São tempos difíceis para quem vive de e para a agricultura. Os últimos acontecimentos, como a Guerra na Ucrânia, têm afetado fortemente esta atividade e, não havendo solução, perspetivam-se riscos desastrosos. Mas não são só os efeitos desta crise que têm impactado o setor: as alterações climáticas, vistas como a ameaça do século XXI, também estão a provocar mudanças significativas na atividade. Tendo a agricultura como pano de fundo, fomos ao encontro de Eduardo Oliveira Sousa, uma personalidade que ao longo do seu percurso profissional tem assumido vários cargos, todos ligados à agricultura. Nasceu em maio de 1953 e é licenciado em Engenharia Agronómica pelo Instituto Superior de Agronomia. Desde 2017 exerce a presidência da CAP – Confederação dos Agricultores de Portugal. Nesta conversa, entre muitas confissões, ficou a partilha do desejo de vir a assistir a um verdadeiro reconhecimento por parte da população e do Governo do valor intrínseco que significa a agricultura e os agricultores em Portugal.
Como caracteriza a agricultura, hoje, em Portugal?
Portugal é um país relativamente pequeno em dimensão territorial, mas dos que tem maior variabilidade de território e condições de exploração. Desde a zona mais litoral até à zona mais próxima de Espanha e de norte para sul. É um país completamente diverso. Essa diversidade reflete-se na sua ocupação cultural e na exploração agrícola. Não sou capaz de a caracterizar de uma forma simples. No Norte, é uma agricultura apoiada, de pequenas explorações, com alguma intensificação produtiva no Litoral e muito pouca intensificação no Interior; na zona Centro, de grande expressão florestal, atravessa uma crise muito grave essencialmente por causa da dimensão da propriedade e da fraca economia da floresta; na zona litoral, encontramos uma exploração tradicionalmente associada a culturas mais intensivas, em que a intensificação produtiva é permitida pelo clima mais ameno na proximidade do mar; e na região Sul, encontramos os vales ricos, do Tejo, Sorraia e Sado, com culturas típicas de regadio e as zonas da extensificação (pastoreio, montado). Depois, temos algumas regiões especialmente vocacionadas para a fruticultura, mesmo no Interior, no Norte e Centro e no Algarve, estando a expressão principal deste ramo da actividade no Oeste, uma região de explorações de dimensão intermédia e que manifesta uma dinâmica muito própria, expressão das suas condições de proximidade ao mar. Apenas falta referir um setor, que está mais ou menos presente em todo o país, de norte a sul, com uma enorme variabilidade e que explora em seu benefício as particularidades do nosso território: a vinha e o vinho – seja a Norte ou a Sul, no Interior ou no Litoral, há sempre vinha, dada a sua condição de planta resistente e muito adaptável. É um país com propriedades maiores a sul do Tejo e de média ou muito pequena dimensão no norte e centro, com vários problemas associados que, em termos económicos, dificulta a viabilidade e o progresso da exploração agrícola nesses territórios.
Que caminhos se colocam para o futuro do setor agrícola, tendo em conta os seus subsetores e essa diversidade?
O setor agrícola atravessa uma fase de grande mudança que tem que ver com aquilo a que chamamos de “alterações climáticas”: há um processo de mudança no clima que nos está a confrontar com uma realidade diferente que chegou muito depressa. O país tem tido alguma dificuldade em encontrar o caminho de saída: já passou tempo demais para pensarmos que essas mudanças são passageiras. As alterações climáticas são uma realidade que veio para ficar e todos os setores da economia – e os agricultores ainda mais porque vivem mais expostos aos elementos naturais – têm de dispor de mecanismos que lhes permitam enfrentar esse futuro ainda algo incerto. Como primeiro desafio, identifico um elemento cuja carência é preocupante e evidente, a questão da água. E em segundo lugar, a compatibilização deste caminho novo que temos de procurar fazer sem perder o norte quanto aos grandes objetivos que estão traçados em termos de política internacional, nomeadamente na política europeia: o Green Deal (Pato Ecológico Europeu) e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica. Portanto, estamos numa região do planeta que tem características muito próprias. A região mediterrânica é a que está mais próxima do Norte de África e o processo de desertificação que já começa a atingir a Europa inicia-se exatamente nesta região. A progressão da aridez do Mediterrâneo para cá já está a acontecer e é uma evidência: a nossa primeira batalha será tentar encontrar as ferramentas para combater um desastre anunciado pela invasão do território nacional pelo deserto que avança desde o Norte de África. Mas a principal preocupação é, sem dúvida, com o problema da água: este ano, desde que sou presidente da CAP (5 anos), é a segunda seca severa que atravessamos e, nos últimos 10 anos, deve ter havido três ou quatro. É uma constatação: precisamos de encontrar os meios para podermos continuar a ocupar o território com atividade económica, viabilizando a economia e a presença das pessoas no território – agricultura, turismo, turismo de natureza, floresta e tudo mais que possa ser desenvolvido e que sustente a permanência das pessoas no território.
