Após uma aula aberta na Universidade Autónoma de Lisboa, sob o tema “Mudanças Climáticas e Gestão dos Recursos Hídricos: Desafios, Perspetivas e Cooperação Internacional Brasil-Colômbia”, o Prof. Dr. Duarcides Ferreira Mariosa esclareceu à Ambiente Magazine alguns pontos sobre o Memorando de Entendimento assinado entre os dois países e a respetiva atualidade do setor.
Duarcides Ferreira Mariosa é Professor e Pesquisador Permanente do Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade da PUC-Campinas e Coordenador do Grupo de Trabalho-Indicadores e Monitoramento de Recursos Hídricos dos Comitês das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí.
Qual é a atualidade da gestão dos recursos hídricos no Brasil? E na Colômbia?
No Brasil, a gestão dos recursos hídricos é regida pela Lei nº 9.433 de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, e determina diferentes níveis de abordagem e administração dos usos da água e do saneamento, organizados a partir da realidade socioterritorial das bacias hidrográficas. Apesar da abundância hídrica no Brasil, no entanto, o país ainda enfrenta desafios significativos na disponibilidade hídrica per capita, como a distribuição desigual de água, poluição de fontes hídricas e o impacto das mudanças climáticas nas reservas hídricas. Projetos de gestão integrada em bacias hidrográficas ainda precisam de maior implementação e eficácia e, em certos casos, como na região amazônica, a necessidade de cooperação transfronteiriça é determinante para garantir a sustentabilidade e segurança hídrica.

Na Colômbia, a gestão dos recursos hídricos é regulamentada pela Lei nº 99 de 1993, que criou o Sistema Nacional Ambiental. O país possui uma abundância de água e uma diversidade ecológica única, mas enfrenta problemas semelhantes, como contaminação e uso excessivo de águas. Além disso, o problema do desmatamento nas bacias hidrográficas agrava a situação, comprometendo a qualidade da água. Na região amazônica, fronteira com o Brasil, os desafios são de outra ordem. Descarte a montante de resíduos contaminantes. Dependência total dos rios como meio de transporte de insumos e pessoas. Uso da população local de indígenas, ribeirinhos, coletores e pescadores para atividades impactantes ao meio ambiente e, muitas vezes, ilícitas. E a presença de integrantes de organizações criminosas atuando livremente na região.
Que adversidades têm trazido as alterações climáticas, em particular para os recursos hídricos?
As alterações climáticas têm provocado variações nos padrões de precipitação, aumentando a frequência e a intensidade de eventos extremos, como secas e enchentes. Isso impacta diretamente a disponibilidade e a qualidade da água, além de afetar a produção agrícola e o abastecimento urbano. Em regiões vulneráveis, a escassez de água pode se tornar uma questão crítica, exacerbando a competição por recursos hídricos limitados. Todavia, deve-se observar as interações climáticas em nível global. A elevação da temperatura, a crescente pressão pelo consumo (água, alimento e energia), crescimento populacional e urbanização têm efeitos adversos na quantidade e qualidade da água e complexificam a gestão. Ao considerar a importância da região amazônica na manutenção do ritmo das chuvas na América do Sul, as medidas de conservação e preservação deste bioma transcende o espaço nacional e torna-se uma questão de interesse multilateral.
Que exemplos concretos destes problemas podem ser dados nos casos do Brasil e da Colômbia?
Para ilustrar os desafios ambientais enfrentados por Brasil e Colômbia, podemos considerar exemplos concretos desses problemas. No Brasil, a crise hídrica de 2014 em São Paulo serve como um caso emblemático. Esse evento foi caracterizado por uma severa seca combinada com a má gestão dos recursos hídricos, culminando em um colapso no abastecimento de água. A seca severa na região amazônica alternada com períodos de concentração das chuvas tem alcançado um ciclo de recorrência e intensidade jamais reportado. O Rio Grande do Sul enfrentou em 2024 episódios de chuvas torrenciais e alagamentos na região metropolitana de sua capital, Porto Alegre, causando mortes, desabastecimento e danos ao patrimônio das pessoas, empresas e governo.
Na Colômbia, as mudanças climáticas impuseram desafios significativos, evidenciados por eventos climáticos extremos. Em 2021, a região de La Guajira sofreu uma das secas mais severas em anos, impactando profundamente a população indígena Wayuu, cuja subsistência depende da agricultura e pecuária. A crise provocada pela escassez de água potável e pela diminuição da produção agrícola resultou em uma situação humanitária crítica.
Outro exemplo significativo foi a enchente em Mocoa em 2017, quando chuvas intensas causaram deslizamentos de terra e inundações, resultando em mais de 300 mortes e milhares de desabrigados. Essa tragédia destacou a vulnerabilidade da região a eventos climáticos extremos, agravada pela destruição de infraestrutura e contaminação das fontes de água. Em 2022, a bacia do Rio Magdalena também experimentou inundações significativas, afetando numerosas comunidades e auxiliando na destruição de residências, estradas e plantações. Esses eventos reiteram a necessidade de estratégias eficazes para gestão de recursos hídricos e mitigação de desastres na Colômbia.
