A burocracia e a complexidade dos processos de desclassificação de resíduos; os custos elevados associados a auditorias e ao sistema de gestão de processos são sempre sobrecustos que a indústria tenta de alguma forma evitar; a falta de conjugação de esforços para apoio à desclassificação de resíduos, isto é, cada atividade ou indústria tenta, por si só, resolver o seu problema; a existência de economias paralelas que vão fazendo recolha e muitos resíduos são processados de forma inadequada, inviabilizando a sua utilização enquanto recurso; ou o facto de Portugal não ter um laboratório nacional que permita a caracterização dos resíduos produzidos, são alguns dos entraves que impossibilitam a desclassificação de resíduos.
Estas barreiras foram detetadas no estudo “Avaliação do Potencial de Desclassificação dos Resíduos”, promovido pela Associação Smart Waste Portugal (ASWP), no âmbito do projeto “Be Smart – Be Circular”. As conclusões deste estudo que tem o objetivo de promover uma melhor compreensão do contexto nacional e europeu ao nível dos mecanismos de desclassificação de resíduos, bem como identificar as prioridades nacionais no que respeita a atividades económicas com maior potencial de desclassificação de resíduos, serão apresentadas na tarde desta quinta-feira, 5 de maio, na “Conferência Smart Growth: O papel da Economia Circular”, realizada no Auditório do Museu da Fundação de Serralves.
Em entrevista à Ambiente Magazine, Aires Pereira, presidente do Conselho de Administração da ASWP, começa, desde logo, por contextualizar a desclassificação de resíduos, sublinhando o seu potencial na transição para uma economia circular: “A desclassificação dos resíduos visa fundamentalmente a alteração àquilo que é e que está definido na lei como o ‘estatuto do resíduo’, ou seja, uma substância que é produto de um processo produtivo industrial ou não”. E o que se pretende? “Através de metodologias adequadas e processos, pretende-se obter a desclassificação desse mesmo resíduos, ou seja, passando esse resíduo para um recurso e que possa ser, novamente, utilizado como matéria-prima secundária para a produção de novos produtos: isto é a essência da economia circular”, refere.
Tudo o que tem que ver com “desclassificação de resíduos” está regulamentado no Decreto-Lei n.º 102-D/2020 e, com base neste decreto-lei, a ASWP procurou desenvolver um estudo que apontasse e identificasse atividade económicas com maior potencial para a desclassificação dos resíduos.
[blockquote style=”1″]E quais são essas atividades? [/blockquote]
Com base neste estudo, Aires Pereira aponta, desde logo, os resíduos de construção e demolição: “Uma atividade que impacta grandemente esta questão da produção de resíduos e que tem um potencial enorme do ponto de vista da sua realização”. A área dos químicos e das fibras sintéticas e artificiais, dos produtos farmacêuticos, das borrachas e plásticos foram também identificadas com grande potencial: “São setores onde a taxa de valorização está abaixo dos 80% e com maior peso na economia nesta área de produto”. A fabricação de têxteis, a indústria do vestuário do couro e dos produtos de couro são já “setores-chave” no âmbito da economia e, com “enorme potencial” de desclassificação para sua reutilização, refere.
Justifica-se, portanto, o potencial de desclassificação de resíduos no sentido em que visa “prolongar a vida dos produtos que extraímos da natureza enquanto matérias virgens ou enquanto subprodutos da atividade industrial” e, assim, dar a oportunidade (a esses mesmos produtos) de continuarem naquilo que a se designa o “ciclo de vida dos produtos”, podendo dar origem a novos produtos: “Tal, permite reduzir o potencial de deposição em aterro e, ao mesmo tempo, em sítios não adequadas para o tratamento final destes resíduos”, sucinta.
