Com um percurso de mais de 40 anos no setor da água, aceitou agora o desafio de assumir a presidência do Conselho de Administração de uma das empresas mais históricas de Portugal: a EPAL – Empresa Portuguesa das Águas Livres, SA. Assumindo-se como um otimista por natureza, mas consciente do desafio que tem em mãos, Carlos Martins, ocupa este novo cargo, apenas, desde o passado dia 17 de abril de 2023.
Neste mandato, o foco é fazer jus à história centenária da EPAL, agregando mais valor à empresa, que serve 35 municípios (incluindo Lisboa) e que, tendo a gestão delegada da Águas do Vale do Tejo, tem hoje o desafio de responder por mais 70 municípios que atuam na área do abastecimento de água e do saneamento, nas Beiras e Alentejo.
O gestor esteve à conversa com a Ambiente Magazine, naquela que é a primeira entrevista de Carlos Martins, enquanto presidente do Conselho de Administração da EPAL, a um órgão de comunicação social. No entanto, esta entrevista também assinala outro momento: a entrevista da edição 100 da nossa revista. E isso tem algo de especial: afinal, não é todos os dias que se fala do papel de uma empresa com mais de 155 anos de história.
Como define, hoje, o estado da arte deste setor?
Tenho uma ideia relativamente positiva, apesar de identificar bastantes fragilidades. Positiva porque, os 45 anos que estou no setor levam-me a pensar o quanto foi feito na universalização do serviço, que hoje atinge quase 99% no abastecimento de água e 90% nos serviços de saneamento, no indicador de água segura que supera os 99%, indicadores que nos devem orgulhar enquanto portugueses.
Apesar dos números honrosos e o trabalho coletivo que tem estado a ser feito, há um número muito elevado de entidades gestoras que, pelas suas características muito próprias, não têm uma dimensão e uma escala que lhes permitam mobilizar recursos de natureza técnica e financeira que seriam os desejáveis. O que me preocupa mais em relação ao futuro é, seguramente, a capacidade para sustentarmos aquilo que já fizemos bem no passado, ou seja, garantir tarifas que possam servir para renovar as redes com as taxas desejáveis, nunca menos de 1,5% e, tendencialmente, 2% ao ano. Infelizmente, os nossos indicadores nacionais apontam para que ainda o estamos a fazer a um ritmo abaixo de 1%, o que significa que as infraestruturas vão ter uma vida própria de mais de 100 anos, o que é um otimismo excessivo. Se juntarmos a isto o facto de que algumas dessas infraestruturas críticas, como Estações de Tratamento de Água e Estações de Tratamento de Águas Residuais, têm ainda assim uma vida útil ainda mais curta, o esforço que temos pela frente é gigantesco. Por isso, diria que o desafio já nem é tanto o de fazer muito mais infraestrutura nova, mas manter bem aquela que fomos capazes de construir ao longo das últimas três décadas.
Qual será a evolução do custo/preço da água na próxima década?
Não há uma resposta imediata. Hoje, a água incorpora um custo elevado de energia. Por exemplo, tivemos uma situação de contexto europeu em que a energia subiu imenso e o custo de água, nestes últimos dois anos, subiu à mercê do aumento do custo de energia, mesmo que não tenha tido reflexo nas tarifas, já que estas não seguiram a trajetória da inflação. Não conseguimos desenhar com clareza qual vai ser o nosso futuro energético. Admito que, hoje, uma parte muito significativa das Entidades Gestoras começa a aproximar os valores das tarifas de água do seu custo real e que, depois disso, se torna mais eficiente para não agravar os custos às pessoas. O desafio é eficiência e lidar melhor com fatores de contexto.
Quando comparado com outros setores, como a energia, os resíduos ou as florestas, como tem sido a evolução do setor da água em Portugal? E ao nível de prioridades, qual o setor onde se tem depositado mais atenção / ação? E porquê?
Estou certo de que a política do setor da água tem merecido a maior atenção, algo que se verifica, por exemplo, nas águas para reutilização, que tem uma meta de chegar aos 20%, em 2030; na eficiência energética; no controle das perdas, em tarifas que cobrem os custos e que se traduzem em maior sustentabilidade económica e financeira do setor ou, ainda, na eficiência nas regas agrícolas, onde se verifica uma maior modernidade. É sempre importante dizer que o caminho que temos pela frente é ainda bastante significativo: os sinais que nos chegam dos utilizadores são positivos e juntam à preocupação metodologias de trabalho e tecnologias cada vez mais modernas, mas estamos longe de pensar que isto é já um fator completamente absorvido por todos os parceiros. Ainda vamos ter de melhorar a governança do setor.
