É preciso clarificar o destino da TGR e arranjar infraestruturas alternativas aos aterros
Retirar dois milhões de toneladas de resíduos dos aterros na próxima década é, talvez, um dos maiores desafios que o setor dos resíduos tem pela frente. Numa ótica de hierarquia de gestão, não se estaria a pensar em construir novos aterros. Mas, até que haja infraestruturas alternativas que permitam valorizar tudo aquilo que são resíduos que possam ser recolhidos respetivamente e valorizados, os aterros serão necessários.
O Seminário “Waste 2 Business – O Papel e o futuro dos Aterros”, promovido esta quinta-feira, 6 de maio, pela APEMETA (Associação Portuguesa de Empresas de Tecnologias Ambientais), juntou vários especialistas do setor dos resíduos que centraram o debate nas preocupações de “mudança de paradigma” na gestão dos resíduos urbanos, nomeadamente a Taxa Geral de Resíduos (TGR) que pode representar, até 2025, “100 milhões de euros” e cujo destino é “incerto”.
Para dar início ao debate, a moderadora Susete Dias, docente do Instituto Superior Técnico (IST) da Universidade de Lisboa, constatou que, “em alternativa ao aterro, será inevitável implementar a valorização energética em unidades de proximidade que possam facilitar a utilização deste tipo de infraestruturas”. No entanto, levanta-se a dúvida, até porque “não sabemos o custo desta valorização energética”.
“Até 2025, eu não vejo outra solução senão a deposição em aterro”, começou por dizer Paulo Praça, diretor-geral da Associação para a Gestão de Resíduos (ESGRA), destacando que, por mais esforços que se façam, citando o “investimento em curso” de “6,5 milhões de euros na recolha seletiva”, nada será suficiente: “Vamos chegar ao final da linha e vamos continuar a ter uma quantidade de fração”. O responsável volta a 2006, lembrando que foi lançado um aviso que permitiu fazer um projeto de recolha de óleos alimentares usados. “Mas nunca mais houve avisos de TGR: vemos avisos para todos os gostos e financiamento para várias atividades, mas para o setor em si, vemos pouco”, lamenta. É importante “financiar pequenas entidades”, inclusive Juntas de Freguesia, mas também é preciso que “todos estejam com uma estratégia para convergir para o mesmo: se cada Junta começa a fazer à sua maneira, é impossível gerir”. A monitorização e os encontros que deixou de ser promovida de forma regular: “Fazemos avaliações anuais, mas, no fundo, é para dar um retrato do ano anterior. Estamos sempre a trabalhar com base em retratos e no passado”. No entanto, torna-se importante falar do futuro, tomando “um conjunto de decisões centrais que, naturalmente, vamos respeitar sejam elas quais forem. O importante é que se decidam”. Paulo Praça lembrou também a preocupação cada vez mais vincada de uma “parlamentarização do setor: sempre que sai uma nova medida dos resíduos, essa vai para o campo político ou para a Assembleia da República. E o facto do setor não ter esclarecido o Governo ou os vários agentes, muitas vezes, essas decisões estão em linha com o que defendemos e muitas vezes ficam a meio e indeterminadas”. Por isso, “é preciso clarificar e descomplicar, permitindo que façamos o nosso trabalho”, defende.
Quem parece ter a mesma visão do problema é Anália Torres, diretora da Valorsul, constatando que existe uma “pulverização de decisões”, algo que “não é claramente benéfico” e “nem vai no sentido de serem decisões concertadas e integradas”, que contribuam para um resultado efetivo em campo: “Daqui a dez anos, estamos a levantar as mesmas questões”. Portugal não parte da mesma linha de partida de outros países, obrigando-o, segundo a dirigente, a se “organizar”, “estabilizar” e ir “em frente” com uma “decisão possível” e consistente: “Há uma necessidade urgente do encaminhamento correto da fração resto. É tempo de tomar decisões fundamentadas”, sublinha.