Outras questões que impactam o setor são certamente a guerra na Ucrânia e, mais recentemente, os incêndios. É uma fase dramática para o setor?
Não diria dramática, mas sim trágica, que é bem pior. Enquanto as alterações climáticas são totalmente involuntárias fora de um contexto da vontade do homem, a guerra na Ucrânia é consequência de atitudes, comportamentos e decisões políticas internacionais e isso está a causar um fosso em termos de estabilidade da economia que pode, nalguns setores, levar à paragem absoluta. Por exemplo, a questão da energia, que está mais na ordem do dia: se a energia ultrapassar valores da ordem dos 150 euros por MWh, eu diria que mais de metade da agricultura de regadio em Portugal corre o risco de colapsar. Partindo do princípio de que a agricultura de regadio é o suporte de muita da agricultura de sequeiro, que lhe está associada e próxima, esse colapso vai arrasar também uma grande parte deste tipo de agricultura. Se associarmos a isso a diminuição de poder de compra e da qualidade de vida da generalidade da população, as pessoas no Interior e que não vejam economia no setor agrícola, tenderão a migrar para o Litoral ou para fora do país, agravando a concentração nessas regiões e indo concorrer com tudo aquilo que as pessoas precisam hoje em dia para viver: habitação, escolas, hospitais… vão agravar o excesso de demografia que o país tem no Litoral, comparando com um défice de geografia que tem no Interior. Portugal no seu todo atravessa uma crise brutal de demografia, mas é totalmente desequilibrado em termos de repartição da população no seu território. Esta questão da guerra na Ucrânia, se não for possível encontrar soluções para aquilo que já está a acontecer em termos de energia e de acesso aos fatores de produção, o setor agrícola será muito afetado.
Como é que o setor agrícola encara a sustentabilidade ao nível da atividade baseada na exploração de recursos naturais – solo e água. É uma realidade que é imposta aos vários setores da atividade económica pela União Europeia. É mais uma condicionante ao nível da produção?
Tanto o Green Deal como o Roteiro para a Neutralidade Carbónica, ou as metas estabelecidas para alcançar determinado nível de descarbonização da economia, foram todos estabelecidos antes desta guerra. São ambições e metas teóricas que sustentam a criação de mecanismos de apoio que permitam às atividades económicas percorrerem esse caminho. Mas são caminhos. Por isso, quando se diz que, em 2050, queremos estar aqui, é o mesmo que dizer que, em 2050, queremos pisar Marte: é uma ambição. O Green Deal é uma ambição e uma tomada de posição de consciência e nenhum setor pode ficar alheio. A Agricultura não é alheia a nada do que envolva território, clima ou economia. É um setor como os outros e ainda um dos pilares principais da nossa soberania. É a razão pela qual a agricultura é considerada no conceito de defesa nacional, em comparação com a própria defesa militar do país, porque um país não pode dizer que é independente sem alcançar a autonomia na alimentação, e esta é assegurada pela agricultura. Significa isto que para os agricultores de cariz empresarial, tanto o Roteiro para a Neutralidade Carbónica, como o Green Deal, ou a limitação ao uso de determinados produtos, estão a ser devidamente considerados no seu espírito de adaptação à mudança, não havendo qualquer objeção a esses desígnios. Poderá haver alguma reação passageira ou pontual pela forma ou pelo prazo com que são transmitidos determinados objetivos, mas isso não tem que ver com a realidade dos conceitos, pois esses estão interiorizados. E assim que os agricultores têm abraçado determinados padrões de comportamento, no uso eficiente da água, na protecção do solo e na utilização de fertilizantes ou de produtos de proteção das culturas (pesticidas). Os agricultores têm hoje a perfeita consciência de que é necessário conduzir a exploração de recursos de uma forma sustentável, para que assegurando essa sustentabilidade ambiental consigam igualmente estabelecer os outros dois pés do tripé da sustentabilidade, o social e o económico.
