Carlos Martins: “Queremos que os próximos três anos sejam marcados por uma grande dinâmica de renovação de redes” (I)

Com um percurso de mais de 40 anos no setor da água, aceitou agora o desafio de assumir a presidência do Conselho de Administração de uma das empresas mais históricas de Portugal: a EPAL – Empresa Portuguesa das Águas Livres, SA. Assumindo-se como um otimista por natureza, mas consciente do desafio que tem em mãos, Carlos Martins, ocupa este novo cargo, apenas, desde o passado dia 17 de abril de 2023.

Neste mandato, o foco é fazer jus à história centenária da EPAL, agregando mais valor à empresa, que serve 35 municípios (incluindo Lisboa) e que, tendo a gestão delegada da Águas do Vale do Tejo, tem hoje o desafio de responder por mais 70 municípios que atuam na área do abastecimento de água e do saneamento, nas Beiras e Alentejo.

O gestor esteve à conversa com a Ambiente Magazine, naquela que é a primeira entrevista de Carlos Martins, enquanto presidente do Conselho de Administração da EPAL, a um órgão de comunicação social. No entanto, esta entrevista também assinala outro momento: a entrevista da edição 100 da nossa revista. E isso tem algo de especial: afinal, não é todos os dias que se fala do papel de uma empresa com mais de 155 anos de história.

  • O que esteve na origem de aceitar o desafio para ocupar o cargo de Presidente do Conselho de Administração da EPAL?

Desafio é a palavra certa para materializar aquilo que me fez aceitar este cargo. Estamos perante uma empresa que é histórica em Portugal e reconhecida por muita da inovação no setor, pela capacidade técnica e pela dinâmica em integrar trazer as melhores práticas. Tudo isto acaba por justificar ter aceite o desafio.

Apesar deste percurso de 155 anos que a EPAL já leva, haverá aqui ainda matéria suficiente para introduzir melhorias, práticas mais robustas, promover medidas de organização para a transição digital e para uma operação num quadro de maior descarbonização e na circularidade, desafios com que hoje as nossas sociedades se confrontam, quer decorrentes das alterações climáticas, quer dos nossos compromissos internacionais, nomeadamente do Acordo de Paris.

Estar com esta equipa é, só por si, altamente prestigiante e muito motivador.

  • Em 1868, nasce a antecessora da EPAL, a Companhia das Águas de Lisboa. Como era o abastecimento de água antes de surgir esta companhia?

O que fez nascer esta Companhia foi a necessidade de garantir o abastecimento de água à cidade de Lisboa num contexto marcado, já na altura, pela escassez e seguindo as melhores práticas das capitais europeias. Toda a Área Metropolitana de Lisboa norte tem poucos recursos endógenos em termos de água, mas já à época se identificavam grandes limitações: a água ainda chegava a partir do Aqueduto das Águas Livres, que pese embora seja uma obra muito emblemática, os caudais que trazia para Lisboa eram reduzidos e, por isso, insuficientes para a dinâmica da cidade. Portanto, em boa hora foi identificado esse problema e com a criação da Companhia das Águas de Lisboa através de uma concessão, foi possível encontrar respostas para as necessidades da época. E, desde aí, com vicissitudes mais ou menos justificadas, por causa das guerras, problemas económicos e dinâmicas que resultaram da nossa entrada na União Europeia, a empresa foi tendo grandes alterações de natureza institucional e técnica. Uma história de sucesso.

  • Em 1974, ano em que terminou a concessão da Companhia das Águas de Lisboa, surge a EPAL. Como define, hoje, a atuação da empresa?