Os municípios têm um papel fundamental na promoção da acessibilidade à água. Como tem sido desempenhado este papel?
Os municípios são a peça essencial na gestão da água no que diz respeito ao ciclo urbano da água. São os municípios que decidem como querem organizar-se e que modelo de gestão lhes permite atingir os objetivos que pretendem. Deste ponto de vista, também a trajetória é marcada por três ou quatro situações relevantes. Nos anos 90, aquando da criação da Águas de Portugal e dos Sistemas Multimunicipais, em que os municípios foram decisivos para aderir a soluções de natureza regional, criou-se escala para alterar, significativamente, aquilo que era o panorama do setor. Depois, há um outro momento, em que muitos dos municípios começaram a enveredar ou concessionar as suas “Baixas”, ou criar parcerias para ganharem escala de natureza regional nas “Baixas” e, hoje, já em largas áreas do território, começa a emergir um desejo de ligar a à “Alta” e a “Baixa” e criar uma gestão bastante mais integrada, captando mais economias de escala. Estou convencido que esse vai ser o caminho, mas, naturalmente, essa sensibilidade de gizar o futuro não ocorre de uma forma generalizada: vai fazendo caminho. Estou muito certo de que o futuro vai fazer com que os municípios se associem mais, orientando o seu trabalho para outras áreas de governança municipal, enquanto o serviço de natureza pública – água e saneamento – tendencialmente, encontrará escala de natureza regional para prestar um melhor serviço às suas populações.
O setor da água tem sabido acompanhar os avanços que se registam na tecnologia e na digitalização? Como tem sido esta jornada?
São as tais 30% das Entidades Gestoras que são líderes e integram bastante bem essas ferramentas tecnológicas. Muitas vezes, o problema não é tanto de integração, mas não havendo a tal dita escala, o que vai acontecer é que muitos começam e, depois, não conseguem sustentar os modelos tecnológicos que procuram introduzir nas suas organizações, por falta de recursos financeiros ou, mesmo, técnicos. Mas é inevitável essa transformação e, portanto, o caminho da inovação tecnológica no setor vai fazer com que o setor da água acompanhe aquilo que é tradicional nas outras utilities.
Ao nível de investimentos, estes têm sido bem canalizados/distribuídos pelo setor? Como avalia este parâmetro?
Quando foram criados os sistemas regionais, nos anos 90, seguiu-se muito a lógica de tentar otimizar os financiamentos da União Europeia e, dessa maneira, criar aqui uma situação em que Portugal ultrapassasse as fortes limitações naquela época. Penso que o fizemos com grande sucesso, quando vemos o tal percurso: 99% com água ao domicílio, 90% com o saneamento, mais de 99,3% das pessoas podem beber água da torneira com segurança. São tudo sinais bastante expressivos que nos devem orgulhar. Sem prejuízo de ainda se identificarem fragilidades, acho que devemos estar orgulhosos do caminho que percorremos, sobretudo, no abastecimento de água. E mesmo na gestão de água enquanto recurso, começam-se a verificar um conjunto de vontades em todos os setores utilizadores.
E quanto ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que avaliação faz?
O PRR só trouxe investimentos setoriais no Algarve e penso que estão todos a seguir a um bom ritmo. Julgo que são estruturais para uma região que, não sendo rica em recursos hídricos subterrâneos ou superficiais, tem um valor económico e um conjunto de atividades que são relevantes para o nosso país. E, portanto, todas as obras que estão previstas, desde a dessalinizadora, nova toma de água no Guadiana, reforço do uso de águas para reutilização em usos compatíveis e a eficiência hídrica no controlo de perdas, são os quatro pilares que estão a ser prosseguidos. Todos concorrem para esse desígnio de garantir sustentabilidade àquele território tão importante para Portugal. O PRR revela-se assim muito relevante.
Em 1992, já se falava em escassez de água por parte da ONU: “A água não é uma doação gratuita da natureza… sendo algumas vezes, rara e dispendiosa… podendo muito bem escassear em qualquer região do mundo”. Se, nesse ano, já se falava em escassez de água, significa que, nessa altura, já não era dado o devido valor ao recurso? Nada mudou desde então?