Qual o objetivo de assinar um Memorando de Entendimento em 2021?
O Brasil compartilha várias bacias hidrográficas importantes com países vizinhos, como a Bacia do Rio Amazonas e a Bacia do Rio Paraná. A cooperação no manejo desses recursos é fundamental para garantir a conservação ambiental, o abastecimento de água e a geração de energia hidrelétrica. Com a Amazónia cobrindo uma parte significativa de seu território, o Brasil é um ator chave nos esforços regionais e globais para a conservação da biodiversidade e contra o desmatamento, o qual tem impacto além de suas fronteiras.
O Memorando de Entendimento assinado em 2021 entre Brasil e Colômbia visa a cooperação bilateral na gestão sustentável dos recursos hídricos, promovendo uma abordagem integrada para enfrentar desafios comuns, como as consequências das mudanças climáticas e a preservação de bacias hidrográficas. O objetivo é estabelecer um marco colaborativo que facilite o intercâmbio de informações e boas práticas. O acordo, válido por cinco anos, envolve a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico e os ministérios colombianos relacionados. O foco é a região da fronteira, beneficiando cidades como Letícia e Tabatinga com estudos sobre a disponibilidade e qualidade da água nos principais afluentes do rio Amazonas, além da universalização dos serviços de saneamento. Os compromissos incluem a criação de estudos de gestão de recursos hídricos, atração de investimentos privados e intercâmbios técnicos e científicos com as universidades, além de acordos de cooperação em áreas como agricultura, segurança pública e comércio.
Que principais resultados são possíveis apurar desde a assinatura do Memorando?
Desde a assinatura do Memorando, é possível notar um aumento na troca de conhecimentos técnicos entre os dois países, bem como parcerias em projetos de conservação e gestão sustentável de recursos hídricos. Além disso, iniciativas conjuntas têm sido criadas para o monitoramento da qualidade da água e estudos sobre alterações climáticas e seu impacto nas bacias compartilhadas. Brasil e Colômbia têm estabelecido acordos bilaterais para tratar de questões de segurança na fronteira, combate ao tráfico de drogas e proteção ambiental. Esses acordos incluem o monitoramento de áreas protegidas e estratégias conjuntas para enfrentar desafios ambientais.
Quais são as medidas a serem tomadas nos próximos anos por ambos os países?
Os dois países devem priorizar a implementação de políticas públicas que integrem gestão hídrica com conservação ambiental, além de fortalecer as medidas de controle, monitoramento e construção da infraestrutura hídrica necessárias para garantir acesso e a qualidade da água. Também é essencial promover ações de educação ambiental e conscientização sobre o uso responsável da água, destinação de dejetos e descarte de contaminantes, assim como buscar financiamento para projetos sustentáveis, pesquisas e inovações tecnológicas. Reforçar a importância das iniciativas para melhorar a governança dos recursos hídricos para o uso mais sustentável e equitativo da água, da governança e cooperação.
A melhor gestão dos recursos hídricos dependerá de mais investimento por parte de privados?
Na região amazônica, por conta da baixa densidade demográfica, distâncias intransponíveis para a engenharia e das características do solo e clima, dificilmente haveria interesse da iniciativa privada em assumir a gestão dos recursos hídricos neste local. Não no mesmo modelo utilizado em áreas urbanas. Mas poderia haver benefícios se aos investimentos privados pudessem se somar os centros de pesquisa das universidades e governos para desenvolver soluções envolvendo inovação e atraindo recursos financeiros que podem complementar as iniciativas públicas.
E onde fica o papel dos Governos nesta gestão?
Os governos têm um papel fundamental na criação de regulamentos e políticas que garantam o uso sustentável dos recursos hídricos. Eles são responsáveis pela fiscalização, planejamento e gestão integrada das bacias hidrográficas, além de assegurar que as necessidades sociais e ambientais sejam atendidas. O papel do governo é deliberar, promover e facilitar o envolvimento da sociedade civil, universidades e centros de pesquisa, indústria e outros stakeholders. Especificamente, através de iniciativas de desenvolvimento sustentável, Colômbia e Brasil buscam equilibrar o crescimento econômico com a preservação ambiental, influenciando políticas regionais que afetam recursos transfronteiriços.
Quais as ferramentas principais para uma gestão sustentável da água?
As ferramentas principais para uma gestão sustentável da água incluem, primeiramente, a gestão integrada de recursos hídricos, ou seja, uma abordagem sistêmica que considera todas as interações entre os recursos hídricos e os diversos usuários. O constante monitoramento e avaliação da qualidade da água, para garantir a manutenção dos padrões de qualidade. Elaboração e implementação de instrumentos de gestão econômica sustentável, como tarifas de uso da água que incentivem a conservação ou que considerem a capacidade de pagamento dos usuários. Ações de educação e conscientização, para promover um uso responsável e sustentável da água. E, muito importante, a constante atualização e busca por tecnologias inovadoras, que podem otimizar a captação, tratamento e distribuição de água.