A EPAL é a empresa que, traduz um sentimento de empresa-líder para o setor. Ainda assim, [é] uma empresa que não deixa de ter desafios para vencer. Desde logo por vivermos um período que, em termos de origens de água, é marcado pela questão das alterações climáticas. Em termos de procura, a empresa está numa Área Metropolitana com uma grande dinâmica, mesmo com as pessoas a gerir de uma forma mais eficiente, a ideia que há sobre o futuro é que essa procura irá manter-se em crescimento. A EPAL que serve 35 municípios (incluindo Lisboa) tem hoje o desafio de responder por mais 70 municípios que estão integrados na Águas do Vale do Tejo, não só com abastecimento de água, mas também com o saneamento: um desafio que, sendo relativamente recente na história da empresa, é muito ambicioso porque traz um contexto e uma envolvente muito diferentes daquilo que foi o seu passado. Esta equipa está confrontada com a integração de diferentes culturas empresariais. Atuava num território que era muito concentrado do ponto de vista de povoamento e passou a atuar num território mais disperso e com uma geografia muito distinta. Chegando aqui, o que desejaríamos é que, neste contexto de número elevado de municípios que hoje dependem, em larga medida, do desempenho da EPAL, consigamos encontrar respostas para que esse desempenho seja eficaz e gerido com grande eficiência.

  • Como é articulada a operação da EPAL com a Águas de Portugal e o Município de Lisboa e os restantes municípios servidos pela empresa?

O histórico com o Município de Lisboa é já muito longo e está muito estruturado ao longo destes 155 anos. No caso dos Municípios da Área Metropolitana de Lisboa, também já há mais de 50 anos que mantemos uma relação relativamente forte. Diria que é já um processo muito automático de relacionamento. O que é novo é a gestão delegada do sistema da Águas do Vale do Tejo: por um lado, porque tem as duas vertentes – abastecimento de água e saneamento – e, por outro lado, porque conhece a integração de quatro anteriores empresas (Águas do Zêzere e Côa (AA+SAR), Água do Centro (AA+SAR), Águas do Norte Alentejano (AA+SAR) e  Águas do Centro Alentejo (AA+SAR) , com quatros culturas diferentes, geografias diferentes, territórios muito distintos e diversa complexidade. Diria que esse desafio tem um histórico bom e queremos ainda melhorar esse relacionamento o mais possível, de forma a estabelecermos uma verdadeira parceria entre instituições que têm de concorrer para o sucesso de políticas públicas do setor da água.

  • Qual é o atual estado da arte do setor da água em Lisboa? E nos restantes territórios servidos pela EPAL?

Em Lisboa, tenho a ideia de uma situação em que hoje a principal preocupação é a renovação das redes: o serviço tem a sua história, está universalizado e em todo o território. Mas não escondo e é conhecido que, nas últimas duas décadas, o investimento nas infraestruturas principais, nos grandes adutores em “Alta” e nos adutores que servem a rede em “Baixa” da cidade foram reduzidos e merecem seguramente, nos próximos anos, fortes investimentos de renovação. É também esse trabalho que estamos a fazer, nuns casos elaborando os projetos, noutros promovendo as obras mais urgentes. Queremos que os próximos três anos sejam marcados por uma grande dinâmica de renovação de redes e levar mais longe a substituição de condutas, porque há infraestruturas sem substituições que, numa ótica de adequada gestão de ativos oferecem alguma preocupação. Temos uma gestão de ativos muito dinâmica e que nos vai alertando para esses riscos. Mas, ainda assim, tudo aponta para a necessidade de fortes investimentos nos próximos anos e é isso que vamos procurar fazer.

  • Ao nível de perdas de água, qual tem sido a resposta da EPAL?

A EPAL tem uma história de algum sucesso nos últimos anos, sendo uma das entidades gestoras que apresenta os melhores resultados. Mas as vitórias do passado não devem ser motivo para acreditarmos que se materializam sistematicamente em vitórias futuras. Há indícios decorrentes do facto de termos redes a necessitar de urgente substituição que nos deixam apreensivos, nomeadamente, de que essa trajetória de sucesso possa, a qualquer momento, vir a trazer-nos preocupações. Portanto, o que queremos é que o trabalho que foi feito, nomeadamente o desenvolvimento de algumas técnicas próprias e patenteadas pela própria EPAL, possa ser utilizado com grande sucesso na cidade e colocar essas ferramentas ao serviço de outros municípios que ainda estão longe de ter valores que são desejáveis e que em Portugal gostaria que fossem sempre inferiores a 20%, algo que, infelizmente, ainda não é o panorama do nosso setor.