Quando olhamos para estes temas ao nível planetário, umas vezes ganhamos consciência e outras vezes perdemo-la. Quem ler uma citação desse género num país rico em água pode achar o exercício e a frase descontextualizados. Para outros que vivem em situação de escassez extrema, que são outros largos milhões de pessoas que, infelizmente, para terem água em casa têm de se deslocar vários quilómetros, essa frase acaba por ser pacífica demais. Diria que nós temos, em cada momento e nos locais onde estamos, face à oferta e à procura, de encontrar os equilíbrios e gerir sempre com parcimónia a água que temos à disposição, porque o número, em termos quantitativos, não se altera: hoje, somos 8 mil milhões no planeta. Sobretudo nos países mais desenvolvidos, não damos conta de algumas coisas que fazemos com tanta naturalidade e que não associamos à água, como por exemplo, comprar roupa: pensamos só na água como aquela que sai da torneira. Mas, quando vamos comprar uma peça de roupa, alimentação, estamos a incorporar milhares e milhares de metros cúbicos de água. Essa frase expressa um problema que existe, vai ganhar cada vez mais dimensão quando falamos em termos médios mundiais e, portanto, haverá contextos onde terá maior expressão e, noutros onde continuará a ser encarada de forma leviana sem qualquer responsabilização pelas soluções.
Ainda assim, enquanto cidadãos individuais, penso que devemos sempre encarar este assunto de forma empática, preocupada e não apenas como um problema dos outros, mas sim com a frontalidade e seriedade de que um dia nos poderá afetar a todos.
As alterações climáticas vão potenciar cada vez mais essa escassez, assim como outros eventos, como aconteceu, no ano passado, com as cheias intensas no Porto e, em Lisboa. Como é que o país está preparado para dar resposta a um desafio que parece ser cada vez mais estrutural?
Esperamos que as nossas cidades e vilas, sobretudo, aquelas que estão em crescimento urbano, tomem agora soluções mais adequadas. Temos um passado com milhares de anos de construção de cidade e, muitas vezes, essa realidade não se pode alterar por atos de simples vontade. As infraestruturas, por vezes, foram calculadas com aquilo que era o conhecimento da época e, estas alterações para situações extremas de escassez e de precipitação muito elevada, não eram expectáveis que acontecessem com a frequência com que estão a acontecer. Algumas delas vão ter de encontrar respostas: a cidade de Lisboa está a investir forte no Plano Geral de Drenagem de Lisboa, mas são obras que levam o seu tempo a construir e a concretizar. Espero é que o urbanismo do futuro possa ser diferente, mas não tenho a noção que isso ocorra de uma forma muito rápida porque não há capacidade financeira para enfrentar alguns desses desafios e alguns teriam complexas soluções de natureza técnica. Agora, não podemos continuar a construir cidades do modo como fizemos nos dois séculos anteriores, porque as condições se alteraram e, portanto, é natural que as repostas sejam outras.
Num cenário de “menos água” e “mais seca”, o que é que urge não ficar para trás?
O que nunca deve ficar para trás são as pessoas. Em última análise, as cidades são para as pessoas. A economia tem impacto na vida das pessoas. A água e os seus impactos positivos na economia, saúde e turismo estão associados à valorização da nossa qualidade de vida. O que importa é que as pessoas nunca fiquem para trás. Temos de colocar as pessoas no centro da atenção e das nossas políticas públicas envolventes à situação da água. Todas as políticas públicas são construídas com racional de dar qualidade de vida às pessoas.
Como é que se encontra o nosso país, quando comparado com outros países europeus, a começar, desde já, pelos nossos vizinhos espanhóis?
Encontramo-nos numa situação similar no que diz respeito ao abastecimento público. Não apresentam taxas de coberturas melhores do que as nossas, não apresentam níveis de eficiência superiores aos nossos, viverão com problemas de escassez, seguramente, idênticos, mas também com fatores de contexto: o território não pode ser comparado muitas vezes país a país.
Se conseguisse avançar até 2050, como gostaria que estivesse o setor da Água em Portugal?
Gostaria de ver um setor com um conjunto de atividades gestoras com a dita escala mais adequada, com níveis de eficiência e desempenho mais comuns a todo o território nacional. Quando olhasse para trás, em 2050, percecionasse que houve uma melhoria relativamente ao que estava em 2023. Se não acreditarmos sempre no na capacidade de acrescentar valor, estamos seguramente com um olhar muito defeituoso. Acredito que possa acontecer um caminho de sucesso, não escondendo que o desafio é imenso para manter os níveis que nós já atingimos num período de mais 20 anos que temos pela frente. Alguma coisa vai mudar e acredito que será para melhor.
*Esta é a segunda (e última) parte da Grande Entrevista incluída na edição 100 da Ambiente Magazine