Como tornar as cidades em aliadas na resposta a crises de seca?
Gastamos mais água nas cidades? É possível medir o impacto das cidades no consumo de água? Enquanto polos de concentração de grande número de pessoas, como tornar as cidades num aliado na resposta à seca que Portugal tem enfrentado? Estas questões foram levantadas a especialistas com o intuito de se perceber o caminho que as cidades devem seguir para tornar o consumo de água mais sustentável.
Atualmente, segundo dados da ERSAR – Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, são captados cerca de 820 milhões de m3/ano de água superficiais e subterrâneas para abastecer a população, representando 13% do total do que se consome em Portugal nos diversos setores. Para Jaime Melo Baptista, presidente da LIS-Water – Lisbon International Centre for Water, é na sensibilização da população para a necessidade de redução de consumos que se deve centrar a atuação: “Temos de utilizar incentivos económicos como uma melhor estruturação dos escalões dos tarifários. Temos de aumentar a eficiência hídrica dos serviços, reduzindo as perdas no processo de produção e nos sistemas de distribuição, bem como aumentar a eficiência hídrica das instalações prediais”. E, em situações excecionais, “temos de estabelecer a proibição de usos não indispensáveis, como lavagem de ruas, logradouros e contentores, rega de jardins e espaços verdes, novos enchimentos de piscinas e fontes decorativas”, acrescenta. Enquanto polos de concentração de grande número de pessoas, o especialista considera que as cidades beneficiam de “bons serviços e vastas infraestruturas”, sendo que são um “bom público-alvo para campanhas de sensibilização” e para “gerarem movimentos de cidadania”.
No entender de Rúben Rocha, coordenador de Água da ANP|WWF (World Wildlife Fund), o impacto das cidades na água deve ser medido tendo em conta “o consumo direto de água para beber e cozinhar, higiene pessoal e da habitação, encher a piscina ou regar jardins” e o “consumo virtual, que corresponde à água usada na produção de bens que consumimos”. Atenuar o consumo de água exige o “tempo necessário para regenerar as fontes naturais de água”, algo que não acompanha os níveis de consumo dos dias de hoje: “A água é um bem limitado para a nossa escala de tempo e não é sustentável nem correto continuarmos a consumir em excesso um bem que é escasso”, afirma, alertando que “a taxação do uso excessivo não é eficaz, pois quem pode pagar continua a usar excessivamente”. Desta forma, “é importante apostar em programas de educação cívica” e, ao mesmo tempo, que “haja um compromisso por parte da população” para a redução do desperdício: “Por exemplo, não deixar a torneira a correr desnecessariamente, enquanto lavamos os dentes, tomamos banho ou ensaboamos as mãos, ou reaproveitar água para regar plantas”. Tornar as cidades como aliadas na resposta a crises de seca cada vez mais frequentes implica a capacidade de influenciar a transição para uma “agricultura mais moderna e sustentável”, dando preferência a produtos locais mais amigos da natureza: “A agricultura é responsável por 75% da água consumida em Portugal, para a produção de bens consumidos nas grandes cidades”. Além disso, deve-se apostar mais na “modernização das infraestruturas de abastecimento de água, melhorar o tratamento de águas residuais e reaproveitar a água das chuvas nas atividades que não estejam ligadas ao consumo humano”, refere. Tão importante é a adoção de “práticas de construções urbanas e de equipamentos domésticos mais ecoeficientes, escolha de plantas mais resistentes e menos consumidoras de água para jardins urbanos e sistemas de drenagem de águas residuais que favorecem o seu aproveitamento”, precisa.
Avaliar o impacto das cidades no consumo de águas nas cidades implica “conhecimento dos recursos hídricos existentes”, ou seja, “Quais são as fontes de abastecimento? Qual a quantidade e qualidade da água que está armazenada nos mananciais superficiais e subterrâneos?” Trata-se de uma questão de “monitorização para se poder avaliar o impacto”, refere Maria José Roxo, professora catedrática, constatando, contudo, que “a maior utilização e consumo é na agricultura e nos processos de transformação industrial”. É com “medidas estruturais e com cidadãos informados e conscientes” que se pode atenuar o consumo de água nos centros urbanos: “Importa que haja uma mudança na forma como se constrói, por exemplo, a rede de abastecimento de água nos edifícios, fazendo uma reutilização da água, com diferenciação no que é consumo humano e para outros usos (casa de banho, entre outros)”. Tão importante é “reduzir consumos”, utilizando “águas residuais tratadas”, como, por exemplo, nas regas de espaços verdes ou limpeza de ruas. As cidades têm de ser “produtoras de água” e não apenas consumidoras: “As cidades necessitam de ter áreas de receção de águas pluviais que podem ser utilizadas como lagos artificiais em áreas de lazer, o que diminuiria o efeito de grandes chuvadas, que causam frequentemente inundações, e aumentaria, igualmente, a biodiversidade nas cidades”. Outra medida passa por “aumentar as áreas de infiltração das águas da chuva”, com a criação de infraestruturas verdes, além de recuperarem técnicas tradicionais de utilização: “O solo funciona como uma esponja ao absorver a água e deixar que ela se infiltre, função vital para termos água doce subterrânea (aquíferos). A tecnologia atual, pode permitir ter cidades muito mais harmoniosas e produtos de bens de ecossistema (oxigénio, água, biodiversidade)”, sublinha.