  • Como tem evoluído o setor em Lisboa, quando comparado com outras cidades de Portugal?

Considero que há muitas Entidades Gestoras que têm vindo a realizar um belíssimo trabalho: no universo dos nossos mais de 300 municípios, cerca de 30% das Entidades Gestoras têm performance e padrões muito eficientes. A maioria dos portugueses é, hoje, servida por Entidades Gestoras com elevado desempenho. Em termos territoriais, temos um conjunto muito vasto de municípios de pequena dimensão que ainda estão longe de ter performances adequadas aos tempos que hoje atravessamos. Há aqui ainda muito trabalho de colaboração, parceria e evolução para o setor para que as boas práticas sejam generalizadas a todo o território. Mas diria que uma boa parte da população portuguesa tem níveis de serviços bastante interessantes e as dificuldades que ainda evidenciamos no setor decorrem de contextos muito próprios. Não é por falta de vontade dos municípios, mas sim por limitações financeiras e técnicas.

  • É dito por muitos especialistas que este é um setor muito envelhecido. Como tem Lisboa combatido o envelhecimento do setor? E como se conquista o tão desejado “sangue novo” para a área?  Quais têm sido as respostas da EPAL?

É um tema que não deixa de ser preocupante, embora não o coloque num nível tão negativo. Não escondo tratar-se de um tema com alguma complexidade e a EPAL tem tentado superá-lo, colocando a Academia das Águas Livres a formar quadros. Ainda assim, sabemos que essa formação está aquém daquilo que é desejável, sendo essa uma das áreas da empresa onde vamos fazer um grande esforço de dinamização, estando já em curso a empreitada para a nova Academia das Águas Livres nas Amoreiras. Não vamos esperar que a obra termine para começar a fazer aquilo que é o trabalho de seleção de formadores, de parcerias com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, Institutos de Tecnologias, Escolas de Formação Profissional e Universidades, consoante aquilo que é o nosso desejo para contribuir no sentido de ultrapassar essas dificuldades técnicas identificadas. E vamos ver se as políticas de recursos humanos no setor empresarial do Estado permitirão manter esses quadros dentro da nossa estrutura, mas isso só o futuro o poderá dizer.  A retenção de profissionais especializados num mercado de ambiente de pleno emprego coloca grandes desafios.

  • Como avalia a preocupação dos consumidores, seja consumidor final ou empresarial, com o setor da água? Esta preocupação tem evoluído com o passar dos anos? Que modificações são notórias dessa preocupação?

É grato verificar que os vários setores, desde a hotelaria e a restauração à agricultura e, mesmo, os próprios serviços públicos e municípios estão conscientes que os problemas que estamos a atravessar são estruturais e temos de encontrar para cada um deles soluções de natureza estrutural. No que diz respeito ao seu território, a EPAL tentará fazer também todo um trabalho ligado a essas temáticas, procurando através de campanhas de comunicação levar os cidadãos a ter uma maior consciência do valor da água e que isso se traduza em mudança de comportamentos. É um trabalho que é lento e alterar os comportamentos não é fácil, mas é isso que desejamos e que queremos. Vejo que a ligação ao valor da água se foi esbatendo e perdendo, sendo preciso recuperá-la para que a sociedade seja mais robusta: a verdade é que estamos a perder 20% de recursos por falta de precipitação e os nossos especialistas dizem que nas próximas duas a três décadas vamos perder outros 20%. Os cenários não são animadores e, a não ser a que haja uma outra forma de valorizar a água, que não apenas a fatura que pagamos por ela, teremos de interiorizar o valor ambiental que representa para as nossas vidas.

 

*Esta é a primeira parte da Grande Entrevista incluída na edição 100 da Ambiente Magazine

Fotos: Raquel Wise