A transição verde exige mais do que metas ambiciosas e é nesse sentido que a Ambiente Magazine esteve à conversa com Ana Costa, Sustainability & Blue Economy Director na Beta-i.
Como avalia o compromisso da Europa e de Portugal com a transição verde?
A Europa tem assumido um papel de liderança global na transição verde, com o Pacto Ecológico Europeu a funcionar como um verdadeiro farol político e regulatório. Este compromisso tem sido essencial para colocar a sustentabilidade no centro da agenda económica e social. No entanto, esse mesmo farol tem-se revelado exigente, tanto para os países como para as empresas, sobretudo face ao ritmo acelerado com que a legislação tem vindo a ser criada, o que, por vezes, gera desafios de adaptação e execução no terreno.

Portugal tem demonstrado alinhamento com essa ambição europeia, mas, como em muitos países, o verdadeiro desafio está na capacidade de execução: falta escala, continuidade e, sobretudo, integração transversal da sustentabilidade nas decisões públicas e privadas. Ainda se trata, muitas vezes, a transição verde como uma agenda setorial, quando, na verdade, ela representa uma transformação estrutural que toca todas as áreas da vida e da economia.
É interessante observar que, com o novo pacote “Omnibus”, a Comissão Europeia parece estar a reconhecer esta tensão. O foco passa agora a estar mais claramente no investimento e capacitação, e menos na introdução de nova regulamentação. Este movimento é sinal de maturidade política e pode representar uma viragem importante para desbloquear a implementação no terreno, desde que, na minha perspetiva, se mantenha o compromisso com a ambição climática e não se perca o sentido de urgência.
Quais devem ser as principais medidas por parte dos Governos?
Os Governos devem assumir um papel de facilitadores e aceleradores da transição, criando um ambiente propício à inovação e à transformação estrutural. Isso implica não apenas legislar, mas sobretudo capacitar, coordenar e escutar. É fundamental que o Estado esteja próximo das empresas, compreendendo os seus contextos reais e os bloqueios concretos à ação. Só com esta proximidade é possível desenhar políticas públicas que desbloqueiem a mudança em vez de a dificultarem.
As medidas devem combinar uma regulação coerente e estável, que garanta previsibilidade às empresas; investimento público estratégico, que funcione como alavanca para mobilizar capital privado; e soluções de transição justa, que cuidem dos impactos sociais da transformação ecológica, assegurando que ninguém fica para trás. Além disso, é urgente adotar uma visão de longo prazo, que ofereça estabilidade e confiança aos empresários para continuar a investir numa nova economia, com menos incerteza e mais sentido de direção.
Estamos também perante um novo contexto, onde existem ferramentas tecnológicas e de inovação que permitem criar espaços de experimentação e aprendizagem — zonas “livres” para testar novos modelos económicos, sociais e ambientais que possam depois ser escalados. A transição verde pode e deve ser uma das dimensões onde se testa este novo modelo, dada a sua urgência e transversalidade.
Que tipo de incentivos podem funcionar neste sentido?
Os incentivos mais eficazes são aqueles que alinham os objetivos económicos com os climáticos e sociais, tornando a sustentabilidade um motor de competitividade. Esta visão está consagrada na Lei de Bases do Clima portuguesa, que prevê expressamente o alinhamento dos instrumentos financeiros com os objetivos climáticos, a promoção da fiscalidade verde e a criação de incentivos à descarbonização da economia. Para que esta ambição se traduza em ação concreta, é fundamental combinar instrumentos financeiros com medidas de capacitação e simplificação administrativa.
Incentivos fiscais para investimentos sustentáveis, acesso facilitado a financiamento verde, apoio à inovação em modelos de negócio circulares e a valorização da contratação pública como instrumento estratégico são exemplos de mecanismos que podem acelerar a transição. Mas para serem eficazes, estes incentivos precisam de ser desenhados com foco no impacto e na escala — e, sobretudo, na realidade das empresas.
Muitas vezes, os apoios disponíveis são limitados, excessivamente burocráticos ou demasiado genéricos, dificultando a sua aplicação no terreno. É essencial que os incentivos sejam adaptados à diversidade do tecido empresarial, em particular às PME, que representam a esmagadora maioria da economia nacional.
Por fim, importa sublinhar que os incentivos devem premiar não apenas a adoção de soluções técnicas, mas também transformações mais profundas nos modelos de gestão — como cadeias de valor de baixo carbono, práticas regenerativas e novas formas de governança mais inclusivas e transparentes. A verdadeira transição verde faz-se com inovação, sim, mas sobretudo com visão e coragem para mudar os paradigmas de base.
Em relação a redes de cooperação: qual o seu papel e quais as vantagens?
As redes de cooperação são fundamentais para acelerar a transição verde, sobretudo num contexto de grande complexidade e interdependência como o atual. Nenhuma entidade — seja pública, privada ou da sociedade civil — conseguirá fazer esta transformação sozinha. As redes permitem juntar competências complementares, alinhar objetivos entre diferentes setores e escalar soluções que, de outra forma, ficariam confinadas a nichos.