O PEPAC – Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (PAC) tem como princípio uma gestão ativa de todo o território através da produção agrícola e florestal inovadora e sustentável. Em que fase deste trajeto considera que estamos?
Eu lamento ter de responder a essa pergunta com exatamente o que eu gostaria que não tivesse acontecido. Ao contrário do que era expectável, desejável e recomendável, a CAP não foi envolvida na elaboração do PEPAC que foi apresentado em Bruxelas. Tentámos que os nossos comentários fossem considerados na elaboração do PEPAC, mas esse nosso esforço foi infrutífero. E, no entanto, as notícias do Ministério da Agricultura são de que foram “ouvidas as Confederações”. Houve documentos produzidos pelo Ministério da Agricultura que foram alvo de exibição através de PowerPoints em reuniões onde as Confederações estiveram presentes, mas as Confederações comentaram e fizeram contrapropostas que não foram posteriormente discutidos e, menos ainda, introduzidos ou considerados no documento final. A responsabilidade pelo PEPAC que está em Bruxelas para ser aprovado e se iniciará no princípio de 2023 é, portanto, da exclusiva autoria e responsabilidade do Ministério da Agricultura. Digo isto com mágoa porque temos a certeza absoluta de que muitas das propostas e comentários que então fizemos melhorariam em muito o documento. Veremos, mas estou convencido de que serão necessárias muitas alterações no processo da sua implementação. Neste momento é um documento fechado, com generalidades como a defesa da utilização do território com base numa agricultura sustentável, dos quais naturalmente não discordamos – certamente ninguém discordará – mas as nossas particularidades, os nossos setores e a forma com esses setores ocupam o território e a exploração é feita deviam ter sido alvo de consideração com minúcia, e isso o Ministério não fez.
Esta é uma situação normal?
Não. E por não ser uma situação normal, há cerca de um ano, a CAP manifestou a sua total discordância com a forma como o Ministério da Agricultura estava a conduzir as negociações do PEPAC, transmitindo essa apreensão ao primeiro-ministro. Disso resultou uma certa tensão no relacionamento com o Ministério, que já reflectia também a falta de apoios aos agricultores por causa da seca, que persiste em não existirem, como ainda por cima o documento final do PEPAC nos é dado a conhecer através de um PowerPoint.
É fácil a transição para e a adoção de modos de produção sustentáveis em Portugal, e especialmente para a agricultura biológica?
O Green Deal diz que a Europa terá de, em 2030, atingir 25% de agricultura praticada em modos de produção biológica, mas isto terá como consequência aumentar exponencialmente as importações de alimentos para a União Europeia, com custos acrescidos, uma vez que através da agricultura biológica a produção será diminuída e insuficiente para as necessidades. E a guerra veio comprometer esse objectivo. Em termos económicos, será muito difícil a agricultura biológica atingir ou passar os 25%. Seria necessário haver uma muito maior capacidade financeira dos consumidores europeus para permitir a sustentabilidade económica de 25% do território ocupado por agricultura biológica. Tenhamos também em conta que a agricultura biológica não é isenta da aplicação de produtos, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, e o facto de não ser isenta, faz com que alguns produtos possam também ser utilizados em excesso. Nalgumas situações, e numa perspetiva técnica, poderá ser menos sustentável o forçar a agricultura biológica do que praticar outro tipo de agricultura, como a que é feita em modo de produção integrada. Trata-se de um modo de agricultura que utiliza produtos fruto da ciência que já compatibilizam a sua sustentabilidade ambiental e a salvaguarda dos recursos. Acredito mais nesse caminho, introduzindo algumas melhorias, do que na imposição estrita de um só modelo.
Outra meta estabelecida no PEPAC é ter 42% de superfície agrícola utilizada (SAU) sob compromissos de apoio à biodiversidade…
Tudo o que foi estabelecido antes da guerra merece um reajustamento.
Esta é a primeira parte da Grande Entrevista incluída na edição 95 da Ambiente Magazine