempos de não perder tempo”. Para além do momento atual apelar para que todos “estejamos alinhados”, o mesmo também confirma que, nas últimas décadas, foram “desenvolvidas tecnologias desenfreadamente” e, muita da qual, “não acrescenta qualidade à vida”. Aliás, torna-se, cada vez mais evidente, que a solução para os problemas da humanidade não se esgota naquilo que é humano: “Nós temos que pactuar com a natureza”. Para a docente o momento é, essencialmente, de “reflexão absoluta”, com a tecnologia a ter que ser suportada por um “profundo conhecimento científico” e por uma “recolha de dados” que permita “criar plataformas inteligentes” de gestão: “Não há outra forma de fazermos frente aos atuais padrões de consumo”. E além da água, há o oxigénio: “A espécie humana e todos os animais que colonizam este planeta não vivem sem água e sem oxigénio”. Portanto: “Nós precisamos da tecnologia e de todas as entidades gestoras, mas precisamos da natureza e sem ela não temos oxigénio”, reforça. A docente da Universidade do Algarve não deixou ainda de sublinhar a importância de se “inspirar” os “novos profissionais para que se desenvolva neles o “desassossego” pela inovação: “Parece-me a mim que isso é possível com espírito multidisciplinar e no mesmo patamar de humildade”, afinca.
Quando se equaciona a questão da água é fundamental responder a três questões: “Para quê?; Para quem?; e Como?”. Isto significa que não se deve dar respostas sem procurar é a perspetiva que existe sobre as perguntas. Quem o diz é Miguel Freitas, professor da Universidade do Algarve, que olha para água, através desta “tripla” perspetiva, destacando ainda que, além de ser um, um “fator de produção”, o recurso água é também um “fator de coesão”. E tão importante como ter uma “visão setorial” é ter também uma “visão territorial”, afirma, acrescentando que, nesta última, falta debate e conversa: “Há uma necessidade absoluta de, em cada em território, encontrarem-se novas formas institucionais de nos confrontarmos porque há muito conflito”. Ainda assim, “creio que dialogando encontramos soluções”, acrescenta. Também no regadio a perspetiva deve assentar nas três questões – Para quê?; Para quem?; e Como? – sendo que, na visão do docente, olha-se para a área (regadio) como um espaço onde se introduz investimento para se transformar: “Quando olhamos para o espaço regadio temos que encarar que aquele investimento é para transformar o território e também a paisagem”. Ainda assim, é fundamental olhar para as outras dimensões, sendo que há um instrumento em falta, como é o caso da “avaliação”, do “mapeamento” e da “valoração dos serviços dos ecossistemas”, refere, assinalando que a “água é um fator de vida” e, portanto, logo aí há um problema nos regadios: “ Não tenho a perspetiva dos serviços dos ecossistemas e não conheço a forma como eles funcionam”. Outra questão é “olhar para o solo”, enquanto “maior reservatório” de água: “Se trabalharmos o solo na perspetiva dos serviços dos ecossistemas eu tenho a capacidade de armazenar água e a capacidade para ter água disponível”. Para culminar, Miguel Freitas atenta na importância da tecnologia: “Apesar de, hoje, o agricultor ser já capaz de a utilizar, os modelos de produção são muito funcionais e muito orientados para a produção”. Contudo, o docente reconhece que já há “novos modelos” e que já estão no terreno em fase de “experimentação”. O professor da Universidade do Algarve, acredita que os “agricultores” estão preparados para os desafios, sublinhando que a “agricultura está a dar passos no sentido de resolver as questões do consumo de água olhando para o recurso numa “perspetiva multifuncional e dos serviços dos ecossistemas”. Num cenário onde “há respostas” para os desafios, Miguel Freitas apela à necessidade de “todos os setores trabalharem em conjunto”, de forma a “encontrar soluções para os territórios”.
[blockquote style=”2″]Temos de o alargar ao domínio das disponibilidades da água[/blockquote]
Num mundo marcado por tantas fragilidades, Eduardo Marques, presidente da AEPSA (Associação das Empresas Portuguesas para o Sector do Ambiente), alerta que para a questão de que não se podem dar como adquirido certos valores que existem, sendo a água um bom exemplo disso: “Em Portugal, já não damos qualquer valor a água porque é só abrir a torneira: temos água em qualidade, com qualidade, em quantidade e muito barata”. E tão importante nesta equação é “estarmos preparados sobre a escassez de água efetiva”, isto é “conscientes de que este bem adquirido, pode deixar de o ser”, podendo mesmo haver “alterações” que introduzem poluições significativas nos ecossistemas. A primeira mensagem que Eduardo Marques quis passar é de “consciencialização” sobre o recurso água e, ao mesmo tempo, de “resiliência” num setor que, claramente, necessita de ser bem “gerido” para que se possa ter o “dado adquirido” por mais tempo.