[blockquote style=”1″]E Portugal? [/blockquote]
Apesar dos entraves já identificados no estudo, o presidente do Conselho de Administração da ASWP partilha alguns “bons exemplos” onde já se começa a trabalhar e que, nesse sentido, revelam grande potencial de transformação. Exemplo disso é a área dos subprodutos dos solos e das rochas, como nas escombreiras ou utilização das pedreiras: “Há muitos subprodutos que hoje já são utilizados para outro fim que não o da extração em si”. As “sucatas de ferro, aço e alumínio”, tal como indica Aires Pereira, têm um “potencial enorme” e já existe um “sistema de recolha” que permite a “utilização em quantidades suficientes para sua reutilização”. O “casco do vidro”, isto é, todo o vidro que é reciclado no “sistema de recolha nacional” ou os “plásticos”, são também bons exemplos identificados: “Hoje, já muito plástico é recuperado e reintroduzido na produção do plástico dito reciclado”. Outra área que também se tem assistido a grandes transformações é nas matérias que provém da borracha, essencialmente nos derivados de pneus usados: “Estes são, portanto, setores que têm vindo a adaptar-se à reutilização e à desclassificação dos reduzidos, permitindo na sua utilização como recurso numa outra linha de produção”.
[blockquote style=”1″]Exemplos europeus com potencial de serem replicados [/blockquote]
Há pelo menos três “casos de sucesso” na Europa que Aires Pereira quis destacar nesta entrevista, no sentido de provar a viabilidade da desclassificação de resíduos, bem como o potencial que pode ser aproveitado em Portugal.
Na Áustria, existe o projeto “Geocycle Recycling Centre” integra a implementação do conceito de “coprocessamento”, ou seja, reciclagem simultânea de materiais minerais e recuperação de energia através de um único processo industrial (fabrico de cimento). A Noruega diferencia-se com o “ChemCycling”, um projeto que consiste na “reciclagem química para transformar resíduos de plástico em subprodutos ou matérias-primas secundárias”. E, finalmente, destaca-se o “Resortecs”, desenvolvido na Bélgica, “um sistema inovador com base em fios de costuras desmontáveis por calor e rebites, possibilitando a desmontagem automatizada e a reciclagem dos produtos têxteis numa escala industrial”.
Apesar do potencial de serem replicados em Portugal, Aires Pereira não deixar de lamentar a “concorrência” que existe no país e que tem que ver com “preço muito baixo” para a deposição de resíduos em aterro: “Estimulamos pouco a economia circular porque é relativamente barato depositar resíduos em aterro”. Acresce que, no setor da construção, existe matéria-prima onde a sua extração é muito barata, e onde se incorpora poucos resíduos resultantes de demolições nos novos processos construtivos de novos edifícios: “A legislação deve aparte no sentido de criar obrigatoriedade de incorporação de materiais reciclados até nas obras públicas”.
[blockquote style=”1″]O que se segue?[/blockquote]
Apresentadas e identificadas as áreas económicas com grande potencial de desclassificação de resíduos, a ASWP selecionou um conjunto de ações que pretende implementar e levá-las para o debate. Primeiramente, destaca-se a importância de se criar, em Portugal, uma bolsa de resíduos, semelhante à Bolsa de Resíduos da Catalunha: “Pode ser um exemplo a adotar, enquanto plataforma agregadora e catalisadora da criação de um mercado de resíduos”, refere Aires Pereira. Assim sendo, no âmbito do mesmo projeto doo estudo, a ASWP encontra-se a desenvolver, em parceria com a APA (Agência Portuguesa do Ambiente), a Plataforma MyWaste, “uma plataforma online para alojamento de uma bolsa nacional de subprodutos para valorização, que consiste numa rede Business to Business (B2B) de partilha de desperdícios pós-consumo ou pós-produção e outros subprodutos indesejáveis passíveis de serem valorizados”. Estas plataformas eletrónicas contribuem para uma “maior circularidade e para a criação de um mercado de resíduos”, sendo simultaneamente “parte ativa na promoção da desclassificação e na divulgação de informação afeta a este tópico”, sustenta o responsável. Outro ponto que este estudo tornou relevante é a importância de se “evitar a grande variabilidade de critérios específicos e uma falta de harmonização regulamentar entre Estados-Membros”. E, apesar do contexto legal e regulamentar ter evoluído em Portugal, no sentido de simplificar e agilizar os procedimentos, este estudo demonstra que há ainda diversos desafios a ultrapassar. Tão importante, tal como corrobora Aires Pereira, é que estudo demonstra que a desclassificação de resíduos constitui uma “oportunidade de inovação e de cooperação” entre diversas empresas e indústrias.