Investimentos (in)suficientes?
Na lógica de reverter o atual quadro e tornar as cidades como produtoras de água, Jaime Melo Baptista dá nota que, nos últimos 25 anos, foram investidos no setor 13 mil milhões de euros: “Só no abastecimento de água, dispomos de um enorme património de 119.000 km de condutas, 250 captações superficiais, 5.900 captações subterrâneas, 220 estações de tratamento, 2.400 estações elevatórias e 8.900 reservatórios”. Os cidadãos têm, por isso, que estar “cientes a serem agentes importantes para o uso racional dessas infraestruturas”, defende. O caminho para que as cidades passem a ter um consumo de água mais sustentável passa pela “evolução gradual da circularidade” nas infraestruturas utilizadas para a prestação de serviços: “As infraestruturas, que atualmente são tradicionalmente lineares, em que se capta água a montante e cada vez em locais mais distantes, e descarregam águas residuais a jusante, cada vez em locais mais distantes, devem evoluir gradualmente para maior circularidade através da integração de novas origens de água”. São exemplos “o aproveitamento de águas usadas, reutilizando-as após tratamento para a agricultura e para a rega de campos de golfe, e de águas pluviais e com a introdução da dessalinização, quando técnica e financeiramente viável”, precisa.
Apesar de ainda estarem “aquém” do que é preciso fazer, Rúben Rocha reconhece que têm sido feitos investimentos na “modernização da agricultura”, nas “infraestruturas de abastecimento”, na “melhoria dos sistemas de tratamento de água residuais visando a sua reutilização” ou na “promoção de movimentos cívicos para o uso racional e sustentável da água”. Mas aquela que tem sido a “reação institucional” para dar resposta a cenários de crise é ainda “superficial” e responde essencialmente a “situações pontuais de grande escassez hídrica”, com respostas de curto prazo: “Precisamos são de soluções a longo prazo que contribuam para o restauro ecológico dos ecossistemas fluviais”. Neste âmbito, o especialista defende que, a título individual, o caminho a ser seguido é o da “redução do consumo per capita”, alterando “pequenos hábitos diários”, dando “preferência a bens e serviços mais sustentáveis, e participar ativamente nos processos de políticas públicas relacionadas com a gestão dos recursos hídricos”. Já do ponto de vista institucional, deve-se “apostar no tratamento e reaproveitamento das águas residuais e da água das chuvas para fins que não sejam de consumo humano” e “promover iniciativas sociais para o uso sustentável dos recursos hídricos ao longo do ano e não como resposta a momentos de stress hídrico”.
Também Maria José Roxo reconhece o trabalho que vários municípios estão a fazer na “reconversão de áreas verdes ribeirinhas”, na “diminuição de fugas na rede de distribuição”, bem como a “utilizar já águas residuais tratadas para diversos fins”. Desta forma, importa “replicar os bons exemplos” e divulgar as boas iniciativas: “Ter dados concretos e resultados visíveis no terreno é a melhor maneira de convencer para a mudança de comportamento”. A professora catedrática considera que as cidades têm que ser vistas como “sistemas dinâmicos” e, desta forma, todas as ações devem ser pensadas com base na “salvaguarda dos recursos naturais”, numa estratégia de desenvolvimento sustentável. Por essa razão, o planeamento urbano não deve ser apenas um “exercício de equacionar as atividades num dado espaço territorial”, mas deve ter em conta todos os elementos que o constituem, naturais e antrópicos: “As soluções existem! Importa implementar as que melhor se adaptem a cada cidade: esse é o segredo”, remata.
*Este artigo foi incluído na edição 96 da Ambiente Magazine