Pegando na “emergência climática” do título que norteia o grande debate, Filipe Duarte Santos, presidente do CNADS (Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável), faz uma contextualização da realidade e do consequente problema das alterações climáticas: “A humanidade tem um orçamento de carbono que pode gastar sem ultrapassar os 1,5 graus celsius e, tal como em todos, esse orçamento é limitado”. Logo, “se a humanidade consumir tal orçamento durante a década derradeira”, a temperatura não só não rondará os “1,5 graus”, como atingirá os “3 graus”, alerta. Portanto, quando se diz que a década é crítica, Filipe Duarte Santos não parece estar mais de acordo: “No ano 2020, as emissões de CO2 decresceram 7% quando comparadas com 2019; em 2021, tendem chegar aos níveis de 2019”. Os desafios são claros e acresce que “a humanidade” nunca foi confrontada desta forma, precisa. Já a relação das alterações climáticas com a água, aquilo que se tem verificado, de acordo com o presidente do CNADS, é uma “redução da precipitação média anual”, o que significa que “a quantidade de água disponível da atmosfera está a decrescer”. Este é um problema que não só afeta Portugal, como também muitas regiões do mundo: “E o grave é que a precipitação quando ocorre tem tendência a ocorrer em grandes quantidades”. A questão é: “Como resolver tal desafio”. O que Filipe Duarte Santos defende é que se tem de ir mais a “montante” do debate, tendo a perfeita noção de que o desenvolvimento sustentável integra três componentes: a social, a económica e a ambiental. E a convicção do responsável é de que a componente económica é vital para que se conciliam entre si: “O debate sobre a gestão é importante, mas temos de o alargar ao domínio das disponibilidades da água”. E o caminho, segundo Filipe Duarte Santos, é encontrar “novas disponibilidades de água”, algo que depende muito do “modelo económico” de cada país.
Também Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), parece concordar com a mesma visão, justificando-a ao partilhar duas óbvias questões. A primeira é que, só na região do Algarve, verifica-se uma “contínua diminuição da precipitação média” e o mais preocupante é ainda observar-se de forma científica uma “tendência global no país de uma diminuição da precipitação na casa dos 50% a partir da segunda metade deste século”. A segunda é que a APA está a ultimar um estudo sobre as “disponibilidade hídricas” no país: “Pela primeira vez, coloca-se em cima da mesa a água disponível por bacia, por sub-bacia, apresentando coeficientes de escassez”. Apesar de reconhecer que se trata de um “estudo polémico”, o presidente da APA considera que “o debate se vai abrir setor a setor” e, no final do dia, “o estudo será melhor porque vai incorporar as diferentes preocupações dos diferentes setores”. Aliás, este é o estudo que determinará as opções de política, afinca. Para o presidente da APA, o país vive numa “situação complexa” e um tema que está a ser colocado em “cima da mesa” é “perceber se será necessário regar algum Montado de Sobro ou se fará mais sentido trabalhar na migração para norte” da mesma espécie: “Ela naturalmente não ocorrerá”. E um exemplo que expressa bem isso é que as alterações climáticas são como um “fogo florestal”, isto é “as espécies naturais não têm tempo para a migração natural do ecossistema para latitudes mais aprazíveis”, sendo, para tal, necessário “fazer algum tipo engenharia natura”. Nuno Lacasta atenta na importância de todos estarem preparados para as “difíceis discussões” e para as “medidas de gestão”, lamentando que “quando a seca aperta parece que andamos a esconder-nos uns dos outros do ponto de vista de quem capta primeiro”. Além disso, os riscos face aos tempos que aí vêm passam também pela “vizinha” Espanha: “É uma competição pela utilização de recursos”, atenta. Uma apelo que o presidente da APA quis partilhar é de precisamente “não nos focarmos exclusivamente na gestão da oferta: é isso que sabemos fazer e a alternativa é complicada porque todos os estudos apontam para disponibilidades cada vez menores”.