[blockquote style=”2″]O Interior não é igual ao Litoral e as regiões urbanas têm problemas que o Interior não tem[/blockquote]
Fernando Leite, administrador da Lipor, começou por lembrar que, no final do ano passado, houve discussão e orientações por parte do Governo sobre quais seriam os valores da TGR e sobre que frações iria impactar este valor: “Tudo aquilo que tem vindo plasmado nos planos estratégicos, temos de seguir. Nós discutimos até à altura em que aparece o decreto e, a partir daí, temos de o cumprir”, Mas, neste caso, cumprir é “verificar quais são os efeitos que essas medidas estão a ter sobre empresas” públicas e privadas: “Gostaria que a ERSAR fizesse uma análise da situação económico-financeira dos sistemas desde 2000 até 2021”. Das soluções apontadas, o gestor reiterou a importância de se discutir sobre aquilo que são as ideias para o futuro: “A solução que temos para atingir as metas é implementar as recolhas ao máximo e o mais proximamente possível. É, efetivamente, acabar com a altíssima percentagem de recolha indiferenciada ou com os contentores de proximidade”. Neste último item, a Lipor e outras três entidades, fez, há cerca de um ano e meio, um levantamento sobre a qualidade do resíduo indiferenciado em todos os concelhos, concluindo que “40% dos resíduos eram tipicamente recicláveis e de muito boa qualidade e 15% dos resíduos que estavam no contentor indiferenciado não eram urbanos”. E porquê? “Temos um sistema de deposição e de recolha de proximidade com contentor aberto 24h sobre 24 horas. Ninguém, nessa circunstância, é impulsionado a fazer uma melhor triagem” dos resíduos. Fernando Leite garante que “as nossas fábricas trabalham tanto melhor quanto melhor for a qualidade do material” recebido, acrescentando também que existe a possibilidade de criação de “sinergias” entre as autarquias e os sistemas em alta. “Mas, aquilo que foi feito, para além de declarações, nunca foi estimulado”. Mais uma vez, o “planeamento” é essencial para se alcançar as metas: “Falem conosco, com aqueles que estão no terreno e com quem está a recolher e tratar, e as soluções vão ser encontradas”, afiança.
Outra “chamada de atenção” são as notícias que vêm do centro da Europa, afirma Fernando Leite, destacando as “elevadas TGR” aplicadas, como é o caso dos Países Baixos, e onde começam a surgir as taxas de carbono: “Quando nós tivermos que exportar os nossos resíduos para aquilo que eles dizem que é a subcapacidade, preparem-se, não para o custo da logística do material, mas sim para as taxas que vamos ter de pagar”. E o princípio da auto-suficiência não deveria ser um caminho para Portugal? “O país tem que ser autosuficiente para resolver um problema em que é capaz de o resolver. Já deu provas disso: quando se atacaram os aterros, atacou-se e eliminou-se”. A isto, junta-se ainda a “massa crítica: temos colegas que são capazes de nos ajudar a resolver estes problemas”, diz.
Ao nível dos biorresíduos, Fernando Leite constata a falta de planeamento e clareza nas medidas: “Há estratégias para o biometano? Há subsidiação ou política fiscal? Ou o biometano vai pagar as mesmas taxas que paga os combustíveis fósseis?”. Este é um exemplo que necessita de ter respostas: “Neste momento, temos uma central de compostagem esgotada. A curto-prazo esta questão vai terminar porque aquilo que é o crescimento de biorresiduos, a nível Área Metropolitana do Porto, vai fazer com que essa unidade não chegue e iremos tratar de uma segunda”, refere.
Também o PAYT (Pay As You Throw), modelo de preço de uso para o descarte de resíduos sólidos urbanos implementado pelo Governo, foi uma das problemáticas referidas por Fernando Leite: “Muitas pessoas não sabem o que significa e “muitas até acreditam que não pagarão nada para o sistemas”, Mas, para que se faça a recolha, só existem duas fontes de receita: “aquilo que se cobra ao cidadão, a tarifa, ou é a parte de um subsídio”, diz. O administrador da Lipor acredita que, em Portugal, vai ser “muito fácil” de “desatrelar” a tarifa dos resíduos da fatura da água: “As pessoas desconhecem que, nas regiões rurais, a maioria só utiliza água para os consumos de alimentação. E quando vamos ver aquilo que é consumo de água, têm um baixo consumo”. Por outro lado, “quando fazemos, depois, o cálculo de qual a tarifa de resíduos que as pessoas têm que pagar, as mesmas querem pagar juntamente com a água porque estão a entrar num sistema que não é beneficiado”, declara. O setor dos resíduos em Portugal enfrenta assim uma “diversidade de situações” que, na ótica de Fernando Leite, carecem de organização e de clareza: “Precisamos de muita gente a pensar na realidade do país: o Interior não é igual ao Litoral e as regiões urbanas têm problemas que o Interior não tem”, sucinta.
