Barragem do Crato é “(mais) um mau exemplo de utilização dos escassos dinheiros públicos”

Os documentos em consulta pública do projeto do Aproveitamento Hidráulico de Fins Múltiplos (AHFM) do Crato (Barragem do Crato) mostram que “o projeto não só não é solução para promover a economia da região”, como também se “constitui como (mais) um exemplo das más decisões de utilização dos escassos dinheiros públicos que temos para promover o nosso desenvolvimento enquanto país membro da União Europeia, com a agravante de gerar impactes ambientais e sociais negativos”. O alerta é da Associação ZERO e surge após ter terminado a consulta pública do projeto promovido pela Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo (CIMAA) e apoiado financeiramente com 120 milhões de euros pelo Programa de Recuperação e Resiliência (PRR).

Num comunicado, a ZERO nota que é evidente o “contributo negativo para as alterações climáticas pela perda de sumidouros e aumento das emissões de gases com efeitos de estufa”, efeitos que, juntamente com a “degradação da biodiversidade e o aumento do risco de poluição de massas de água”, resultarão numa violação do princípio “não prejudicar significativamente”, critério necessário para ter acesso aos fundos europeus no âmbito do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR).

Neste contexto, a Associação sintetiza as cinco razões que este projeto não deve merecer decisão favorável por parte da Agência Portuguesa do Ambiente:

  • O abastecimento público de água dos concelhos de Nisa, Crato, Ponte de Sôr, Fronteira, Sousel, Alter do Chão e Avis é apresentado como o principal objetivo do projeto. No entanto, é claro que esta não é a principal finalidade do projeto, uma vez que o volume dedicado ao abastecimento público representará pouco mais de 1% do volume da afluência anual prevista na albufeira do Pisão, enquanto que o uso agrícola representa 65%, sendo o restante alocado a outros usos e ao armazenamento ao longo dos anos. O Estudo de Impacte Ambiental (EIA) não comprova a necessidade de construção de uma nova barragem para garantir o abastecimento público, não havendo uma avaliação específica da eficiência do uso da água no abastecimento urbano (e.g. perdas no sistema, redução de consumos) nem uma adequada análise de fontes alternativas à albufeira de Póvoa/Meadas durante a sua desativação temporária (uso de águas cinzentas, pluviais e de ETAR para fins não potáveis, e até fazer uma aferição séria da capacidade da albufeira da Apartadura). O AHFM do Crato é centralmente uma obra de fomento hidroagrícola.
  • O combate ao despovoamento nesta região do Alto Alentejo foi e é outro dos “argumentos de venda” do projeto. O estudo socioeconómico promovido pela CIMAA estima que o projeto possa vir a promover a fixação 340 a 400 pessoas na região, mas concede que o projeto não “seja capaz de inverter a previsão de despovoamento da região”, sendo mais um projeto público inconsequente enquanto solução credível para atacar este problema central no interior do país. Talvez seja por causa desta conclusão que a CIMAA usou todos os meios ao seu alcance para que a ZERO não tivesse acesso ao estudo socioeconómico durante largos meses, situação que motivou queixa junto da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos e junto da Estrutura de Missão Recuperar Portugal. A ZERO tem vindo a alertar que já existem evidências claras que este tipo de projetos não demonstram valências na atenuação da contração demográfica das regiões abrangidas (como são exemplos o Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva ou até mesmo o Aproveitamento Hidroagrícola do Vale do Sorraia), pelo que não se deve ludibriar os cidadãos com essa “falsa promessa”.
  • A própria projeção da situação atual sem o projeto sugere que não existe nenhuma necessidade iminente para a construção de um novo aproveitamento hidroagrícola na mesma bacia hidrográfica da barragem do Maranhão e respetiva área beneficiada: é afirmado que os principais beneficiários – latifundiários e empresários com acesso à grande propriedade – “poderão encontrar formas de manterem economicamente viáveis as suas explorações”, mantendo os agroecossistemas atuais “com a consequente manutenção da paisagem, estrutura económica e valência ecológica do território”, evitando assim os piores impactes ambientais do projeto. Segundo o estudo socioeconómico divulgado na documentação em consulta pública, toda a área beneficiada por rega está em apenas 77 explorações, sendo que os 120 milhões de euros de investimento via PRR são, na prática, um apoio de 2 milhões de euros distribuído pelos 57 particulares, sobretudo grandes proprietários.
  • A construção da barragem do Pisão levará à inundação da aldeia do Pisão e ao desalojamento da sua população, cujo destino continua incerto, sem quaisquer soluções concretas apresentadas. A esmagadora maioria dos residentes pretende que a aldeia seja reconstruída numa outra localização (79% segundo o inquérito divulgado). O EIA não dá quaisquer garantias em relação aos cidadãos afetados em termos da solução a adotar, nem prevê custos relativos à compensação a atribuir aos lesados pelo projeto.
  • Ocorrerá ainda a destruição de centenas de hectares de montados, a afetação de “catorze habitats incluídos na Diretiva Habitats (92/43/CEE), sendo um deles considerado prioritário” e a fragmentação e desaparecimento de habitat de espécies de proteção prioritária em risco elevado de extinção como é o caso do sisão, da abetarda e da águia caçadeira – destruindo a continuidade entre áreas com importância para a conservação (Zona Especial de Conservação do Cabeção, Important Bird Area de Alter do Chão e Zona de Proteção Especial de Monforte). Para além disso, haverá uma artificialização da ribeira de Seda e seus afluentes, com impactes cumulativos à albufeira do Maranhão, e aumento do risco de contaminação dos recursos hídricos através da promoção de sistemas agrícolas intensivos dependentes do uso sistemático de agroquímicos.

Por último, a ZERO refere, ainda, que a configuração do projeto apresenta “desvios significativos” face ao inicialmente previsto no PRR, o que “demonstra que a Comissão Europeia terá sido induzida em erro para aprovar esta obra de difícil justificação”. De acordo com a ZERO, o projeto engloba “uma central fotovoltaica terrestre não prevista no PRR”; “o PRR estipula que a produção de energia renovável a partir do empreendimento seria capaz de reduzir 80.000 toneladas/ano de emissões de dióxido de carbono equivalente (CO₂e), no entanto o EIA aponta menos de 10% desta estimativa (7.377 t/ano de CO₂e); “o PRR prevê limitar os lotes dos perímetros de rega a 100 ha, mas o EIA prevê que 5% das unidades de rega com mais de 100 ha ocupem cerca de 40% de toda a área beneficiada, não dispondo de quaisquer medidas para evitar a concentração fundiária e facilitar o acesso à terra”.

A Comissão Europeia indicou que, por forma a acautelar o cumprimento do princípio “não prejudicar significativamente”, o EIA em discussão pública deve apresentar “alternativas que contemplem a redução do consumo de água e o emprego de soluções baseadas na natureza”, assim como objetivos diferentes, incluindo a “regeneração natural”. No entanto o que foi apresentado em consulta pública foram “duas variações do mesmo projeto”, com uma “diminuição marginal dos impactes” na designada “Alternativa 2”. “Persistem impactes significativos advindos de maiores pressões qualitativas sobre o solo e a água e a ameaça severa para a proteção da biodiversidade e ecossistemas, que deveriam inviabilizar o acesso a fundos públicos advindos do MRR”, remata a Associação.