Na Beta-i, trabalhamos precisamente com o princípio da inovação colaborativa — a convicção de que os desafios estruturais do nosso tempo só podem ser resolvidos com soluções criadas em conjunto. Redes bem desenhadas e geridas promovem não apenas colaboração, mas também uma partilha eficaz de risco, conhecimento e recursos. Isso gera mais eficiência, mais resiliência e maior capacidade de adaptação a contextos em constante mudança.
Há vários exemplos relevantes. A nível europeu, destacam-se redes como o European Climate Pact, que mobiliza cidadãos e organizações para a ação climática, ou a Missão Cidades da União Europeia, que junta 100 cidades para atingirem a neutralidade carbónica até 2030, promovendo inovação sistémica em escala urbana. Em Portugal, há iniciativas como o Pacto para os Plásticos ou o CoLAB VITAL (Laboratório Colaborativo para a Economia Circular), que promovem sinergias entre empresas, academia e setor público para desenvolver soluções sustentáveis.
Além disso, estas redes têm um papel importante na legitimação da ação: quando soluções são co-criadas e testadas em conjunto, geram maior confiança e mais capacidade de influência junto de decisores e da sociedade em geral. No fundo, são o laboratório vivo onde se ensaia a economia regenerativa e de impacto que queremos ver no futuro.
Quais os principais desafios que estão a ser colocados à transição verde?
O principal desafio da transição verde é garantir que esta transformação estrutural — que toca todos os setores da economia e todas as dimensões da vida — é conduzida com capacidade de execução, estabilidade e sentido de direção. A Europa tem assumido um papel de liderança regulatória, com metas e legislação ambiciosas, mas essa velocidade — embora necessária — tem colocado uma pressão significativa sobre empresas, autarquias e administrações públicas, que muitas vezes não têm ainda os meios para acompanhar essa transformação.
Esta tensão entre ambição e capacidade de resposta tem levado a uma paragem estratégica, como se vê com o congelamento do pacote Omnibus, que sinaliza uma mudança de foco: de mais regulamentação para mais investimento e implementação. Esta mudança é essencial para evitar um efeito de exaustão regulatória e permitir que os atores no terreno consigam concretizar aquilo que está já definido no papel.
Adicionalmente, persistem sinais contraditórios nas políticas públicas, como subsídios ou incentivos económicos que ainda não estão plenamente alinhados com os objetivos climáticos, o que gera insegurança e retrai o investimento. A ausência de previsibilidade e estabilidade, num contexto económico e político incerto, é outro obstáculo de peso.
Há ainda um desafio de integração e visão sistémica. A transição verde continua, por vezes, a ser tratada como uma agenda setorial (do ambiente, da energia…), quando na verdade é uma mudança de fundo, transversal e interdependente. A sustentabilidade precisa deixar de ser um “tema” e passar a ser uma lente estratégica que orienta decisões em todos os setores.
Por fim, é preciso mudar o enquadramento cultural e narrativo: a transição não deve ser vista apenas como um custo ou uma obrigação, mas como uma oportunidade de renovação económica, regeneração ambiental e construção de bem-estar coletivo. Esse shift de visão — que junta dados e emoção, pragmatismo e propósito — é o que permitirá mobilizar de forma mais ampla e duradoura.
As empresas, em geral, sentem-se capazes de atingir objetivos realistas até 2050?
Depende muito do setor, da maturidade da empresa e do ecossistema em que se insere. Há empresas que estão a liderar esta transformação e a ver na agenda 2050 uma oportunidade de inovação, reposicionamento e criação de valor a longo prazo. Mas a maioria ainda enfrenta desafios sérios — falta de recursos, de clareza regulatória, de incentivos adequados e, sobretudo, de condições estruturais que permitam uma transição consistente e sustentada.
O horizonte de 2050 parece, para muitos, distante no tempo, mas exige decisões concretas no presente. Os objetivos são realistas, mas só serão alcançáveis se forem acompanhados de um esforço coordenado entre setor público, privado e sociedade civil. As empresas não podem ser deixadas sozinhas neste caminho — precisam de previsibilidade, apoio técnico, financiamento acessível e espaço para experimentar e falhar. É por isso que falamos cada vez mais de infraestruturas de transição, que vão muito além das físicas e incluem plataformas de financiamento climático, como o Banco Europeu de Investimento ou o Innovation Fund, que reduzem o risco do investimento privado; ambientes regulatórios favoráveis, como políticas fiscais verdes ou regimes céleres para tecnologias limpas; ecossistemas de inovação colaborativa, como hubs de startups climáticas, redes de incubadoras verdes e laboratórios vivos em cidades; programas de capacitação técnica em áreas como a economia circular ou a adaptação climática; e infraestruturas digitais abertas, que permitam a partilha de dados e a medição de impacto.
Quando estes elementos se alinham, vemos resultados concretos. Caso contrário, o risco é que os objetivos de 2050 fiquem apenas no papel. Acima de tudo, é preciso cultivar uma nova visão de progresso — em que crescer é regenerar, competir é colaborar e liderar é cuidar. Essa visão, mais do que uma utopia, é o motor necessário para alinhar ambição com ação.