[blockquote style=”2″]Forte, lenta, pesada e disfuncional burocracia[/blockquote]
Do lado dos Açores, esteve Carlos Botelho, diretor-geral da MUSAMI (Operações Municipais do Ambiente EIM), que avalia a TGR como uma “taxa ilegal”. Para o responsável, “as taxas têm que ter algo em contrapartida, ou seja, um regulamento que diga para que elas servem”. Algo que não acontece com a TGR: “Não há essa regulamentação! Não basta dizer que reverte para o setor”, declara, lamentando que a taxa foi criada porque também nos outros países, mas, em Portugal, não se percorreram os passos todos”, alerta.
Há ainda um “ponto de interrogação” quanto à política para as embalagens: “Grande parte vai ser vendida a granel e vai deixar de existir uma parte significativa de embalagens de utilização única e isso vai transformar o nosso consumo. Mas que características têm? Ninguém sabe: os próprios embaladores estão a fazer estudos”, alerta
Sobre os princípios de autossuficiência e proximidade, Carlos Botelho refere devem ser tidos em conta numa política de tratamento de resíduos: “Cada vez mais, aumentar os transportes nos resíduos é um disparate que vai ter obrigatoriamente taxas de carbono e outras inventadas. Temos que impedir isso”. Um dos “fluxos fracos” que Portugal tem é “não ter transporte ferroviário em condições de transportar mercadorias”, refere, acrescentando que “grande parte dos fluxos de mercadorias internas na partilha de instalações seria simplificado se pudessem ser feitos de comboio: não temos nada disso”. Aquilo que o país tem é, segundo o diretor-geral da MUSAMI, um conjunto de setores “desacertados” (transportes, saúde, economia, indústria, meio rural e urbano) e que “não estão a dar resposta a uma solução inteligente”. Apesar das “recolhas seletivas implementadas em zonas do país de proximidade trazerem maior qualidade e materiais mais limpos”, Carlos Botelho atenta que “não é viável acreditar que 800 mil toneladas de resíduos orgânicos que estavam no indiferenciado e que vão para aterro vão desaparecer de um dia para outro: não vão!”. Ainda assim, isto não é só uma solução industrial: “Passa também pelo comportamento das pessoas”, refere, destacando a importância de se “incentivar a população a fazer as coisas que devem ser feitas”. No que se refere às soluções, o responsável lamenta ainda a “forte, lenta, pesada e disfuncional burocracia” existente.
De volta à valorização energética, e questionado pela moderadora se será fácil encontrar municípios com disponibilidade para acolher aterros, Ricardo Castro, gerente de fábrica da Tratolixo, deixa uma nota: “Em 2021, se em vez de colocarmos os resíduos em aterro e os enviássemos para uma valorização energética, teríamos uma poupança de 3,5 milhões de euros. Em 20 anos, essa poupança seria de 70 milhões de euros”. Assim, “se o financiamento da valorização energética é um problema, uma vez que não há previsão de fundos, talvez possa ser financiada pela própria diferença da TGR”, declara. Ricardo Castro lembrou ainda para a importância de não se esquecer que, nas centrais de triagem, por muito que se aumente a recolha seletiva, também se aumenta os rejeitados: “Andam entre os 30 e 40%”. Portanto, “esse material vai para aterro com enorme potencial de valorização energética”, vinca.
Em termos de localização, segundo o gerente de fábrica da Tratolixo, são vários os presidentes de Câmara dispostos a ter uma valorização energética em vez de um aterro: “Se temos a valorização energética nos centros das cidades mais ricas da Europa, não vejo porque não poderíamos ter aqui nos arrabaldes de alguns municípios”, declara.