[blockquote style=”2″]Os rios podem ser usados como instrumento de poder político se existir escassez de água[/blockquote]
José Furtado, presidente da Águas de Portugal, quis aproveitar o momento para, primeiramente, sublinhar a “maturidade” e a “resiliência” do setor face a um último ano muito severo, não deixando, contudo, de reconhecer que encontros como o ENEG são espaços muito importantes: “Todos somos poucos para os desafios que temos”. Voltando ao setor, o presidente da Águas de Portugal constata que o “cluster água” é, entre os vários setores industriais, o grande “bastião” de competências: “Todos (os outros) passam pelo setor (da água) e todos reconhecemos que é um grande centro de competências nacionais”. E o facto de se tratar de um setor que é “palco de grandes transformações”, José Furtado constata que “os problemas não são de hoje e os desafios também não são novos”. No que a projeções diz respeito, o presidente da Águas de Portugal partilha uma visão otimista: “Será uma situação em que a água que corre nas nossas casas surja a partir das mais diversas origens; uma grande parte da água utilizada em casa será utilizada para algumas utilizações domésticas; a água residual tratada será integralmente reciclada para novas funcionalidades; as lamas serão uma matéria prima altamente disputada; a energia verde vai alimentar em exclusivo o ciclo urbano da água; e a presença do capital natural dita todos os comportamentos”. Sendo “muito claro” para todos o rumo estratégico e, tratando-se de uma “visão partilhada”, José Furtado apela para que se “evolua da visão para a ambição”.
Já António Costa e Silva, presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), parece não ter dúvidas sobre a realidade complexa que a humanidade se confronta: “Quanto mais penso, mais tenho a certeza que a civilização humana está numa encruzilhada”. E a grande culpa tem que ver com o atual modelo de desenvolvimento económico e social que é “predador dos recursos do planeta e que devasta a uma escala sem precedentes”, sendo que, também,cria mais desigualdades: “Estamos num ambiente altamente tóxico”. No entanto, há uma esperança: “A espécie humana é criativa e já passamos por crises da mesma ordem de amplitudes – “há 70 mil anos a erupção do vulcão Toba, na Ásia, onde a espécie humana ficou reduzida a 2500” – sendo que, nesta crise, há respostas”. Mas, primeiramente, é importante sublinhar que o “divórcio” da espécie humana com a natureza tem de terminar: “Temos de voltar a olhar para a natureza de forma diferente”. Para aqueles que dizem que Portugal é “muito pequeno, onde as emissões de CO2 são baixas e que os esforços todos para fazer frente às alterações climáticas são um exagero”, António Costa e Silva atenta que “somos dos países do mundo que mais fustigado podemos vir a ser”, alertando que o “sistema costeiro português foi estável durante quase três mil anos – tinha um comportamento geológico regressivo, havia tendência do litoral migrar para o oceano – mas, agora, verifica-se que dos 950 quilómetros do litoral, 25% já estão em erosão”. O que agrava a situação é que, segundo o presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR, é “na faixa litoral que está concentrada 75% da população portuguesa” e, é onde “o PIB português depende de 85%”. Portanto: “Se não reorientarmos o nosso planeamento, vamos ter um país entalado entre o que se passa no Litoral e a desertificação crescente do Interior”, alerta. No que à visão estratégica do PRR diz respeito, António Costa e Silva afirma que “há uma aposta fortíssima em tudo o que são infraestruturas ambientais do país”; uma “aposta fortíssima em tudo o que são infraestruturas hídricas”; “uma aposta fortíssima em tudo o que são sistemas de deteção precoce de perdas de água”; e uma “aposta fortíssima em usar tudo o que é inovação e desenvolvimento tecnológico para gerimos os nossos aquíferos e as nossa bacias hidrográficas”. E face a esta visão, conclui-se que Portugal tem problemas seríssimos: “Usamos por ano cerca de 40% da disponibilidade água que existe, algo que nos coloca no limite de stresse hídrico em três décadas”. Em termos geopolíticos, António Costa e Silva partilha uma grande preocupação com o facto de “50% dos nosso recurso serem do exterior, nomeadamente, das três grandes bacias hidrográficas” de Espanha: “Os rios podem ser usados como instrumento de poder político se existir escassez de água”, alerta. Por isso, “se o país não aumentar a sua disponibilidade, se não utilizar a dessalinização, se não apostar na economia circular na água, nas águas residuais, na recuperação de tudo o que é possível, se não reflorestar de forma consistente todo o seu território e se não olhar para tudo aquilo que pode evitar a desertificação, vamos ter problemas sérios no futuro”, alerta. Ainda assim, o responsável não tem dúvidas de que as soluções existem: “Há um caminho que depende de nós transformar esse caminho”, remata.
Organizado bienalmente pela APDA (Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas), a edição 2021 do ENEG , teve o maior número de participantes de sempre. Entre participantes e expositores, foram registados, nesta edição, 988 credenciados.